sábado, 5 de agosto de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Movediços como tatoos de henna

Aparecido Raimundo de Souza

OS AMIGOS COBRA CRIADA
e Cobrudo Magricelo conversam, animadamente, enquanto trabalham. Ambos arranjaram a ocupação de vendedor na sofisticada loja de dona Bartira Duodeno, no terminal de shopping da cidade. A velhota (que antes de abrir as portas do sofisticado brechó labutou em várias casas de família, enriqueceu comercializando peças de roupas geralmente doadas por suas ex-patroas e amigas abastadas. Enquanto não entra, nem sai ninguém, os rapazes metidos a expertos, passam as horas se divertindo em lesta euforia, ou seja, no fundo, um tentando derrubar o outro com fatos verídicos acontecidos durante a infância deles no bairro onde nasceram e foram criados:
— Você se recorda do Luizão – pergunta Cobrudo Magricelo a certa altura:

Cobra Criada:
— Esta é velha, Cobrudo Magricelo. O que lhe deu um bofetão?
Cobrudo Magricelo:
— O do bofete foi o João. Estou me referindo ao Luizão.
Cobra Criada:
— Que Luizão?
Cobrudo Magricelo:
— Aquele que lhe deu pimenta misturada com feijão.
Cobra Criada:
— Não achei graça nenhuma, bobalhão!

Cobrudo Magricelo:
— Falando sério: não se lembra mesmo do Luizão?
Cobra Criada:
— Agora que mencionou, sim. Acendeu uma luzinha aqui na minha mente. O que roubou a sua televisão?
Cobrudo Magricelo:
— Não, Mané, o que lhe assustou com uma aranha deste tamanho debaixo do seu travesseiro.
Cobra Criada:
— Quando é que vai deixar de bancar o paspalhão?
Cobrudo Magricelo:
— Sem brincadeira: você não se recorda do Luizão?

Cobra Criada:
— Como não? Ele até lhe apelidou...
Cobrudo Magricelo:
— Me apelidou a mim? Como?
Cobra Criada:
— Ele espalhou pra escola inteira que o seu bilau se fazia menor que um caroço de feijão. A alcunha prosperou como “piroca de Santo Antão”.
Cobrudo Magricelo:
— Não, é o mesmo piá que lhe fez tomar uma surra memorável do Dentução?
Cobra Criada:
— Não mude de assunto. Largue de querer bancar o bestalhão!

Cobrudo Magricelo:
— Olhe, estou admirado. Esquecer do Luizão. Logo o Luizão!
Cobra Criada:
— Estou de sacanagem. Claro que lembro do Luizão. Não foi ele que tascou uma mordida no seu bundão?
Cobrudo Magricelo:
— Este sacana dos diabos foi o Marcão.
Cobra Criada:
— Marcão, não recordo dele. Que Marcão?
Cobrudo Magricelo:
— O que te obrigou a beijar, de língua, a boca do Tonhão.
A contenda entre os dois segue acirrada:

Cobra Criada:
— Então Cobrudo Magrelo, me prove que você, pra não levar uns tabefes e fazer feio diante dos demais colegas teve que se submeter a beijar, como, de fato beijou e engoliu a língua o Tonhão!
Cobrudo Magricelo:
— Isso que você está dizendo ai, não aconteceu comigo. A merda se deu com o Marcão e o Benedito.
Cobra Criada:
— Já começou a apelar. Na nossa escola não tinha nenhum moleque com o nome de Benedito.

Cobrudo Magricelo:
— Como não tinha? Até apelidaram o pobre coitado de “Cabeça de repolho”.
Cobra Criada:
— Verdade. Tem razão. Agora me veio à mente o Benedito! De fato, todos nós o chamávamos de “Cabeça de repolho”. E lembrei de um fato igualmente engraçado. Você logo concordará comigo. Espalharam que o Benedito “Cabeça de repolho” lhe meteu, goela abaixo, um possante ferrolho. Por conta dele, você ficou em casa, quase uma semana de molho...
Cobrudo Magricelo:
— Você com esta conversa de cerca Lourenço vai me fazer lhe dar umas porradas. Manera os modos, cara.

Cobra Criada:
— Tem razão, me perdoa. Esquece. Vamos mudar o rumo da prosa. Lembra da Jussara?
Cobrudo Magricelo:
— Jussara, Jussara... realmente... diga ai. O que tem ela? É do nosso tempo?
Cobra Criada:
— Por certo que sim. Ela lhe deu na hora do recreio, uma inesquecível surra de vara...
Cobrudo Magricelo:
— Verdade. Aliás, esta foi a primeira verdade que você trouxe à tona. Todavia, aposto um pote de Açaí no carrinho da dona Ermelinda Rinaldi, que você não tem registro do Eleutério.
Cobra Criada:
— Engano seu, meu caro Cobrudo Magricelo. Claro que tenho e me lembro.

Cobrudo Magricelo:
— Então diga.
Cobra Criada:
— Ele mandou vê em você tardão da noite dentro do cemitério. E saiu espalhando pra rapaziada que você não tinha diploma de virgem. Por este episódio a nossa turma, em peso, lhe apelidou de “Cu sem prega”.
Cobrudo Magricelo:
— Feio aconteceu com você, seu metido a sabichão. Lembra da Anita? A gatinha mais bonita da nossa rua, a mais elegante do bairro?

Cobra Criada:
— Sim, sim. Me apaixonei por ela desde o dia em que a flagrei tomando banho só de calcinha na caixa d’água do quintal da casa dela.
Cobrudo Magricelo:
— Isso é fato. E ainda vem à lembrança o que ela trombeteou aos quatro cantos, depois dessa “quase transa” quando você, segundo ela, afoito e descuidado, tentou colocar a carroça na frente dos burros.
Cobra Criada:
— Sim. O irmão dela, o Canjica, queria me deixar pelo menos um mês no hospital.
Cobrudo Magricelo:
— OK. Porém, tal fato não chegou a ser o desfecho de tudo.
Cobra Criada:
— Como não?

Cobrudo Magricelo:
— Ela viralizou para todas as meninas da nossa sala, digo, para as donzelas da escola inteira que na hora do rala e rola a sua cenoura murchou e ela berrou, zangada e deveras furiosa...
Cobra Criada:
—.... Berrou zangada e furiosa? Berrou exatamente o quê?
Cobrudo Magricelo:
— Que na hora da verdade você negou fogo. E ela, pê da vida, chorando e sem ter conseguido perder a castidade e virar mulher em suas mãos, vociferou...

Cobra Criada:
— Vociferou o quê, desgraçado? Vomita logo o que aquela lambisgóia trouxe à tona?
Cobrudo Magricelo:
— Ela disse: joga essa porcaria para os cachorros, seu metido a machão falsificado. Esta sua mandioca não deu conta da minha panela fervente. Quer saber? Nem assoprando este seu legume ressuscita...
Cobra Criada:
— Não achei graça nenhuma. Quer testar se não ressuscita? Fica de quatro patas...
Cobrudo Magricelo:
— Esquece. E o Gouveia?
Cobra Criada:
— Aquele seu vizinho que tem uma filha magra e feia?

Cobrudo Magricelo:
— Não, seu bocó. O que levou você para dormir uma noite na cadeia.
Cobra Criada:
— Pula esta passagem, Cobrudo Magricelo. Pula... assim não vale.
Cobrudo Magricelo:
— Tá bem, desculpe. Foi mal! Vamos mais: Lembra do Beto Morgado?
Cobra Criada:
— Aquele bêbado que só vivia “chapado”?
Cobrudo Magricelo:
— Errou de novo. Este não outro senão o Atabalhoado “do Hiena”. Só vivia rindo. Estou me referindo ao Beto Morgado...
Cobra Criada:
— Morgado, Morgado! Ah, o sujeito que lhe deixou no baile de domingo, dentro do clube completamente pelado?

Cobrudo Magricelo:
— Negativo. O que te encrencou a vida com o delegado.
Cobra Criada:
— Esquece. Salta pra adiante. Tem que ficar lembrando certas coisas que deveriam permanecer esquecidas?
Cobrudo Magricelo:
— Perdão. Foi sem querer. E então, admita: sou, ou não, um espertalhão, em outras palavras, o melhor?
Cobra Criada:
— Não, não é não. No fundo, você não passa de um convencido e canastrão.
Cobrudo Magricelo:
— Posso até ser, mas, sem dúvida, um tremendo garanhão.

Cobra Criada:

— Mil vezes não. E vou deixar claro, agora que me assiste plena certeza naquilo que direi...
Cobrudo Magricelo:
— Última chance, seu cara de tarado.
Cobra Criada:
— Tá legal. Última chance. Só que agora eu começo. Tem visto o Chico?
Cobrudo Magricelo:
— O que te deu refrigerante no “pinico”?
Cobra Criada:
— A do refrigerante foi a Beatriz.

Cobrudo Magricelo:
— Bea... Bea quem?!
Cobra Criada:
— Beatriz.
Cobrudo Magricelo:
— To ligado: a que te deu meleca de nariz?
Cobra Criada:
— Passou longe. A que te botou três anos nas grades, vendo o sol nascer quadrado. Estou falando da filha do juiz!

Os dois amigos se engalfinham entre tapas e sopapos. A multidão formiga. Os celulares filmam. No apogeu, Cobra Criada e Cobrudo Magricelo derrubam araras e manequins. Justo na hora em que entram, portas adentro, dona Bartira Duodeno com um sorriso fulvo, os olhos virentes, enrodilhada ao braço da filha graciosa e superna. A velhota sobe nas tamancas. Roda a baiana deixando entrever, nesse movimento brusco, roliços e bem torneados pares de pernas:
— Os dois, agora, para fora da minha loja. Estão despedidos. Ruaaaaaa!

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 4-8-2023

Anteriores:

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-