sexta-feira, 25 de agosto de 2023

[Aparecido rasga o verbo] De cara limpa

Aparecido Raimundo de Souza

BASTOU A NINFETA
rebolativa, as pernas de fora, mostrando o que devia, e o que não havia necessidade, saltar daquele ônibus correndo e impedindo que o motorista seguisse viagem, emitir uns gritinhos estridentes acompanhados de um pedido de socorro que, num passe de mágica, um bando de policiais (não se sabe saído de que esgoto), apareceu em cena. A beldade parecia uma daquelas atrizes novas e famosas atuando num cenário de novela nos Estúdios Globo (antigo Projac), em Jacarepaguá. Só que a coisa era real. Disse o primeiro policial, que ostentava a patente de tenente e se chamava Rubenval:
— Pois não, senhorita? 

O segundo, que atendia pelo nome de Calisto, completou:
— Em que podemos ajudá-la?
A musa estonteante, o rosto apavorado, as mãos trêmulas, quase a desmaiar:
— Tem um sujeito armado até os dentes sentado ali perto do cobrador...
Os dois policiais, ao mesmo tempo e a uma só entonação vocal:
— Vamos averiguar. Por favor, fique aqui.
Rubenval e Calisto fizeram um pequeno sinal e se juntaram a um terceiro colega, ou mais precisamente ao Aroeira que até então se amolengara, em pé, ao lado da viatura, mudo e calado, prestando atenção na conversa.

O pelotão se dividiu. Cada um entrou no coletivo por uma porta. Os que subiram pela dianteira (comandados pelo cabo Bartolomeu), pediram que todas as mulheres e crianças permanecessem em seus lugares, sentadas. Na parte traseira, o tenente Rubenval encarou um grupo de marmanjos e ordenou:
— Agora os homens, por favor, queiram se levantar e fazer uma fila indiana lá fora. Um de cada vez, com calma, sem afobação, sem atropelo e com as mãos na cabeça. Calisto que subira no vácuo, deu um tremendo de um berro reiterando a ordem:
— DESÇAM AGORA! MÃOS NA CABEÇA...

O tenente Rubenval voltou a apear junto com os possíveis suspeitos. Cheio de cortesias e mesuras, se posicionou junto ao motorista, o cobrador e à formosa que dera o alarme. Solicito, indicou a ela, uma dúzia de homens alinhados junto às barbas da viatura:
— Qual deles, senhorita?
— O de camisa amarela.
— O negão?
— Em carne e osso.

A um novo aceno de cabeça, do tenente Rubenval, os três que haviam entrado pela frente, igualmente voltaram à calçada e passaram a dar uma geral no cidadão aflorado como comprometido. Não acharam nada de suspeito. O cabo Bartolomeu segurou o bifronte pela gola da camisa:
— Tá legal: cadê a arma?

O desditoso apócrifo, ofendido com o vexame pelo qual estava sendo submetido retrucou, impaciente:
— Pô, seu guarda! Qualé? Ver a minha arma?
— Mostra logo o “berro” e deixa de conversa fiada.
— Não posso...
— Tem licença para andar “trepado”?
— Tenho sim senhor.
— Onde está o porte?
— O senhor não está vendo?

Cabo Bartolomeu se enfureceu:
— Vamos levar o malandro para a delegacia. A autoridade de plantão, com certeza, lavrará o flagrante.
Aroeira se aproximou, cheio de pose:
— Antes precisamos apreender a arma.
Calisto veio na cola dele, arrogante e marrão:
— Cara, mostra logo o “pau de fogo”. Vai ser melhor pra todo mundo. Se tentar nos enrolar, vamos lhe prender, lhe algemar, lhe jogar no cofre e, além do porte da arma ilegal que está contigo, levará, de lambuja, um desacato à autoridade, e obstrução da justiça.

O desditoso danou a chorar e a soluçar copiosamente:
— Pessoal, não tenho nenhum “pau de fogo”. De onde foi que tiraram absurda ideia?
O cabo Bartolomeu apontou para as genitálias do infeliz, cujo volume, por baixo da calça de nylon escura, dava um realce acima do normal. Qualquer do povo menos desavisado, diria ao olhar para ele, que estava, realmente, com alguma coisa amoitada por debaixo dos panos:
— Pode nos dizer que merda acasalou aí no escondidinho das suas pernas?

— Não é nenhuma pistola, podem crer!
— Tira bem devagar o berro pra que “nóis todo possamo” averiguar.
— Seu guarda, pelo amor de Deus... e as senhoras espiando pelas janelas? Dá uma geral...
Cabo Bartolomeu diante da recusa, aplicou uma tremenda porrada nas costas do fulano. Calisto também se aproveitou e mandou um tapa certeiro no meio do ouvido. Um outro “cala boca” desta, feita desferido pelo Aroeira, zuniu acertando, em cheio, o pescoço do apoquentado. O dito-cujo viu estrelas:
— Libera o “cano” daí bem devagar.

Calisto não se fez de rogado:
— Ouviu a ordem? AGORA!
Com a cacetada recebida e, de roldão o tapa, a criatura, em toda a sua estrutura, se dobrou cheia de dor:
— Aí, seu... seu guarda... não tenho... não tenho arma... nen... nenhuma... vocês... vocês já não me... já não me revistaram da... da cabeça aos pés?
Nesta altura do campeonato, o episódio tomou proporções gigantescas.

Ao redor, transeuntes que passavam, indo e vindo, estancaram os passos. De repente, uma consistência considerada de rostos circunspectos se juntou aos existentes dentro do “quarenta janelinhas”. Todos, sem exceção, as fuças esbugalhadas e uivando:
“ — Metam o ladrão no xilindró. ”
Sem paciência os brutamontes que representavam à força policial impecável (que deveria dar, antes de qualquer coisa, proteção à população, pelo menos até alguma coisa concreta vir à tona, para se pegarem e poderem agir com lisura), resolveram partir para cima do indefeso que continuava chorando e implorando que o deixassem ir embora:
— Tenho mulher e cinco filhos. Juro por Nossa Senhora...

Num ato de selvageria e perversidade os fardados, a um só golpe, pularam no aperreado e arrancaram a sua calça. À força tanta, que uma fralda coletora voou, de roldão. Saltou, em contínuo, aos espantos da galera aglomerada, a tal arma que a engraçadinha da moça delatora havia visto, não se sabe como, nem onde. Um membro acima do normal, verdade seja dita, envolto em ataduras, surgiu, preso, à linha do umbigo, por uma fileira enorme de compressas de gaze e esparadrapos.

Logo ao lado, colada à pele, também por esparadrapos, uma bolsa, com uma sonda, por onde o infeliz fazia as suas necessidades fisiológicas. O negão (ficou apurado via rádio do tenente Rubenval), acabara de ser operado na Santa Casa e voltava, para casa, por meios próprios, em falta de uma ambulância disponível do SUS. Os policiais pediram desculpas aos passageiros pelo incômodo e os transtornos causados. Quanto ao desditoso, jogaram o que haviam tirado dele, a seus pés. Para camuflar o vexame, o tenente Rubenval tratou de improvisar junto com seus comandados, uma barreira humana em derredor do submisso, para, enquanto algumas senhoras caridosas o recompusessem da nudez, não fosse filmado ou fotografado com a bunda magra e outros atrativos expostos à visitação pública dos bisbilhoteiros e seus poderosos e fofoqueiros celulares.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo. 25-8-2023

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