terça-feira, 19 de setembro de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Embarcação sem quilha

Aparecido Raimundo de Souza

DEPOIS DA PRIMEIRA VEZ que espiei a beldade, não parei mais de pensar nela. A linda havia acabado de se mudar de mala e cuia para o conjunto de quitinetes onde ficava a minha. Eram quatro pavimentos com vinte apartamentos por andar. Espaços pequenos, a bem da verdade, compostos todos os oitenta, por um quarto relativamente espaçoso, uma sala aconchegante, uma varanda de frente para a avenida, uma cozinha americana e banheiro. Essencial para solteiros, compatível para um casal sem filhos, e, extremamente apertado para três. Seu Juvenal, o proprietário, um setentão bem-apessoado, não gostava muito de alugar seus “quartinhos”, como carinhosamente os chamava, para moças solteiras ou que trouxessem animais de estimação. Dizia que dava problemas. 

Por essa razão, colocara uma porrada de machos feios e esquisitos espalhados em todo o conjunto. Sujeitos que cheiravam a cachorros molhados depois de terem enfrentado forte temporal. Dava medo topar com essas criaturas e encarar seus semblantes fechados na escassa iluminação dos corredores sombrios, somente se tornando visíveis com o acender das luzes de presença ao captarem movimentos. Pois bem! A nova moradora foi alojada no segundo andar, exatamente em frente à minha porta. O meu cafofo, era o de número trezentos e dezesseis. A da recém-chegada, o trezentos e seis. No apê de número trezentos e dois, residiam dois irmãos mineiros de Juiz de Fora. Nas demais dependências, uma galera de peões de obras, que trabalhava em turnos os mais diversificados se amoldava na construção de um gigantesco shopping center nas cercanias da cidade. Nunca me esquecerei do dia em que vi a cabritinha fofa e o que senti logo depois da sua aparição prestigiosa. 

Desde então, para meu desassossego, a considerei como uma deusa mitológica. Dona de uns cabelos lisos e sedosos que lhe caiam em cascata até o bumbum como uma grande nuvem de seda. Os olhos brilhavam num azul claro, as maças do rosto sobressaiam salientes, enquanto a boca rasgada e sensual contrastava com o corte firme do queixo. Os seios, meu Deus do céu! Os seios pareciam moldados nas proporções ideais. Nem grandes, nem pequenos. Cheios, contudo o bastante, para lhe propiciarem um porte elegante, como o de Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta, da lendária cidade onde ocorreu a famosa Guerra de Tróia. Para meus anseios mais aguçados, dois frutos saborosos encorajando meu paladar apurado para as coisas boas do belo sexo.  

Sem falar, mas já o fazendo, na cintura fina e sólida. Os quadris generosos e redondos; as coxas fortes terminadas numas pernas longas e feitas na medida apropriada para arroubar os caprichos mais incendidos e fervorosos. Na olhada inaugural que lhe enderecei, ela subia com mais de uma dezena de pacotes e iguais quantidades de bolsas e malas. Trouxe um rapaz à tira colo que, a princípio, pensei ser o namorado. Porém, pelas conversas que captei entre ambos, logo depois e, para minha satisfação e felicidade, o mancebo não ia além de um consanguíneo mais velho que viera ajudar com a acomodação dos cacarecos. Horas à frente, depois de tudo aquietado, deixei de bisbilhotar o corredor, ora pelo olho mágico, ora com a porta entreaberta. 

Parti denodado e insolente para uma ousadia mais profunda. Uma aventura inteiramente radical. Como todos os demais cômodos se faziam sistematicamente iguais, ou seja, as portas de acesso aos banheiros ficavam de cara para a entrada principal, concluí que, se tivesse um pouco de sorte, obteria sucesso vasculhando a sua intimidade e, quem sabe, até capturasse algo além do normal naquele pedaço de mau caminho que cruzara com o meu. Não deu outra. Ao meter o olho e entrar na privacidade que o buraquinho da fechadura me propiciava, por pouco não perdi o juízo. Breves segundos me pegaram completamente petrificado e estatelado, a alma macerada pelo tresloucado desejo da posse em franca explosão. 

Na sequência dessa viagem exuberante, o inesperado. Um bruxulear seguido de forte calafrio se apossou de todo meu corpo. Com o corredor às escuras, percebi que a luz da sala da maviosa se encontrava acesa. A jovem acabara de sair do banho e, naquele exato momento, dera uma parada básica de frente para o orifício da fechadura, ficando exatamente na linha direta com meu foco de observação. Desvencilhada da toalha, inteiramente como viera ao mundo, falava com alguém ao celular. A boca se entreabria em movimentos dosados, deixando à mostra dentes alvos, enquanto algo, no ar, delineava seus olhos, tornando o azul claro mais forte e intenso. Com quem falaria? Alguma paquera? Um namoradinho sério? Talvez uma amiga? Senti ciúmes. Me invadiu um sentimento bobo e sem razão que me fez, de repente, roer as unhas em atitude de forte nervosismo incontido. 

Nesse interregno, ela pegou uma das bolsas sobre a cama e, de dentro, puxou uma calcinha preta minúscula com um coraçãozinho vermelho colado na parte de trás. Vestiu devagar, sem largar o telefone. Parou na frente do espelho. Chacoalhou os cabelos. Por segundos, saiu da minha mira de observação. Eu estava em estado desesperador. Afoito, libertei para fora da jeans, um cidadão abismado que pastava deglutindo avidamente o nylon da cueca. Um cara de feições duras e rígidas, sequioso por um carinho mais envolvente em decorrência de um cortejo composto por força descomunal. Na verdade, eu trazia à vida, um brinquedo de aparência endiabrada que implorava, resoluto, encarniçado e fora de controle, explodir numa satisfação jamais experimentada, tendo em vista uma abstinência que acumulava semanas. Ela retornou à minha linha de observação, repetecando, pela segunda vez, a nudez eletrizante diante do espelho mudo. Fui às nuvens. Pirei. Estava, a princesa, de novo, completamente sem nada. 

Por algum motivo, tirara a pecinha que vestira e caminhava, de um canto para outro, como Papai do Céu lhe trouxera ao mundo, ao meu mais especificamente. Iniciei, então, uma masturbação marota... vadia, sem fundamento. Um vai e volta, volta e vai esquartejador, oculto nos lôbregos sítios da minha alma em festa e, então... então, uma mão fria me segurou pela gola da camiseta:
— Que é isso, meu rapaz? Quer que coloque você e suas tralhas no meio da rua? Anda daqui rápido. Fora, chispa, vai, vai. Circulando...
O senhorio chegara em silêncio –, pé ante pé. Pegou a minha insensatez e falta de compostura no flagra, num embaraço deveras incômodo. Nunca antes eu havia sido surpreendido com a boca na botija num comportamento reprochado, quase a explodir num gozo desenfreado, os nervos à flor da pele, o coração num frenesi suntuosamente extraordinário. 

Nessa hora, me senti como um buraco aberto no chão do corredor comprido recebendo o pescoço de uma avestruz imaginária, todavia, completamente assustada. De ereto, asfixiei a compulsão em meio de uma tremedeira que se apossou de mim. Dei meia volta, completamente hebetado e entrei correndo na minha peça onde me tranquei, suando em bicas, como um animal encurralado a fugir da morte eminente, adiando as aspirações de um cinco contra um para outra oportunidade. Voltei a olhar pelo olho mágico o corredor mergulhado, agora, em total penumbra. Mesmo à meia luz opaca, dava para perceber que o proprietário não arredara. Ficara no meu lugar, a espionar, pelo vão da chave, numa contemplação ociosa, à imitação do roteiro redentor que eu começara. 

Não sei o que fez enquanto se deleitava com a visão que lhe chegava vinda do interior daquelas quatro paredes. Achei melhor tomar um banho frio e tentar conter a minha “descascação de banana” interrompida para uma saboneteira em forma de mulher com um traseiro protuberante e, assim, esquecer, de vez, o incidente. Entretanto, algo de inusitado aconteceu nesse interstício de curto espaço de tempo. Em razão disso, me vi obrigado a sair do chuveiro às pressas, a me vestir correndo movido pelos gritos de pavor da esposa do proprietário. Ela berrava, pedindo socorro, batendo de porta em porta que lhe acudissem o “esposo.”  A cena que eu e a turma de condôminos assistimos aos esbugalhos (ao escancararmos para o passadiço a curiosidade), foi simplesmente hilária, patética e ridícula.  

Seu Juvenal tinha os olhos saltados em petrificação escancarada, a boca aberta como se pedisse socorro e tivesse vivido a ronde do horror. Seu esqueleto frágil emborcara de barriga para baixo na porta da nova inquilina. Quando três rapazes das ocupações cento e quinze, quatrocentos e nove e duzentos e um, conseguiram voltar com ele, à posição normal, a patroa do desarranjado desmaiou em face da vergonha iminente que se formou em seu rosto em eriçado turbilhão, como num pélago de intensidade voraz e cruel. O velhote parecia saído precipitadamente de um tour de force prolongado, pelo fato de ter desabotoado os botões da calça e descido um pouco a ceroula. Suas genitálias jaziam murchas, encolhidas e secas, expostas aos destroços de uma excitação mal deflagrada. Misturadas a ela, igualmente esfaceladas, uma infinidade de bolinhas coloridas adornava o esquisito e surrado samba canção manchando o prêmio doloroso da sua audácia que acabou prisioneira de uma indisposição sem fome de seguir adiante. 

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freiras, no Rio de Janeiro, 19-9-2023 

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