sexta-feira, 8 de setembro de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Tudo nenhum

Aparecido Raimundo de Souza

DE REPENTE, me vejo engasgado com um espinho na garganta. Uma farpa pontiaguda conhecida como imbecilidade galopante pelo fato de estar concentrado nesta cidade estranha, perdido por entre suas praças e ruas à procura da realização de um sonho antigo, qual seja, o de me tornar um cantor profissional e aparecer na televisão. Almejo pintar no “Domingão do Luciano Huck”, no “Caldeirão do Marcos Mion”, na “Eliana” e outros apresentadores de projeção nacional. Gravei um CD independente, com 18 músicas, numa produtora sem CNPJ, sem nome pomposo para ostentar, sem artistas famosos para me abrir caminhos ou destrancar portas. Coisa de fundo de quintal de cidadezinha interiorana. Também, na província onde moro, distante de São Paulo, uns bons quilômetros, muitas coisas da modernidade ainda não passaram perto. O CD não é um trabalho de primeira linha. 

Tudo muito simples, quase artesanal. Quem me ajudou, não possui os recursos de um estúdio de grande porte, com mesas importadas, não sei quantos canais. Na verdade, o clima rolou em torno de um corre-corre danado, na ajuda daqui e dali, com instrumentos emprestados, e músicos pegos no laço. Outros no tapa. Enfim, precisei de muita força de vontade e determinação para ver o trabalho pronto e terminado. Quase não acreditei quando me flagrei com a passagem comprada dentro da carteira, sentado num banco da estação rodoviária. Ao meu lado, me acompanhando, a bagagem escassa, composta por uma malinha velha e surrada, cheia de roupas capengas e longe da moda pulsante, e, ao lado, uma caixa de papelão com 100 copias do disco, e, claro, meu violão. 

Estava pronto o trabalho para ser mostrado ao mundo. O mundo, para mim, se resumia, pelo menos naquele instante, em ir embora para São Paulo.  Assim pensando, bati as asas em busca de voos mais distantes. Para o meu passado, ficavam a namorada, meus pais, três irmãos, meia dúzia de sobrinhos, Cotó, meu cachorrinho e Lia, minha gata. Creio, depois da mãe e do pai, quem mais sofreu com minha partida foram eles, meus bichinhos de estimação. Camila, a fogosa namorada, jurou, de pés juntos, que tomaria conta com carinho e total dedicação. Pelo sim, pelo não, amarrei a, numa jura de pés juntos, onde a fiz prometer que cuidaria deles, como de si própria e, que jamais os deixaria abandonados e à mercê da sorte. 

Descobri, muito tarde, e à custa de duros sacrifícios, que alguém, por mais que queira e até se dedique de coração, a zelar de certas coisas que são nossas, nunca conseguira suplantar o amor que verdadeiramente está contido dentro do nosso eu. Mas o que estava feito, não andava por fazer. Não podia retornar nos passos pisados e deixar de lado o objetivo maior. Em conversa com Zardonho Pangaré (um artista de rua que conheci no Terminal Tiete, ao desembarcar em São Paulo), ele me disse que eu deveria mostrar meu trabalho na Praça da Sé. Em frente à saída da estação do metro. Por lá, segundo ele, passava uma pá de gente todos os dias indo ou vindo dos mais distantes rincões. Um formigueiro imenso, num vai e vem incansável como o burburinho que movia as engrenagens da metrópole. 

O que precisava, de imediato. Escolher um lugarzinho, passar a mão no violão e abrir o gogó. Não cantar somente as músicas do CD, até porque, a maioria delas eram composições da minha cabeça e, portanto, desconhecidas do público a quem pretendia me dirigir. Devia ser, ainda, segundo esse meu amigo, bem diversificado. Intercalar um pouco de tudo. Ou interagir com o público, a ponto de permitir que eles dessem as cartas e fizessem os pedidos. Tanto podia ser Zezé Di Camargo e Luciano, Rita Lee, Rick & Renner, Amado Batista, Roberto Carlos, Bruno & Marrone, Sandra de Sa, Fabio Jr, Caetano Veloso, Maria Bethânia, enfim, o que quisessem ouvir eu deverei mandar vê. Meu leque musical, graças à Deus, se fazia bastante extenso. 

Experiência não me faltava, adquirida nas casas de show onde me apresentei com outros artistas da terra nas noitadas inesquecíveis da minha cidade natal. Hoje (quase um mês fora dos laços maternos), me bateu uma melancolia enfadonha. Senti saudades da Camila, tirar umazinha... vontade de abraçar meu pai, beijar mamãe, rever meus irmãos. Brincar com meus sobrinhos. Sem falar em Cotó e Lia. Como será que estavam se arranjando com o vazio solitário da minha ausência? Bem, comigo ou “sem-migo”, a vida, por aqui, como por aquelas bandas, continuará. Pensei em ligar, mas as tarifas (lembrando Chico Buarque) estão pela hora da morte. O pouco que trouxe nos bolsos, mal dava para encarar uma média com pão e manteiga e, por volta das duas da tarde, um PF, mesmo assim, escolhendo entre um e outro. 

Os Self-Services nos centros urbanos são verdadeiras ciladas. Por algum tempo necessitarei resistir aos pratos preferidos. Meu primeiro dia na tal Praça da Sé até que não foi mal. Passei a mão no violão e cantei Sandy Jr. Agradei. A capa onde guardo o instrumento ficou repleto de moedinhas e notas de R$ 2 reais.  Tomara que amanhã seja melhor e a sorte me sorria com mais abundância. Ando lendo pelas bancas de revistas onde passo, as previsões do meu signo. Os astros sinalizam um longo período que será ótimo para me concentrar no serviço e nas atividades práticas de um modo geral. Graças à Saturno, que está estimulando meu lado mais realizado e objetivo. O fator tempo atua a meu favor no que se refere à assuntos profissionais. Isso e ótimo. Quem sabe não me projeto, de vez, e, deslancho, no rastro do sucesso pleno. 

Três meses se passaram na mais pura tranquilidade.

Cantei, fui aplaudido, fiquei sem comer, dormi ao relento, quase fui preso, roubaram meus sapatos, rasguei a única camisa num prego, levaram meu violão. Alguém, neste final de noite, brigou na praça. Um sujeito puxou uma faca, o outro uma arma. O da faca riscou o ar, o do revolver deu uns tiros. Na confusão que se formou, gente correu, polícia deu empurrões, crianças choraram, mulheres gritaram. Fui atingido, por uma bala perdida. Não bati as botas por dois motivos óbvios. Primeiro, meu Deus, lá do alto. Segundo, devido à solidariedade de alguns transeuntes que me ouviam e correram comigo. Socorrido a tempo, dei entrevista na televisão. Apareci em rede nacional. Sai estampado em vários jornais. 

“CANTOR DE RUA QUASE PERDE A VIDA EM DECORRÊNCIA DE BALA PERDIDA. FOI ATINGIDO QUANDO CANTAVA NA PRAÇA DA SÉ”. Ora, vejamos a coisa por outro angulo. Quero dizer, pelo aspecto maravilhoso da vida em abundância, pelo lado da sorte benfazeja, ou ainda, pela ótica da vida plena fluindo em sintonia com as previsões do meu signo. Sobretudo, pelos trilhos magnânimos da prosperidade em sua melhor forma de expressão. Acredito, sinceramente, que tudo o que me aconteceu aqui, do fundo, bem fundo do meu coração, foi e continua sendo um começo, ou dito de forma mais ampla: o primeiro passo em direção ao sucesso. Não topei ainda com a sorte de aparecer no Luciano Huck, tampouco no Marcos Mion, menos ainda na Eliana ou em outros apresentadores considerados famosos e de peso. Mas, cá entre nós: aquela bala perdida, raios, aquela bala perdida foi obra de algum anjo de visão gigantesca. Veio em boa hora. O segredo é nunca perder as esperanças. Meu dia de brilhar, eu sei, está a caminho. O primeiro tiro foi dado. 

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 8-9-2023

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