sexta-feira, 29 de setembro de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Silhueta disforme

Aparecido Raimundo de Souza 

DE REPENTE EUSTÁQUIO
se viu apalermado e sem voz. Completamente afônico. Acordou assim, sem saber o real motivo do que havia acontecido. Tentou chamar pela mãe. Nenhuma palavra lhe veio em socorro. Pulou da cama, assustado. Correu ao banheiro. De frente para o espelho, escancarou a boca em uma dezena de “ois e ais,” e nada. Só via os movimentos dos maxilares. Nenhum som. Um apavoramento momentâneo invadiu seus olhos. Os arregalados da surpresa o deixaram perplexo. Mudo, paralisado, aparvalhado. O que teria causado tal transtorno? Como ficara impossibilitado e sem poder fazer uso das cordas vocais?

Tentou se lembrar da noite anterior. O que fizera? Com quem estava? Bebera algo além da conta? Ainda que tivesse se excedido, passado dos limites, o silêncio que lhe invadia não poderia simplesmente tolher a sua comunicação. Sua consciência trabalhava apressada. “Calma, muita calma nessa hora – disse de si para consigo. Isso não pode estar acontecendo”. Mas, naquele momento, o fato se fazia real. Sólido, de teor autêntico e palpável. Na sexta-feira, depois que saíra da faculdade –, tentou colocar as ideias em ordem. Se encontrara com Bárbara, sua namorada. Ela o esperava num barzinho em frente ao prédio principal onde ambos estudavam.

Ele cursava direito e a jovem optara por medicina. Para Eustáquio faltava um ano, enquanto para sua futura cara metade, dois, além da residência. “Não se apavore, não se desespere nessa hora – repetiu. Isso é um pesadelo, uma brincadeira de gosto alienígena.” Lembrou que deixou a sala de aula, passou pela biblioteca, devolveu um livro que pegara sobre “Introdução ao Estudo do Direito do professor Teófilo Cavalcante.” Yara, a atendente, na hora em que ele saia, correu a avisá-lo de que havia esquecido o celular. Agradeceu a garota com um cordial “Obrigado, linda” e seguiu em frente.

Do trajeto até o pórtico principal de acesso à via pública ligou para Bárbara:
— Oi, “mor.” Saindo. Está no bar, em nosso cantinho preferido?
Bárbara respondeu prontamente:
— Sim, “mor”, à sua espera. Acabei de ver você.
Acenou com a mão para o rapaz e completou:
— Pedi um suco de manga, seu preferido.
— Ok. Falou para o Moacir não “pegar pesado,” no gelo?
Essas foram às palavras proferidas entre a portaria da faculdade até o momento de atravessar o burburinho movimentado de carros e ônibus e galgar o pórtico que levava ao bar.

“Trajetou” o percurso sem pressa. Entrou no estabelecimento empurrando a portinhola “vai e vem.” O bar do Moacir lembrava um típico “saloom” do Velho Oeste Norte-americano, assemelhado aqueles dos filmes de cowboy dos tempos de Butch Cassidy, Jesse James e Ringo. Do balcão, Moacir, ao vê-lo, acenou. Ele devolveu o cumprimento. Ao divisar Bárbara entre os fregueses, apressou os passos e a abraçou com carinho e ternura. Trocaram, em contínuo, um longo e apaixonado beijo:
— Minha linda!
— Olá gatinho, tudo bem?
Bárbara em menos de uma semana, completaria vinte e dois anos, enquanto ele entraria na casa dos trinta no próximo mês.

Corria o final de agosto e setembro prometia uma série de novos adventos. O principal deles: o noivado, no dia em que apagaria as três dezenas de velinhas com todos os amigos dele e dela, numa recepção previamente contratada num cerimonial próximo de onde moravam. Bárbara residia no mesmo bairro que Eustáquio, duas quadras da esquina dele. No mesmo percurso, vinte minutos da faculdade. Haviam se visto pela primeira vez quando ele se acidentara com a moto que acabara de comprar e precisou passar pela UPA. Bárbara trabalhava na enfermaria da unidade. Em resumo: foi amor aos primeiros curativos.

Desde então, nunca mais se largaram. O pedido de namoro veio em seguida, numa festividade reservada apenas às famílias envolvidas. O amor parecia ser eterno e sempre se renovava essa certeza com uma série de beijos calientes, abraços demorados e os encontros de todos os dias (sempre no bar do Moacir) ou nas horas de estudos, na biblioteca da faculdade ou no refeitório.
— Eu te amo, Bárbara.
— Eu te amo, Eustáquio.
Diante do espelho, a se ver recordando o dia anterior, notadamente pensando em Bárbara, sorriu, matreiro: “Eu te amo, Barbara.”

Desta vez, porém, só os gestos dos lábios se fizeram positivos. O som da voz acometido por alguma coisa inexplicável, morrera no fundo da garganta: “Bárbara, eu te amo.” O imensurável do distúrbio repentino pesou tenebroso no reflexo que a superfície polida e metalizada grudada na parede acima da cuba insistia reverberar: “Eu te amo, Bár....” sem sequer terminar o que pretendia, desceu do segundo andar acelerando os pés. No piso inferior, tropeçou com Lolita, a empregada, finalizando a mesa com os preparativos para o café da manhã:
— Patrãozinho, o que é isso? Precisa usar óculos...

Eustáquio devolveu a serviçal um “sai da frente” aos berros. Porém, ela nada ouviu, enquanto ele, transtornado, e aos prantos, corria em direção à cozinha buscando pela mãe. Adentrou pulando nos braços da genitora:
— Oi filho, o que houve?
Dona Fernanda percebeu, nesse momento, que algo atípico e inabitual adejava e crescia em desacordo. Até aquela manhã bonita, nunca vira seu filho tão agitado, além, claro, do choro espasmódico que fazia as lagrimas em profusão banharem o rosto da criatura de forma aterradora.

O infeliz tentou dizer que acordara anômalo ao seu estado costumeiro. Desenhou uma série de gestos com a destra. Dona Fernanda, entretanto, não dimensionou, de pronto, o que acontecia:
— Filho, pelo amor de Deus, o que se passa? Lolita me socorre, por tudo quanto é sagrado. Lolitaaaaaaaa...
Lolita veio ligeira, indagando da patroa o que se passava. Ao vê-la, agitada e chorosa, entrou também em pânico, pondo-se os três a se debulharem em profunda convulsão:
— Lolita, pegue o meu celular lá em cima, na cabeceira da cama e ligue para o doutor Jair. Veja se meu marido já chegou ao escritório...
— Sim senhora, dona Fernanda.

— Peça que venha urgente. Nosso Eustáquio não está em... ande, filha de Deus, vá... deslanche...
— Estou indo, patroa... estou indo...
— Rápido, criatura... acelere, “despise” do freio. Voeeeeeeee...
Em vista do transito caótico, o doutor Jair demorou quase uma hora para conseguir retornar à sua residência. Ingressou às careiras, tropeçando nos móveis, ao tempo em que resmungava impropérios os mais cabeludos:
— Que foi, Fernanda. O que aconteceu?
— Nosso filho Eustáquio!
— O que houve? Nosso rebento botou um ovo?

Dona Fernanda fuzilou o marido:
— Engraçadinho. Isso não é hora de fazer piadas. O assunto é sério.
Lolita com a história do ovo bailada pelo doutor Jair igualmente se abriu em franca e sonora gargalhada:
— Lolita, sua desmiolada. Onde está a graça?
A empregada, movida pela piada ouvida do seu senhorio, não atinou com a indagação. Respondeu o que lhe veio à língua solta:
— Que graça, dona Fernanda? Que graça?!
— Dois imbecis, tenho diante de mim. Deixem as palhaçadas para depois. Jair, seu tonto de carteirinha. Nosso filho requer cuidados...
Subiram, em fila indiana, para o andar superior. À porta do quarto de Eustáquio, ficaram boquiabertos com o cenário.

O rapaz completamente pelado, dançava freneticamente com a bunda virada para a porta. Bailava ao som de alguma música que só ele deveria estar ouvindo. A postura de seus requebros estrambóticos e bizarros, em expressão pessoal garbosa, lembrava, ainda que muito distante, a dança do ventre. Não havia ninguém no aposento. Contudo, o doutor Jair, cenho franzido, intrigado e “estupefatado” com aquele episódio burlesco e ridículo, embrabeceu a voz e esturrou:
— Fernanda, que “diabos” está acontecendo aqui? Quem é a vagabunda destrambelhada ao lado do nosso menino?
Dona Fernanda se encheu de razão. Inflamou as ventas. Se pudesse voaria no pescoço de seu marido:
— Jair, seu desgraçado, pare de piadas. Nosso filho precisa de ajuda. Vamos. Faça alguma coisa...
— Primeiro me diga quem é a rameira desqualificada que está ao lado dele. Se não estou velho demais, afirmo que não é a Bárbara. Como você permitiu essa imundície entrar aqui?
— Jair, seu infeliz dos infernos. Deixe de ser criança. Não vejo ninguém ao lado dele. Você pirou o cabeção? Bebeu? Fumou um cigarrinho do tinhoso?
— “Diabos”, mulher. Nosso filho está grudado numa piranha. Você me tira quase às barbas do trabalho para vir aqui e assistir uma merda dessas?

O surpreendente, o inverossímil. O inaudito pasmoso e insólito. Ao pronunciar a palavra “diabos” a devassa e promíscua rapariga desapareceu. Eustáquio, num segundo, voltou ao normal da voz sucumbida. De costas para os ali presentes, num impensado se virou de vez:
— Pai, mãe, o que fazem aqui?
“Desrecordara,” obviamente, que se transformara num Adão e caminhava para seus consanguíneos envoltos numa plateia nu em pelo. A pobrezinha da serviçal, atarantada e perturbada, sem saber onde enfiar a “estuporação,” foi a que mais se aperreou. Quando mirou as genitálias do herdeiro dos seus patrões, tapou os olhos numa atitude envergonhadíssima. Empreendeu meia volta e debandou escadas abaixo em tremenda correria, e, aos espaventos do susto, vociferando enquanto se benzia:
— Puxou o pai. Jumento, jumento, jumentoooooooo!...

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Bragança Paulista, interior de São Paulo, 29-9-2023

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