sábado, 21 de outubro de 2023

A falsa objetividade de uma falsa equivalência

Henrique Pereira dos Santos

Adenda: há imprecisões minhas neste texto no que diz respeito à história dos bebés decapitados e do uso de imagens de bebés vindas de outros contextos. A história dos bebés não é, em rigor, criada pelo Estado israelita, embora se tenha demorado algum tempo a esclarecer. Mas não é uma invenção do Estado israelita (na hipótese mais favorável ao erro que escrevi, é uma invenção da sociedade israelita que demorou algum tempo a ser esclarecida). Quanto às fotografias de bebés queimados há alegações de que os metadados das fotografias demonstrariam o uso de fotografias de outros contextos, alegações que não fui verificar com cuidado (nem vou) porque como são contra os meus argumentos, dou de barato que ainda que assim seja, segue-se o meu argumento, que continua válido.

Esta peça do Observador é muito interessante e deveria ser usada nas escolas de jornalismo como exemplo.

Depois de dias a enfiar-nos pela goela abaixo propaganda do Hamas contrabandeada como "informação no Ministério da Saúde Palestiniano" ou "informam as autoridades locais", nomeadamente quanto aos efeitos da campanha militar de Israel em Gaza no que diz respeito a vítimas civis, o Observador, percebeu que estava a ir longe demais.

O ponto de viragem parece-me ter sido o enorme embuste do suposto ataque israelita a um hospital que teve como consequência a morte de 500 pessoas (o Hamas corrigiu mais tarde para 471, um número muito mais credível que um número redondo, claro).

E a peça para que faço a ligação é mesmo sobre esse embuste.

Em nenhum momento os jornalistas do Observador fazem qualquer avaliação crítica do seu trabalho anterior (e atual, ainda ontem uma jornalista descrevia a atuação de Israel como "a agressão israelita" e todos os dias continuam a repetir números de mortos que são transmitidos pelo Hamas sem qualquer verificação, como se fossem informação e não propaganda) e concluem: "Para já, cada um dos lados mantém as suas versões. As certezas poderiam ser encontradas com uma investigação independente no local. Até este momento, nenhum dos lados pediu que haja uma".

Na verdade, as Nações Unidas pediram uma investigação independente, mas deixemos isso que pode ser só um desfasamento de horas entre a elaboração da peça do Observador e o pedido das Nações Unidas.

Esta conclusão, e toda a peça, parece um exercício de objetividade e equidistância das partes, partindo da ideia de equivalência de credibilidade da informação transmitida pelas duas partes em confronto, isto é, que a credibilidade do Hamas como fonte de informação é a mesma da do Estado israelita.

É verdade que em situações de guerra, todas as partes mentem, todas as partes inventam e a guerra da informação é constante, não havendo qualquer razão para tomar qualquer informação proveniente de uma das partes pelo seu valor facial.

Mas isso não torna equivalentes as duas fontes de informação.

É verdade que o Estado de Israel fabricou imagens sobre o massacre de 7 de Outubro, em especial na história dos bebés decapitados ou dos incinerados - a história da decapitação de 40 bebés está mais de desmentida e as fotografias de bebés carbonizados parecem ser de outra situação que não tem qualquer relação com o massacre de 7 de Outubro -, é verdade que Israel retirou um vídeo por causa da hora do vídeo ser posterior ao do facto a que diria respeito (embora seja uma hora exata, em vez de 18:59 é 19:59, e haver outro vídeo da Al Jazeera que confirma a substância do vídeo apresentado pelas autoridades israelitas) mas essas mentiras ou falta de rigor (eventualmente, no caso do vídeo apresentado) foram desmontadas em muito pouco tempo porque existem mecanismos de escrutínio independente e as mentiras são rapidamente condenadas pela opinião pública, quer interna, quer externa, representando um custo real para as autoridades de Israel. Por isso o Estado israelita está obrigado a fabricar mentiras minimamente sofisticadas, se quiser ter algum ganho com essas mentiras.

Pelo contrário, o Hamas é conhecido por encenar evidências (como a de pôr dois responsáveis pelo Ministério da Saúde de Gaza, do Hamas, a fazer uma conferência no dito hospital, vestindo batas, como se fossem médicos do hospital a falar, para citar uma que está na peça que refiro, havendo muitas mais e bem mais graves) e dizer o que lhe passa pela cabeça, sem grande preocupação com a sua credibilidade, porque sendo a falta de credibilidade do Hamas um dado seguro, o custo de inventar mentiras é muito baixo, como se demonstra na história do bombardeamento do hospital: é hoje evidente que não houve bombardeamento nenhum, mas sim um acidente com um explosivo, provavelmente um explosivo palestiniano, como referem praticamente todas as fontes independentes que se pronunciaram sobre o assunto, mas o efeito da acusação, falsa, de bombardeamento voluntário de um hospital que provocou 500 mortos, está adquirido.

Não afetou minimamente a credibilidade do Hamas, porque não há qualquer hipótese da credibilidade de quem quer que seja ficar abaixo de zero (zero é a credibilidade de referência do Hamas), mas encheu o espaço mediático de acusações a Israel durante dias e vai sempre haver quem fique a "dizer talvez e a dizer talvez/ E a dizer, pois sim/ E a dizer, pois é/ E a dizer, que remédio/ ...E a dizer, mas sabe/ E a dizer, que pena/ E faz e acontece".

Ainda hoje o Observador apresenta as versões do Hamas e de Israel como equivalentes, quando sendo verdade que nenhuma das versões está inteiramente confirmada, a versão do Hamas está hoje completamente desacreditada e a versão de Israel, não estando totalmente confirmada (por exemplo, se o foguete explodiu ou foi interceptado por Israel), está maioritariamente confirmada por todas as fontes independentes que se pronunciam com a informação disponível (que não chega, é verdade, mas dá indicações fortes).

Não, senhores jornalistas, o Hamas e o Estado de Israel não são duas faces da mesma moeda, não são moral e informativamente equivalentes, são duas partes interessadas no meio de uma guerra, por isso devem ser as duas olhadas com desconfiança em relação à informação que produzem, mas existem mecanismos de controlo em sociedades democráticas e abertas criam limites reais à utilização aberta da mentira e da ilusão, o que não acontece em grupos sociais fechados, autocráticos e brutalmente repressivos, como é o caso do Hamas.

Título e Texto: Henrique Pereira dos Santos, Corta-fitas, 21-10-2023

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