Henrique Pereira dos Santos
Adenda: há imprecisões
minhas neste texto no que diz respeito à história dos bebés decapitados e do
uso de imagens de bebés vindas de outros contextos. A história dos bebés não é,
em rigor, criada pelo Estado israelita, embora se tenha demorado algum tempo a
esclarecer. Mas não é uma invenção do Estado israelita (na hipótese mais
favorável ao erro que escrevi, é uma invenção da sociedade israelita que
demorou algum tempo a ser esclarecida). Quanto às fotografias de bebés
queimados há alegações de que os metadados das fotografias demonstrariam o uso
de fotografias de outros contextos, alegações que não fui verificar com cuidado
(nem vou) porque como são contra os meus argumentos, dou de barato que ainda
que assim seja, segue-se o meu argumento, que continua válido.
Esta peça do Observador é muito interessante e deveria ser usada nas escolas de
jornalismo como exemplo.
Depois de dias a enfiar-nos
pela goela abaixo propaganda do Hamas contrabandeada como "informação no
Ministério da Saúde Palestiniano" ou "informam as autoridades
locais", nomeadamente quanto aos efeitos da campanha militar de Israel em
Gaza no que diz respeito a vítimas civis, o Observador, percebeu que estava a
ir longe demais.
O ponto de viragem parece-me
ter sido o enorme embuste do suposto ataque israelita a um hospital que teve
como consequência a morte de 500 pessoas (o Hamas corrigiu mais tarde para 471,
um número muito mais credível que um número redondo, claro).
E a peça para que faço a
ligação é mesmo sobre esse embuste.
Em nenhum momento os jornalistas do Observador fazem qualquer avaliação crítica do seu trabalho anterior (e atual, ainda ontem uma jornalista descrevia a atuação de Israel como "a agressão israelita" e todos os dias continuam a repetir números de mortos que são transmitidos pelo Hamas sem qualquer verificação, como se fossem informação e não propaganda) e concluem: "Para já, cada um dos lados mantém as suas versões. As certezas poderiam ser encontradas com uma investigação independente no local. Até este momento, nenhum dos lados pediu que haja uma".
Na verdade, as Nações Unidas
pediram uma investigação independente, mas deixemos isso que pode ser só um
desfasamento de horas entre a elaboração da peça do Observador e o pedido das
Nações Unidas.
Esta conclusão, e toda a peça,
parece um exercício de objetividade e equidistância das partes, partindo da
ideia de equivalência de credibilidade da informação transmitida pelas duas
partes em confronto, isto é, que a credibilidade do Hamas como fonte de
informação é a mesma da do Estado israelita.
É verdade que em situações de
guerra, todas as partes mentem, todas as partes inventam e a guerra da
informação é constante, não havendo qualquer razão para tomar qualquer
informação proveniente de uma das partes pelo seu valor facial.
Mas isso não torna
equivalentes as duas fontes de informação.
É verdade que o Estado de
Israel fabricou imagens sobre o massacre de 7 de Outubro, em especial na
história dos bebés decapitados ou dos incinerados - a história da decapitação
de 40 bebés está mais de desmentida e as fotografias de bebés carbonizados
parecem ser de outra situação que não tem qualquer relação com o massacre de 7
de Outubro -, é verdade que Israel retirou um vídeo por causa da hora do vídeo
ser posterior ao do facto a que diria respeito (embora seja uma hora exata, em
vez de 18:59 é 19:59, e haver outro vídeo da Al Jazeera que confirma a substância
do vídeo apresentado pelas autoridades israelitas) mas essas mentiras ou falta
de rigor (eventualmente, no caso do vídeo apresentado) foram desmontadas em
muito pouco tempo porque existem mecanismos de escrutínio independente e as
mentiras são rapidamente condenadas pela opinião pública, quer interna, quer
externa, representando um custo real para as autoridades de Israel. Por isso o
Estado israelita está obrigado a fabricar mentiras minimamente sofisticadas, se
quiser ter algum ganho com essas mentiras.
Pelo contrário, o Hamas é
conhecido por encenar evidências (como a de pôr dois responsáveis pelo
Ministério da Saúde de Gaza, do Hamas, a fazer uma conferência no dito
hospital, vestindo batas, como se fossem médicos do hospital a falar, para
citar uma que está na peça que refiro, havendo muitas mais e bem mais graves) e
dizer o que lhe passa pela cabeça, sem grande preocupação com a sua
credibilidade, porque sendo a falta de credibilidade do Hamas um dado seguro, o
custo de inventar mentiras é muito baixo, como se demonstra na história do
bombardeamento do hospital: é hoje evidente que não houve bombardeamento
nenhum, mas sim um acidente com um explosivo, provavelmente um explosivo
palestiniano, como referem praticamente todas as fontes independentes que se
pronunciaram sobre o assunto, mas o efeito da acusação, falsa, de
bombardeamento voluntário de um hospital que provocou 500 mortos, está
adquirido.
Não afetou minimamente a
credibilidade do Hamas, porque não há qualquer hipótese da credibilidade de
quem quer que seja ficar abaixo de zero (zero é a credibilidade de referência
do Hamas), mas encheu o espaço mediático de acusações a Israel durante dias e
vai sempre haver quem fique a "dizer talvez e a dizer talvez/ E a
dizer, pois sim/ E a dizer, pois é/ E a dizer, que remédio/ ...E a dizer,
mas sabe/ E a dizer, que pena/ E faz e acontece".
Ainda hoje o Observador
apresenta as versões do Hamas e de Israel como equivalentes, quando sendo
verdade que nenhuma das versões está inteiramente confirmada, a versão do Hamas
está hoje completamente desacreditada e a versão de Israel, não estando
totalmente confirmada (por exemplo, se o foguete explodiu ou foi interceptado
por Israel), está maioritariamente confirmada por todas as fontes independentes
que se pronunciam com a informação disponível (que não chega, é verdade, mas dá
indicações fortes).
Não, senhores jornalistas, o
Hamas e o Estado de Israel não são duas faces da mesma moeda, não são moral e
informativamente equivalentes, são duas partes interessadas no meio de uma
guerra, por isso devem ser as duas olhadas com desconfiança em relação à
informação que produzem, mas existem mecanismos de controlo em sociedades
democráticas e abertas criam limites reais à utilização aberta da mentira e da
ilusão, o que não acontece em grupos sociais fechados, autocráticos e
brutalmente repressivos, como é o caso do Hamas.
Título e Texto: Henrique
Pereira dos Santos, Corta-fitas,
21-10-2023
«Se há um judeu atrás da árvore, mata-o»
O nível moral da imprensa global está sendo exposto nessa guerra
Canalhice (mais uma) da imprensa
Nem eu. E você?
Factos e narrativas
“Jornalismo” da Associação Brasileira de Jornalistas
E o que fez o Hamas?
Manifestantes se reúnem em apoio a Israel na Praia de Copacabana
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