domingo, 29 de outubro de 2023

[As danações de Carina] Acre

Carina Bratt 

O BRESSA botou na cabeça que os pratos em que a cara metade lhe servia as refeições fedia fortemente à bacalhau. Tanto reclamou, tanto torrou a paciência, que Serafina, a pobre mulher com quem se casara, se invocou e deu uma geral nos objetos, lavando tudo com muita água corrente, sabão e detergente. Qual o quê! Tudo em vão. As reclamações do marido impertinente não cessaram. Ao contrário, continuaram mais fortes e acirradas. Sem saída, dona encrenca pegou as pratarias e presenteou uma vizinha carente. Antes, passou pelo supermercado e comprou tudo novinho em folha. Queria ver o filho das unhas do companheiro chiar do tal cheiro de bacalhau. A espera não se fez esperar muito tempo. Dia seguinte, no almoço, a pendenga seguiu seu curso normal:
— Serafina, este prato continua fedendo a bacalhau...
— Impossível, Bressa. Lavei com sabão, detergente, água quente, desinfetei com sanitária, os cambaus...
— ... Pode até ser, mas o cheiro não deu trégua. A mim me parece que aumentou de intensidade.

— Pois espie meu querido. Sinto afirmar categoricamente o oposto. Você pegou implicância comigo. Diria, sem medo de errar, que está vendo chifre em cabeça de cavalo.
— Chifre em cabeça de cavalo?
— Sim.
— Traduza minha estimada esposa, este chifre que acabou de me atirar observando que estou vendo. Nunca vi cavalo com chifre.
— Obviamente, sinalizo que você mente. E o faz indecentemente petulante.

— Eu, mentindo descaradamente?
— Sim, sem você saber eu doei todos os nossos pratos antigos que ganhamos de presente de casamento à dona Gustavinha do Chicão.
— Mas o cheiro de bacalhau não sumiu, tampouco foi de roldão. Persiste, a toda velocidade.
Serafina se abriu numa cara de poucos amigos:
— Este vasilhame redondo que você está comendo agora ‘faz parte dos recém-chegado’ que adquiri. Portanto, seu enchedor de saco, não tem nenhuma nesga atrelada à bacalhau ou a qualquer outro tipo de aroma ligado a este peixe (por sinal saboroso) ‘incrustrado’ nele. Se aquiete e faça a sua refeição em paz.

O Bressa seguia austero em sua opinião, aliás, obstinado e cabeçudo:
— Pode até ser novo este cocho em que como. Mas que fede a bacalhau, ah isto lhe asseguro catinga mesmo... venha aqui, esfregue o escutador de sons e sinta o que os fundilhos do meu órgão do olfato estão dizendo...

Serafina andava a ponto de perder as estribeiras. Fazia de tudo para não estourar:
— ‘Estão dizendo,’ ou você está dizendo?!
— Está dizendo...
Serafina indicava antecipadamente que no minuto vindouro mandaria para a vala do seu desagrado a paciência, e, de contrapeso, o cônjuge a fazer uma visitinha de cortesia à algum raio que o partisse, ou melhor, que o levasse para os quintos:
— Bressa, eu ouvi alto e em bom som. Você berrou ‘estão dizendo’.
— Não criatura. Eu disse, com todas as letras, CHEIRANDO.
— Insisto. Você latiu ‘estão dizendo.’
— Sua imbecil incompetente. Eu disse C H E I R A N D O O O O...
Serafina trepada nos cascos, passou os cinco dedos no prato e o fez voar com precisão certeira nos cornos da antipática e pedante criatura.

Título e Texto: Carina Bratt, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 29-10-2023 

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