terça-feira, 24 de outubro de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Chuva ácida

Aparecido Raimundo de Souza

VERÔNICA TRAZIA na boca o gosto ácido dos infindáveis caraminguás com os quais se relacionara durante toda a vida. No corpo inteiro, as marcas indeléveis dos amores tentados, e, no peito, as dores em virulenta profusão das paixões desfeitas. No frívolo incoerente dos olhos, recordações de figuras que usufruíram de seus melhores momentos no desfrute de infindáveis horas de prazer. Um diletantismo esmaecido e sem o fogo da mocidade, ou pior ainda, um resto dela que ainda insistia em manter uma tênue luz deixada pelo inóspito de uma distância alpestre.

Na alma combalida, estropiada e machucada, lembranças dos que se fartaram e se saciarem a bel prazer dos pecados da carne fraca. No geral, fantasmas iracundos se insurgiam do âmago de suas entranhas como se fossem restos de coisas repugnantes. Seu tato, sua química, seu suor, cheiros e gostos, aromas e olores, não dispunham agora do primor necessário para fazer alguém ficar por vontade própria. Faltava o distinto, o notável e o essencial, o excelente e o basilar.  Cicatrizes aqui e ali, lesões não curadas pareciam brechas profundas sedimentadas em sua armadura.

Verônica sentia, na verdade, a necessidade de manter a postura dos vinte, mas, o peso da solidão e a carga fastidiosa da casa das sessenta primaveras, não davam tréguas. Ao contrário, magoavam e feriam profundamente. Sua vida se assemelhava à dos covardes e vencidos – os covardes e vencidos não fazem história –, simplesmente passam e seguem em frente, sem deixar vestígios dos feitos realizados. Verônica não tinha feitos memoráveis, nem páginas escritas. Tão somente folhas soltas ao sabor do nada. Rascunhos, debuxos e boquejos absolutamente inúteis que para coisa alguma serviam. Sequer, a bem de algo sólido, poderiam ou deveriam ser conservados ou restaurados.

Apenas a fraqueza mirrada da covardia franzina e valetudinária de não ter tentado coisa melhor. O livro-base da sua existência vazia e débil estava totalmente em branco. Em paralelo, timbres e sons sem ressonâncias harmoniosas, se confundiam numa abstinência de vidas retalhadas em completo e total fracasso. Em caminho igual, gritos e brados, clamores e rogos se perdiam difusos. Seu espírito se deixara ser levado por ruas e estradas tortuosas de inseguras realidades, como as águas de um rio imenso, à esmo, buscando um afluente qualquer.

Verônica, como estas águas, desejava um canto de sossego onde descarregar as mágoas do longo caminho percorrido. Esquecer o destino inglório e encontrar um pouco de paz. Pelo que sua vida de altos e baixos pagou em tributos, em igual camada de dissabores e desgraças, o amanhã poderia lhe comprar respostas. Ao invés disso, o porvir que se descortinava à frente, se mostrava complicado demais. Era triste aos extremos. Solitário e melancólico em demasia. As pessoas que não tem nenhum tipo de problemas ou questiúnculas pendentes conseguem vislumbrar um porvir colorido. Somente elas gozam desta beatitude e se permitem atingir o Nirvana do privilégio fazendo com que a alma se veja e se sinta em tranquilidade total e ausente de qualquer sentimento pernicioso.

O resto, portanto, vegetava, malograva, naufragava “desprosperava,” em preto e branco.  Assim se resumia naquele instante o cotidiano de Verônica. Sem cor, sem brilho, sem um pingo de viço. Do acordar até a hora de voltar a dormir: à noite, igualmente longa e pegajosa, não ficava atrás: se fazia feia, hostil, sem sentido, mutilada. O mundo se assemelhava a um bicho pré-histórico de três cabeças a perseguir implacável. Ela, sozinha, se sentia numa espécie de hidrofobia viral. Tinha consciência, à morte, somente a Dama da Foice possuía o antídoto vital para tirá-la, de vez, daquela morbidez sem volta, daquela incerteza degradante, sem sentido lógico.

Seu universo inteiro parecia que se deslocara da órbita natural. Dava sinais de ter seguido um trilhar secundário que se distanciava a cada minuto do que deveria ser seu hoje-agora. A sintonia meridiana deste planeta, se adumbrava a uma espécie rara de zumbi errante em busca do nada. Literalmente, Verônica fizera um suco de limão apostemado, mais que azedo e jogara fora o doce néctar que o destino lhe presenteara. Sem saída, sem bifurcações novas à frente, sem objetivos a serem alcançados, Verônica estancou os passos, encarcerou seus anseios, abalou seus horizontes. Se interditou.

Pés e mãos atados, olhou em volta de si e não viu nada. Espiou o céu e só enxergou nuvens negras. Fechou os olhos e também, dentro de si, não encontrou razão para continuar vivendo. Viver se resumia em algo sem sentido, sem conformidade ou nexo. O viver se opunha desleal, incômodo e nocivo. Lembrou da rodovia. Havia uma, não muito longe. Uma autovia gulosa que consumia o progresso. Talvez se servisse dos seus insucessos. Caminhou apressada. Como um braço enorme estendido ao “não sei para onde,” uma passarela metálica cruzava para o outro lado.

Sob ela, carros, caminhões, ônibus e motos iam e vinham numa velocidade estonteante. Carros, caminhões, ônibus e motos passavam com pressa. Voavam ávidos de um destino certo.  Verônica não tinha destino, nem talvez, nem paradeiro. Menos ainda, ponto de chegada. Não dispunha de eira nem beira. Não sabia para onde ir, para onde chegar, para quem voltar. Não tinha o mínimo, ou melhor, um chão para continuar pisando. De repente, pulou num impulso incontido. Saltou do meio da passarela para o centro do desconhecido. Viajou com tudo, num plainar rápido e sem sentido, tão sem lógica como a sua vida sem brilho, sem sabor, sem razão de ser, sem o perfume das flores mais simples.

Mergulhou de cabeça, esvaneceu, se reduziu a nada para o transito do tudo tresloucado que fluía com uma intensidade cada vez mais sedenta de sangue. No oco frio dos olhos, as recordações de figuras antigas que usufruíram de seu corpo por algumas horas de prazer. Na alma combalida, afundada em transgressões, lembranças caducas dos muitos e milhares que se fartaram e se saciaram a bel prazer do pecado na sua forma mais agrumada. Cicatrizes aqui e ali pareciam cissuras em sua armadura. Os covardes e vencidos não fazem história. Indubitavelmente, os covardes e vencidos não fazem his...

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 24-10-2023

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2 comentários:

  1. Deveria cair uma chuva dessas em Brasília. Talvez a acidez acabasse com as merdas que abundam por lá, embora tenha plena consciência que merda não afunda, não se desintegra.
    Bebeto@gmail.com

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  2. Sobeja-nos tanto a paciência para tolerar os males alheios, quanto nos falta para suportar os próprios.
    Marquês de Maricá
    Eliodara Maria da Conceição

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