Aparecido Raimundo de Souza
Na alma combalida, estropiada
e machucada, lembranças dos que se fartaram e se saciarem a bel prazer dos
pecados da carne fraca. No geral, fantasmas iracundos se insurgiam do âmago de
suas entranhas como se fossem restos de coisas repugnantes. Seu tato, sua
química, seu suor, cheiros e gostos, aromas e olores, não dispunham agora do
primor necessário para fazer alguém ficar por vontade própria. Faltava o
distinto, o notável e o essencial, o excelente e o basilar. Cicatrizes aqui e ali, lesões não curadas pareciam
brechas profundas sedimentadas em sua armadura.
Verônica sentia, na verdade, a
necessidade de manter a postura dos vinte, mas, o peso da solidão e a carga
fastidiosa da casa das sessenta primaveras, não davam tréguas. Ao contrário,
magoavam e feriam profundamente. Sua vida se assemelhava à dos covardes e
vencidos – os covardes e vencidos não fazem história –, simplesmente passam e
seguem em frente, sem deixar vestígios dos feitos realizados. Verônica não
tinha feitos memoráveis, nem páginas escritas. Tão somente folhas soltas ao
sabor do nada. Rascunhos, debuxos e boquejos absolutamente inúteis que para
coisa alguma serviam. Sequer, a bem de algo sólido, poderiam ou deveriam ser
conservados ou restaurados.
Apenas a fraqueza mirrada da covardia franzina e valetudinária de não ter tentado coisa melhor. O livro-base da sua existência vazia e débil estava totalmente em branco. Em paralelo, timbres e sons sem ressonâncias harmoniosas, se confundiam numa abstinência de vidas retalhadas em completo e total fracasso. Em caminho igual, gritos e brados, clamores e rogos se perdiam difusos. Seu espírito se deixara ser levado por ruas e estradas tortuosas de inseguras realidades, como as águas de um rio imenso, à esmo, buscando um afluente qualquer.
Verônica, como estas águas,
desejava um canto de sossego onde descarregar as mágoas do longo caminho
percorrido. Esquecer o destino inglório e encontrar um pouco de paz. Pelo que
sua vida de altos e baixos pagou em tributos, em igual camada de dissabores e
desgraças, o amanhã poderia lhe comprar respostas. Ao invés disso, o porvir que
se descortinava à frente, se mostrava complicado demais. Era triste aos
extremos. Solitário e melancólico em demasia. As pessoas que não tem nenhum
tipo de problemas ou questiúnculas pendentes conseguem vislumbrar um porvir colorido.
Somente elas gozam desta beatitude e se permitem atingir o Nirvana do
privilégio fazendo com que a alma se veja e se sinta em tranquilidade total e
ausente de qualquer sentimento pernicioso.
O resto, portanto, vegetava,
malograva, naufragava “desprosperava,” em preto e branco. Assim se resumia naquele instante o cotidiano
de Verônica. Sem cor, sem brilho, sem um pingo de viço. Do acordar até a hora
de voltar a dormir: à noite, igualmente longa e pegajosa, não ficava atrás: se
fazia feia, hostil, sem sentido, mutilada. O mundo se assemelhava a um bicho
pré-histórico de três cabeças a perseguir implacável. Ela, sozinha, se sentia
numa espécie de hidrofobia viral. Tinha consciência, à morte, somente a Dama da
Foice possuía o antídoto vital para tirá-la, de vez, daquela morbidez sem
volta, daquela incerteza degradante, sem sentido lógico.
Seu universo inteiro parecia
que se deslocara da órbita natural. Dava sinais de ter seguido um trilhar
secundário que se distanciava a cada minuto do que deveria ser seu hoje-agora.
A sintonia meridiana deste planeta, se adumbrava a uma espécie rara de zumbi
errante em busca do nada. Literalmente, Verônica fizera um suco de limão
apostemado, mais que azedo e jogara fora o doce néctar que o destino lhe
presenteara. Sem saída, sem bifurcações novas à frente, sem objetivos a serem
alcançados, Verônica estancou os passos, encarcerou seus anseios, abalou seus
horizontes. Se interditou.
Pés e mãos atados, olhou em
volta de si e não viu nada. Espiou o céu e só enxergou nuvens negras. Fechou os
olhos e também, dentro de si, não encontrou razão para continuar vivendo. Viver
se resumia em algo sem sentido, sem conformidade ou nexo. O viver se opunha
desleal, incômodo e nocivo. Lembrou da rodovia. Havia uma, não muito longe. Uma
autovia gulosa que consumia o progresso. Talvez se servisse dos seus
insucessos. Caminhou apressada. Como um braço enorme estendido ao “não sei para
onde,” uma passarela metálica cruzava para o outro lado.
Sob ela, carros, caminhões,
ônibus e motos iam e vinham numa velocidade estonteante. Carros, caminhões,
ônibus e motos passavam com pressa. Voavam ávidos de um destino certo. Verônica não tinha destino, nem talvez, nem
paradeiro. Menos ainda, ponto de chegada. Não dispunha de eira nem beira. Não
sabia para onde ir, para onde chegar, para quem voltar. Não tinha o mínimo, ou
melhor, um chão para continuar pisando. De repente, pulou num impulso
incontido. Saltou do meio da passarela para o centro do desconhecido. Viajou
com tudo, num plainar rápido e sem sentido, tão sem lógica como a sua vida sem
brilho, sem sabor, sem razão de ser, sem o perfume das flores mais simples.
Mergulhou de cabeça,
esvaneceu, se reduziu a nada para o transito do tudo tresloucado que fluía com
uma intensidade cada vez mais sedenta de sangue. No oco frio dos olhos, as
recordações de figuras antigas que usufruíram de seu corpo por algumas horas de
prazer. Na alma combalida, afundada em transgressões, lembranças caducas dos
muitos e milhares que se fartaram e se saciaram a bel prazer do pecado na sua
forma mais agrumada. Cicatrizes aqui e ali pareciam cissuras em sua armadura.
Os covardes e vencidos não fazem história. Indubitavelmente, os covardes e
vencidos não fazem his...
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro,
24-10-2023
Espaço confinado
Recordações de um passado que não desgruda
Vidas líquidas
Bobices e bobagens
Uma pequena coceira na unha do pé crescida
Deveria cair uma chuva dessas em Brasília. Talvez a acidez acabasse com as merdas que abundam por lá, embora tenha plena consciência que merda não afunda, não se desintegra.
ResponderExcluirBebeto@gmail.com
Sobeja-nos tanto a paciência para tolerar os males alheios, quanto nos falta para suportar os próprios.
ResponderExcluirMarquês de Maricá
Eliodara Maria da Conceição