João Távora
Por estes dias ouve-se falar
muito de paz, da necessidade de paz, do fim das injustiças, e eu reconheço que
esse é um debate muito estimulante. O problema é que implementá-la à força
constituiria sempre uma extrema violência, uma batalha ainda mais atroz. Quase
que me envergonho de afirmar que a paz é contranatura. Eu cresci no meio de
cinco irmãos, quase com a mesma idade, e sei do que falo. Lembro-me de como o
sistema repressivo implementado pelos meus pais nem sempre funcionava como o de
um colégio modelar, e como entre nós às vezes armávamos umas guerras intestinas
– é inerente à espécie humana a competitividade, a luta pelo poder, já para não
falar de sentimentos obscuros e outras motivações muito pouco nobres.
Que a Miss Mundo e poetas desorientados pretendam acabar com as guerras é perfeitamente compreensível – até eu caio nesse equívoco. Só que eles não entendem que o que desejam é um mundo sem pessoas. Sem pertença familiar, cultural, religiosa, enfim; sem desejo, sem afetos, sem humanidade. A canção “Imagine” do John Lennon é um logro infantil. Mas não pensem que eu não desejo a paz no Mundo: rezo por ela frequentemente, mas principalmente pela minha paz interior, que também é difícil, mas está mais ao meu alcance. E não precisamos de ir para o Médio Oriente para perceber como é extremamente difícil de desmontar os equívocos intrincados e sobrepostos de erros humanos talvez bem-intencionados que ao longo da história cavaram feridas e acicatam ressentimentos, zangas e ódios, por estes dias gravados na pedra. No outro lado de um ato de justiça encontra-se muitas vezes uma brutal injustiça, invisível do ângulo contrário.
A história ensina-nos como a arquitetura de uma paz
duradoura provém quase sempre duma contenda e dum derrotado, duma narrativa que
subsista a preto e branco, onde dificilmente cabe um espírito humano, muito
menos a história dos povos envolvidos. Depois, a excessiva simplificação de um
conflito complexo é a tentação de quem pretende tomar posição nele. Sem o
assumirem, os ativistas quando reclamam a paz num determinado conflito tomam
partido pela capitulação dum dos lados. Eu posso oferecer a outra face
(render-me) para terminar uma determinada contenda que pareça insanável, mas
não posso exigir que um terceiro o faça para minha conveniência, ou para
conveniência de valores que eu considere superiores.
Uma guerra é um enorme
incómodo para os nossos olhos, é uma aberração para qualquer alma nobre e
bem-intencionada. Esfrega-nos na cara como a morte e a perversão destrutiva
residem dentro de cada um de nós, domesticada e arrumada numa recôndita
prateleira da nossa consciência funcional. Não é difícil, num conflito
profissional ou familiar, como os que acontecem aos comuns mortais, adivinhar
essa força brutal que reside no fundo de cada um de nós e com raízes num
indomável instinto de sobrevivência. Bom mesmo é não submergir nessas águas
fundas.
Só há uma coisa pior que a
desconcertante e trágica natureza humana: aqueles que acham possível mudá-la
através da lei ou de sistemas políticos. Está mais que provado que a construção
de um Homem Novo é um processo por demais sanguinário e violento. O espírito
humano não se encaixa dentro dumas talas. Além do mais a verdadeira salvação só
será alcançável através de um ato de liberdade – pessoal e intransmissível. Só
pretende mudar o mundo quem tem receio de se mudar a si próprio.
Título e Texto: João Távora,
Corta-fitas,
17-11-2023
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