domingo, 26 de novembro de 2023

[As danações de Carina] É escrevendo que as minhas loucuras ‘desafloram’

Carina Bratt

‘Metida tenho a mão na consciência e não falo senão verdades puras que me ensinou a viva experiência.’
Camões – Sonetos.

NÃO QUERO que ninguém seja o meu muro das lamentações. Também sou muito nova para ter cara de Jerusalém. Às vezes penso com os botões da minha sainha curta que os meus sonhos mais almejados estacionaram na garagem do prédio onde moro. Noutras me imagino na pele de um passarinho sem casa, ou até mesmo escondidinho (como uma outra ave solitária da mesma estirpe) carente de uma gaiola para se abrigar dos predadores.

Entre uma casa e uma gaiola, prefiro a porta da rua sem tramelas ou chaves. Gosto de sentir em meio ao rosto a liberdade em toda a sua formosura. Amo reviver aqueles sonhos das mil e uma noites que chegam pleno e me transportam para além do ponto onde a minha imaginação sequer alcança. Quando menciono além da imaginação, me refiro, à liberdade plena, sem qualquer tipo de amarra, sem a interferência de uma vida medíocre. Gosto de ser livre e solta, leve e desagregada de qualquer compromisso.

Faço cara feia, rodo a baiana, subo nas tamancas, quando recebo ordens expressas de quem quer que seja para fazer alguma coisa que não esteja na minha lista pré-aprovada pelo ‘eu’ interior. Fico braba, viro fera ferida, quando não posso transitar pelas ruas, sentar no banco da pracinha, tomar água de coco ou chupar um sorvete espiando o Cristo Redentor (contemplado) por este lado aconchegante do calçadão da Lagoa Rodrigo de Freitas. É legal ser livre. Poder ir para onde bem entender e der na telha.


Me faço radiosa entrar numa loja sofisticada do Barra Shopping na Avenida das Américas ou numa sapataria não muito badalada ao longo da Nossa Senhora de Copacabana ou da Siqueira Campos e comprar um pisante novo... ou simplesmente dar uma paradinha no Lido e ficar olhando para o ‘nada.’ Sempre que venho na pracinha do Lido, me recordo que ali em frente, num prédio modesto, num apê do segundo andar, morou por muitos e muitos anos, o escritor Orígenes Lessa. Aquele do ‘Feijão e o Sonho’, ‘Memórias de um fusca.’’ Que Deus o tenha!

Andar pelo calçadão da elegante Avenida Atlântica, atingindo o Museu do antigo Forte de Copacabana, na Praça Cel. Eugênio Franco, me vem de novo à cabeça, o ‘nada.’ O ‘nada’ muitas vezes me visita. Quando isto ocorre, me transporta para lugares e situações interessantes. Na derradeira vez em que estive no mundo do ‘nada,’ parei de pontilhar os erros das pessoas que fazem parte do meu dia, colocando um círculo em derredor do que não quero definitivamente para o sustento do meu cotidiano.

Nestas viagens curtas que empreendo, descobri que a morte não é tão feia quanto costumam pintar. Apenas nos dá... ou dito mais objetivamente... me dá a certeza incerta de que um dia (espero que este momento demore a me encontrar) eu passarei para o outro lado do caminho. Com este pensamento meio amalucado, me certifico que cada pessoa que esbarra em mim (seja por acaso ou não), eu a veja e a sinta como um pedaço de alma desprendida em busca de um chão amigo, tipo um porto seguro. É maravilhoso a gente se sentir útil ao acaso das vidas que passam.

Ainda que estas criaturas não estejam marcadas em nosso convívio de todas as horas. Euzinha poderia pintar minha outra face com qualquer desgosto que orbita diante de meus escancelos. Todavia, não o faço. Apago, deleto, espanto. Arisca, safa, esperta, dona de mim, senhora dos meus sonhos mais tresloucados, afugento os dissabores. Levanto a cabeça, demarco o horizonte e sigo em frente. Sempre em frente. Para trás, como dizia meu papito, ‘nem para tomar impulso.’

Título e Texto: Carina Bratt, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 26-11-2023

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