sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

[Aparecido rasga o verbo] O “Bigo”

Aparecido Raimundo de Souza

A PRINCÍPIO SHELL
não entendeu aquele papo que toda a galera vivia comentando quando se reunia na quadra de esportes ou nas mesas em derredor da cantina na hora do recreio. O pessoal não pronunciava duas frases que logo vinha embutido, de roldão, o tal do “bigo.” Parece ter virado febre, a coisa. Curioso, o rapaz resolveu pesquisar na biblioteca. Certamente, em meio de uma infinidade de livros, encontraria um que lhe mostrasse o significado e, então, não ficaria deslocado dos outros, feito bicho do mato. Chegou mais cedo no colégio, numa sexta – feira e tratou de procurar pelo que tanto lhe encuca a cabeça. Apresentou a carteirinha à senhora do hall e se embrenhou por entre as inúmeras prateleiras que se perdiam pelo imenso salão. Ao entrar num dos corredores, estancou os passos. Reconheceu, de pronto, as vozes risonhas de Penélope e Marina, duas coleguinhas da sua classe que conversavam acomodadas numa das muitas bancadas existentes:
— Marina, você viu o “bigo” da Cíntia? Parece que foi desenhado por um especialista:
— Pois é. E o da Regiane! Viu o da Regiane?

— Impecável. Ao contrário da Gina...
— Feio pra caramba!
— Também pudera. O “bigo” dela tem caminho certo de onde veio puxado:
— De quem veio puxado, dando nomes aos bois?
— A mãe dela, ora bolas, a dona Maria da Glória. Quem mais? O “bigo” da quarentona lembra um bolo de aniversário com uma mordida no centro:
— Um bolo de aniversário? Não entendi essa sua comparação:
— Já viu um bolo de aniversário?
— Claro!
— Antes de a criançada chegar e cantar parabéns?
— Sim, e daí?

— Tente visualizar, na sua imaginação, um bolo desses comprados em padarias, com uma dentada antes do aniversariante apagar as velinhas e os convidados cantarem os parabéns...
— É esquisito!
— Demais, amiga. Assim, é o “bigo” de dona Maria da Glória:
— Onde você viu o “bigo” de dona Maria da Glória?
— No dia da aula de educação física do professor Teodorico. Ela veio trazer a Gina, e, enquanto esperava, acho que deu vontade de ir até o banheiro fazer xixi. Por quê?
— Por nada. E o da filha dela? Como sabe que é feio e puxou o da mãe?
— Da Gina, na verdade, eu vi sem querer, no vestiário:
— No vestiário? Ela te mostrou?
— Não.
— Então?

— Foi assim. Cheguei de repente e lá estava ela com a Aninha “Bole-Bole.” Altos papos...
— Entendi. Ela mostrava o “bigo” pra “Bole-Bole”?
— Mais ou menos. A “Bole-Bole,” muito séria, se assemelhava numa dessas lagartixas debruçadas na parede. Prostrada de cabeça pra baixo, observava:
— Vai ver ela deu uma mordida de leve e não apreciou o gosto da fruta...

— Não se pode descartar essa teoria. Todo mundo fala que a Aninha é “invertida,” ou melhor, é querr. Grosso modo, sapatona, embora ninguém, até hoje, tenha flagrado a figura com a boca na botija. Depois, não acredito que a sua coragem chegasse a ponto de fazer alguma coisa, logo num lugar onde toda a escola circula entrando e saindo de maneira contínua:
— Como explicaria a seriedade dela?
— Não parei pra pensar nesse assunto:
— Mudando o rumo da conversa: e o meu. Espia. Você acha o meu “bigo” esquisito?

— Não. Engraçadinho!
— Engraçadinho?
— Foi o que eu disse:
— Não desdenhe. O seu, por acaso é alguma joia rara?
— Pode não ser, mas que chama a atenção, ninguém da nossa turma, ou melhor, de toda a escola, negaria o capricho inimitável com o qual meus pais tiveram o cuidado de confeccionar:
— Convencida! Como sabe que a escola inteira suspira por ele?
— Os moleques quando me vêm com a barriguinha de fora por aí comentam, falam... trocam cochichos...
— ... Não sabia desse particular. O que rola?
— Frases do tipo “que “bigo” bonito, o dela!; quem me dera tivesse um “bigo” desses ao alcance das mãos pra beijar; acariciar e... de repente, mordiscar...””

— Mordiscar, Penélope?
— Isso mesmo. A propósito: você deixaria alguém mordiscar o seu “bigo”?
— Sem pensar duas vezes, Penélope. Mandava cair em cima, de pau... de língua... o diabo à quatro...
— Que horror!
— Vou te contar um segredo. Não tem um guri novo que chegou, não faz muito tempo, vindo transferido de outra localidade?
— O Shell?
— Ele mesmo!
— O que é que está se passando com o piá? Cá entre nós duas. Um belo exemplar de homem. Dentro em breve... estará sendo disputado à tapas e beliscões pelas santinhas que se dizem e se acham intocáveis. Espere e verá que tenho razão:
— Dizem que é “invertido”

— Não acho!
— Olha só o carinha. Não se enturma, não se entrosa, vive pelos cantos, não faz amizades. Sai da escola correndo, não conversa com ninguém, não frequenta a nossa cantina, é metido e, para completar, não deu em cima de nenhuma das donzelas...
— Isso não quer dizer que ele seja uma aberração. Leve em conta que convive com a gente não tem um espaço muito grande. Vamos dar tempo ao tempo:
— Mas que tem cara, não se pode negar...
— Discordo. Acho que é tímido. Vou cair matando em cima dele. Quer que lhe diga outra coisa? Se eu mostrar o meu “bigo” pra ele..., tenho certeza de que não resistirá. Cairá de joelhos...
Shell repentinamente começou a tremer. Um nervosismo inexplicável, até então nunca sentido, faz com que passasse a chorar e a roer as unhas desesperadamente. E se as duas, por azar, o pegassem ali? O que diria a elas? Precisava ir embora. A história fora de esquadro que acabara de escutar, ou seja, a de que todo mundo achava que ele se assemelhava num degenerado, não havia sido absolvida pelo seu organismo.

Algo ficara entalado cruelmente em sua garganta. Será que somente pelo fato de viver afastado dos outros, se posicionar na sua, se ocultar quieto em seu canto, esse quadro levava os colegas a concluírem que ele era da pá virada?
— “Filhos da mãe – pensou enxugando as lágrimas. – “Eles vão ver quem é o gay ou seja lá que outro nome essa escola tenha inventado para fomentar toda essa confusão”?

Shell decidiu naquele momento de profunda amargura e agonia, misturada com ódio e intensa aflição, que em dias vindouros mostraria a seus pares – notadamente para a ala feminina, que ele se consubstanciava num ser humano normal – um cidadão como os demais, tentando se adaptar numa escola de riquinhos e mimados, onde ele, até aquele momento cruciante, não passava de um estranho no ninho. Maldito “bigo.” Tudo acontecendo por causa dessa droga de “bigo.” “Bigo, bigo, bigo”! O nervosismo bateu forte, tão violentamente estrondoso que não evitou de se aliviar ali mesmo, na calça.

Fugiu como um rato, sem que se deixasse ser percebido. Dia seguinte se dedicaria a seguir pesquisando uma centena de publicações. Todavia, nada. Gastou quinze dias navegando na Internet e lendo compêndios e enciclopédias. Em vão. Encontrou, nessa Via crucis, somente a palavra “biga,” que significava carro romano de duas ou quatro rodas puxado por dois cavalos e “bigu,” – aquele que andava de carona. O maldito do “bigo,” que interessava, para lhe salvar daquela enrascada, tipo lavar a honra, nem sinal.
Resolveu encarar o pai, à noite, logo que seu velho chegou do batente:
— Paiê, o senhor acha meu “bigo” feio ou bonito?
O pai cortou a prosa de maneira fulminante:
— Estou ocupado agora, filho. Pergunte à sua mãe...
Ansioso, Shell não se fez de rogado, nem se deu por vencido. Repetiu a pergunta à mãe, sequioso por uma resposta à altura, ou pelo menos alguma coisa mais concisa que salvasse a sua dignidade e levantasse a moral:

— Mãinhê, a senhora acha o meu “bigo” feio ou bonito?
Com um sorriso largo, a mulher se achegou do jovem. Depositou um beijo demorado em seu rosto e, por fim, respondeu:
— Meu fedelho lindo do coração. Seu “bigo” é o mais bonito que a mamãe já viu em toda a sua vida. Acaso eu sonhe que alguém achou o seu “bigo” feio, juro que aplico uma surra memorável de arrancar pedaços e deixar sequelas seja lá em quem for, por longo tempo...
A mãe se abriu numa respirada para tomar fôlego e continuou, o rosto aberto numa alegria franca:
— Tem mais um detalhe, meu príncipe: essa cicatriz que todos carregamos na altura do ventre, é a maior prova de que a partir do momento em que se faz visível em nosso corpo, é quando efetivamente começamos a viver com os nossos próprios pés.

Em seguida acariciou o “bigo,” ou melhor, o umbigo da sua cria e acrescentou matreira:
— Olha que “bigo,” digo, que umbiguinho lindo você tem!
Então toda essa droga de “bigo” não ia além daquele pequeno furo anatômico localizado na região da sua barriga? Droga! Nos dias que se seguiram Shell resolveu deixar à mostra o seu “bigo-umbigo.” Não deu outra. Os moleques, ao cruzarem com ele, ficaram com uma pontinha de inveja e ciúme, notadamente ao verem a mudança repentina em seus trajes mostrando aquela cicatriz que até então se fazia acasalada de todos. Não parou aí. As meninas, suspirosas e melosas, se achegaram, puxaram conversa, convidaram para lanches, caíram em cima, como moscas varejeiras, para ser mais direto e preciso. Todavia, o alvoroço se deu com a bela e esfuziante Penélope que, aliás, ele começou a namorar uma semana depois e trocou os primeiros beijos. E claro, às escondidas, suaves mordiscadas e lambidas, entre outras intimidades em seu “bigo.”

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 19-1-2024

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3 comentários:

  1. Dei boas gargalhadas!! Sua forma de escrever brincando com nuances, o "bigo" e igual gosto cada um tem um!
    E de fato, antes de nós desligar de nossas mães, e cordão umbilical, e quando colocamos nossa nariz para fora da barriga, o médico vem com sua tesoura,tratar de nós individualizar,assim cada um com seu bigo vamos sempre apreciar as diferenças com bom humor do nosso amigo que nós escreveu .
    Gratidão apa!!

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  2. Aparecido sempre nos presenteando com pequenos gestos. Mimos bobos e simplórios que em face da sua fértil, imaginação, cria vida e forma. Dito de maneira mais ampla: de uma simples palavra, às vezes desconhecida, escreve e dá vida à vários personagens. É o caso do 'Bigo.' Forma 'metadeada' de umbigo. Na expectativa de desvendar o mistério, o leitor viaja, 'Bigo,' bigo,' bigo,' - o que será que quer dizer essas quatro letras conhecidas, usque inseridas numa palavra de efeito tão grande? 'Bigo,' nada mais é que o conhecido umbigo. Coisa simples, corriqueira, todo mundo tem, todo mundo sabe o que é e onde fica. Shell tinha o seu 'Bigo' ao alcance das mãos. Desconhecia. Todos os seus colegas tinham, mas ele, transferido de outra escola, estava perdido, se passando por um bobo da corte. Mais que um bobo. A ponto do seu desconhecimento levar uma escola inteira, ou mais precisamente a ala feminina a pensar que ele não ia além de um borra-botas. Nem um livro o socorreu na imensa biblioteca. Tampouco o pai, com seus afazeres, se viu apto a parar, pensar, meditar e dizer alguma coisa, ainda que essa 'alguma coisa' fosse uma tremenda disparidade. O texto finaliza magistralmente nos levando a acreditar nos auspiciosos afagos de uma mãe de verdade. Uma mãe que sem atropelos, sem discussões, esclarece ao seu rebento, o que significa, em toda a sua plenitude, o desconhecido 'Bigo'. Prova disso, aliás fato inconteste que as nossas queridas e insubstituíveis mães, de cujos ventres todas nós saímos, carinhosamente, elegantemente, sutilmente tirou o filhote de uma grande e porque não dizer humilhante situação. E sem querer, fez mais. 'Milagrou.' com brilhantismo, o caminho do filho. Moldada num gesto supremo, livrou o filho de uma senda de miseráveis que o considerava 'esquisito' e ainda, de lambuja, como prêmio, engatou em seu caminho de altos e baixos, uma jovenzinha que nutria por ele um amor incomensurável. A Penélope. São, pois, esses pequenos mimos desconhecidos que o Aparecido usa, e nos remete a um mundo encantado. Onde, no final, sempre o bem vence com maestria.
    Carina Bratt
    de Curitiba, no Paraná.

    EM TEMPO: Pedir mil desculpas ao meu amigo e editor Jim, pelo envio do meu texto em horário acima do combinado. Careci viajar às pressas para Curitiba, aqui no Paraná em face do falecimento de minha avó. Possivelmente numa de minhas futuras 'Danações,' falarei um pouquinho dela e da saudade imensa que ela deixou em meu coração.

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