Eric Voegelin, Editora Universidade de Brasília, 1982, 138 páginas; versão original: 1952, The University of Chicago.
A opinião de Humberto Serrab,
11 de dezembro de 2013, no skoob:
Um livro estupendo:
filosofia clássica e medieval apresentadas como raízes do pensamento político
moderno
O filósofo alemão Eric
Voegelin não pode ser resumido em sentenças de fácil apreensão. Isso porque em
sua profícua vida acadêmica, em boa parte transcorrida nos Estados Unidos, para
onde se exilou voluntariamente a partir de 1936, Voegelin refletiu profundamente
sobre temas relacionados à multidisciplinaridade das ciências humanas –
filosofia, história, literatura, ciência política – com o objetivo de rastrear
as origens intelectuais dos fenômenos ideológicos de massa contemporâneos, como
o fascismo e o socialismo. Ambos obliteravam a realidade da experiência social,
ao mesmo tempo em que cegavam espiritualmente grandes contingentes humanos no
rastro da “amnésia” social.
Na presente coletânea de
ensaios – proferidos na Universidade de Chicago em 1951 – justamente no templo
intelectual das doutrinas utilitaristas do liberalismo econômico, Voegelin
procurou recolocar o problema da ciência política para além da análise de superfície
das leis, instituições, sistemas eleitorais e partidos políticos. Para o
filósofo, a metodologia para o estudo destes temas contemplava tão somente
aspectos de um positivismo histórico cujo objetivo seria a auto-interpretação
de mecânicas comportamentais de uma sociedade. Mas nada falariam a respeito dos
“valores” que embasassem a ação do homem no mundo.
Para preencher esta lacuna, logo na Introdução percebe-se a séria crítica feita por Voegelin a outro gigante das ciências sociais, Max Weber. Os valores, ideias ordenadoras da atuação política, passaram a ser tomados em fins de século XIX como anticientíficos. Ou seja, impossíveis de comprovação pela experimentação. Ora, se o método positivista não permitia o cotejamento entre distintos arcabouços valorativos, por conta da impossibilidade apresentada, então cada teoria recortaria os fatos da experiência de modo a validar a sua auto-comprovação. Daí o relativismo. Um mesmo fato poderia ser explicado de formas diferenciadas, mas iguais entre si quanto ao conteúdo. Mero jogo de versões.
Voegelin mostra como Max Weber reconhecia a existência dos valores, mas considerou-os uma espécie de “caixa preta” (ênfase minha) em nome da isenção no debate científico. Weber teria ensinado aos seus alunos por “vias indiretas”, posto que evitasse discutir sobre os princípios que emergiam de cada teoria. Não aceitou a tarefa de modificar noções “demoníacas em seus estudantes”, apelando assim para a “ética da responsabilidade” do governante. A omissão weberiana produziria consequências nefastas: pressupostos falsos sobre a realidade poderiam conduzir a ação política em direção à esfera do totalitarismo por causa de sonhos gloriosos do futuro. Os meios seriam justificados em função dos fins. O segundo ponto de crítica a Weber, que o mantinha impassível em relação à discussão dos valores, tinha a ver com um falso pressuposto: o de que a história seria a evolução do racionalismo, a partir do qual o ponto presente constitui marco superior em relação ao passado.
Voegelin reconduz a metafísica
ao estudo da política ao confrontar o racionalismo positivista que limitou a
realidade humana ao campo da imanência. Quem quisesse rebaixar a política de
Platão, Aristóteles e São Tomás ao nível de “valores”, precisaria provar que as
formulações que fizeram não eram científicas. Quem poderia fazer isso? Ninguém.
Por isso que a mera “descrição das chamadas instituições representativas” não
poderiam saciar o interesse de Voegelin na busca da compreensão de uma ordem.
Para tanto, ele discute a verdadeira razão que permite a uma sociedade política
“existir e atuar na história”: através da natureza da representação. A base da
representação alicerça-se em uma ordem subjetiva e espiritual – cósmica,
divina, humana, mitológica – de que partilham os componentes de uma sociedade
política. Essa, digamos assim, cosmologia intrínseca e transcendente em relação
à realidade e sua autointerpretação, encontram fronteiras temporais e
históricas, formando todo um patrimônio institucional, cultural e jurídico das
mais diversas civilizações. O significado que o eu dá ao mundo exterior recebe
o nome de cosmion, segundo a tradição aristotélica. Só que as sociedades se
comunicam com a ordem do cosmion através da simbolização dos ritos, mitos e
teorias em diferentes níveis de “compactação” e “diferenciação”. Ora, quando é
que a representação ganha significado para os governados? Quando os atos
políticos são percebidos pela comunidade como de cumprimento obrigatório. Com
efeito, a atuação do governante para a proteção, a aplicação da justiça, a
manutenção da paz, etc. tem uma correlação articulada com os símbolos da ordem
cósmica partilhados entre a gente comum.
Sociedade antigas, como a
Pérsia, Mesopotâmia, Egito e até mesmo a Mongol, fundaram a sua representação
política sobre o mito cosmológico. A ordem política era uma expressão de algum
mito de fundação, o qual mantinha a ordem interna pela repulsão às visões
cosmogônicas de outros povos, considerados como “agressores”.
Voegelin também discute
problemas interessantíssimos do processo de passagem do politeísmo para o
Cristianismo em fins do Império Romano, tentando focalizar os limites teóricos
na representação divina dos imperadores sobre a vida religiosa das fronteiras
romanas. Teoricamente, a filosofia cristã abriu caminho para que, durante o
medievo, a ordem histórica transcendente fosse imanentizada em ciclos
históricos visíveis no plano terreno. Essa ideia germinou-se em Agostinho,
sendo mais tarde desenvolvida por Joaquim de Flora, no séc. XII.
O movimento protestante
puritano, do século XVII, passou a ser identificado como gnóstico quando
procurou determinar o comportamento privado e público dos fiéis em nome de uma
salvação futura, dissolvendo a verdade divina em regras visíveis na ordem dos fatos.
Ademais, a noção de que as
sociedades humanas caminham para um desfecho determinado pela escatologia
imanente chegou ao pensamento político moderno via Thomas Hobbes, um formidável
intelectual preocupado com a formação de um contrato que garantisse a estabilidade
da ordem política entre governo e os cidadãos. Ainda que Hobbes não tenha se
dedicado ao problema da existência humana na ordem do ser, suas ideias foram
aproveitadas mais tarde pelo Iluminismo. Em qual sentido?
Voegelin discute que a
simbologia política ampliou em diferenciação até alcançar a modernidade liberal
e socialista. São gnósticas na medida em que destronaram Deus como fonte da
ordem transcendente da história e colocaram em suas próprias teorias o vislumbre
de um mundo vindouro – a terra prometida de igualdade, prosperidade, bem-estar
e fim das contradições humanas. Tanto marxismo como liberalismo rejeitaram as
dificuldades do Cristianismo e, no gnosticismo, encontraram as raízes teóricas
para que se autointitulassem a força política de Deus na história. Ídolos de
barro que, cada qual ao seu modo, lançaram a modernidade nos braços dos
totalitarismos, justificando pela glória futura o horror tanto dos fornos
crematórios nazistas quanto dos gulags soviéticos.
Humberto Serrab, 11-12-2013
⭐⭐⭐
Casa-grande & senzala, Gilberto Freyre
Medo do conhecimento: contra o relativismo e o construtivismo
O segredo de Espinosa
Brigitte Bardot: Le Pape c’est un branquignol!
Ces statues que l’on abat
Front Populaire
Livre Noir
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-