terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Perigos do gnosticismo como teologia civil da sociedade ocidental

Eric Voegelin

Essa exposição dos perigos do gnosticismo como teologia civil da sociedade ocidental talvez haja suscitado algumas dúvidas. A análise aplica-se inteiramente apenas às variedades progressivistas e idealistas prevalecentes nas democracias ocidentais; não se aplicaria tão bem às variedades ativistas que prevalecem nos impérios totalitários.

Qualquer que seja a parcela de responsabilidade pela situação atual que se possa atribuir aos progressivistas e idealistas. a fonte mais formidável de perigo iminente parece residir nos ativistas. A íntima conexão entre os dois perigos, por conseguinte, exige esclarecimento — tanto mais quanto os representantes das duas variedades de gnosticismo são antagonistas em luta no mundo inteiro. A análise dessa questão adicional pode perfeitamente usar como prefácio os pronunciamentos de um famoso intelectual liberal a respeito do problema do comunismo:

”Lenin estava certamente com razão quando buscou o objetivo de construir seu céu na terra e inscrever os preceitos de sua fé' no tecido interno de uma humanidade universal. Ele também estava sem dúvida certo ao reconhecer que a guerra é o prelúdio da paz, e que é inútil supor que se possa alterar a tradição de incontáveis gerações, dir-se-ia, da noite para o dia”

”O poder de qualquer religião sobrenatural para construir essa tradição desapareceu; a acumulação da pesquisa científica desde Descartes foi fatal para sua autoridade. Portanto, é difícil imaginar sobre que bases podem ser reconstruída a tradição civilizada exceto sobre a ideia em que a Revolução Russa se fundamentou. Ela corresponde, abstração feita do   elemento sobrenatural, ao    mesmo clima no qual o Cristianismo se tornou a religião oficial do Ocidente’'

”Na verdade, em certo sentido é válido dizer que o princípio russo tem maior alcance do que o cristão, uma vez que busca a salvação das massas através da realização nesta vida, dando por isso novo ordenamento ao mundo real que conhecemos’.”

Poucas passagens poderiam revelar mais claramente a situação do intelectual liberal de nosso tempo. A filosofia e o Cristianismo estão além de seu raio de experiência. A ciência, além de constituir um instrumento para dominar a natureza, é algo que o faz suficientemente sofisticado a ponto de não acreditar em Deus. O céu será construído na terra. A autossalvação, a tragédia do gnosticismo que Nietzsche sofreu com intensidade máxima até que sua alma se quebrou, é uma realização da vida que chega a cada homem com a sensação de que ele está contribuindo para a sociedade de acordo com sua capacidade, compensada pelo salário ao fim do mês.

Não há qualquer problema relativo à existência na sociedade exceto a satisfação imanente das massas. A análise política indica quem será o vencedor, de modo que o intelectual possa, no momento oportuno, conseguir um emprego como teólogo da corte no império comunista. E as pessoas espertas poderão acompanhá-lo em suas hábeis manobras para conservar-se na crista da onda do futuro. A situação é hoje bastante conhecida e dispensa maiores comentários.

É o caso dos paracletos menores em que o espírito se agita; que sentem o dever de desempenhar um papel público e de servir como professores para a humanidade; que de boa-fé substituem seu conhecimento crítico por suas convicções; e, com a consciência inteiramente tranquila, expressam opiniões acerca de problemas que estão fora de seu alcance. Além disso, não se deve negar a consistência e honestidade imanentes dessa transição do liberalismo para o comunismo; se o liberalismo for entendido como a salvação imanente do homem e da sociedade, o comunismo é certamente sua expressão mais radical. Trata-se de uma evolução que já fora prenunciada pela fé de John Stuart MiIl no advento último do comunismo para a humanidade.

Em linguagem mais técnica, o problema pode ser formulado da seguinte forma. As três variedades possíveis de imanentização — teleológica, axiológica e ativista não constituem apenas três tipos coordenados, mas se relacionam umas às outras dinamicamente. Em cada onda do movimento gnóstico, as variedades progressista e utópica tenderão a formar a ala direita, deixando boa parte da perfeição final à evolução gradual e à acomodação da tensão entre a conquistas reais e o ideal; a variedade ativista tenderá a formar a ala esquerda, agindo violentamente na busca da realização completa do reino perfeito.

A distribuição dos crentes entre a direita e a esquerda será em parte determinada por equações pessoais, como entusiasmo, temperamento e consistência; todavia, para outras pessoas, talvez a maioria, a distribuição será determinada por sua relação com o meio civilizacional em que ocorre a revolução gnóstica.  Pois não se deve esquecer jamais que a sociedade ocidental não é inteiramente moderna, e sim que a modernidade é um tumor dentro dela, em oposição à tradição clássica e cristã.

Se só existisse o gnosticismo na sociedade ocidental, o movimento em direção à esquerda seria irresistível por pertencer à lógica da imanentizaçâo, já tendo-se consumado há muito tempo. No entanto, o fato é que as grandes revoluções ocidentais do passado, após sua lógica guinada para a esquerda, retornaram a uma ordem pública que refletia o equilíbrio das forças sociais no momento, juntamente com seus interesses econômicos e tradições civilizacionais.

O receio ou a esperança, dependendo do caso, de que as revoluções ”parciais” do passado serão seguidas pela revolução ”radical” e pelo estabelecimento do reino final baseia-se na premissa de que as tradições da sociedade ocidental estão agora suficientemente arruinadas e que as famosas massas estão prontas para dar o bote fatal.

Por conseguinte, a dinâmica do gnosticismo desenvolve-se ao longo de duas linhas. Na dimensão da profundidade histórica, o gnosticismo move-se da imanentização parcial dos meados da Idade Média para a imanentização radical da atualidade. E, com cada onda e erupção revolucionária, ele se move da direita para a esquerda. Entretanto, a tese de que essas duas linhas da dinâmica devem agora encontrar-se de acordo com sua lógica interna, de que a sociedade ocidental está madura para cair no comunismo, de que o curso da história ocidental é determinado pela lógica de sua modernidade e por nada mais — essa tese é uma instância impertinente da propaganda gnóstica no que ela tem de mais tolo e corrupto, nada tendo a ver certamente com o estudo crítico da política.

Contra essa tese cabe apontar diversos fatos hoje obscurecidos porque o debate está dominado por clichês liberais. Em primeiro lugar, o movimento comunista na própria sociedade ocidental, onde quer que tenha tido de depender apenas de seu apelo de massas sem a ajuda do governo soviético, não chegou a nada.

O único movimento gnóstico ativista que alcançou um grau notável de sucesso foi o movimento nacional-socialista, em base nacional limitada; e a natureza suicida desse êxito ativista é amplamente testemunhada pela abominável corrupção interna do regime enquanto durou e pelas ruínas das cidades alemãs.

Em segundo lugar, a situação atual do Ocidente diante do perigo soviético, na medida em que decorre da criação do vácuo de poder anteriormente descrito, não se deve ao comunismo. O vácuo de poder foi criado livremente pelos governos democráticos ocidentais, do alto de uma vitória militar, sem sofrer a pressão de ninguém.

Em terceiro lugar, o fato de que a União Soviética seja uma grande potência em expansão no continente europeu nada tem a ver com o comunismo. A extensão atual do império soviético, englobando as nações satélites, corresponde em linhas gerais ao programa de um império eslavo sob hegemonia russa, tal como proposto, por exemplo, por Bakunin a Nicolau I. É perfeitamente concebível que um império hegemônico russo não comunista tivesse hoje as mesmas dimensões do império soviético, constituindo perigo ainda maior pela possibilidade de estar mais solidamente consolidado. Em quarto lugar, o império soviético, conquanto seja uma potência formidável, não põe em perigo a Europa Ocidental ao nível da forma material. 

Estatísticas elementares mostram que a força de trabalho, os recursos naturais e o potencial industrial da Europa Ocidental são comparáveis a qualquer força que o império soviético possa reunir — sem contar com nosso próprio poder nos bastidores. O perigo nasce estritamente do particularismo nacional e da paralisante confusão moral e intelectual.

Assim, o problema do perigo comunista recai sobre o problema da paralisia ocidental e da política autodestruitiva gerada pelo sonho gnóstico. As passagens citadas acima mostram a fonte da dificuldade. O risco de derrapar da direita para a esquerda é inerente à natureza do sonho; na medida em que o comunismo é um tipo mais radical e consistente de imanentizaçăo do que o progressivismo ou o utopismo social, tem a seu favor a logigue du coeur.

As sociedades ocidentais gnósticas encontram-se num estado de paralisia intelectual e emocionaI porque não é possível empreender qualquer crítica fundamental do gnosticismo esquerdista sem arrancar o gnosticismo de direita de seu curso. No entanto, as grandes revoluções experienciais e intelectuais são lentas e exigem a passagem pelo menos de uma geração.

Não se pode ir além da formulação das condições do problema. Haverá um perigo comunista latente, nas mais favoráveis condições externas, enquanto forem estigmatizados como ”reacionários” o reconhecimento da estrutura da realidade, o cultivo das virtudes da sophia e da prudentia, a disciplina do intelecto c o desenvolvimento da cultura teórica e da vida do espírito ; enquanto o desrespeito pela estrutura da realidade, a ignorância dos fatos, a construção falaciosa e a falsificação da história, o opinar irresponsável com base em convicções sinceras, o analfabetismo filosófico, o embotamento espiritual e a sofisticação agnóstica torem consideradas virtudes do homem, cuja posse abre as portas ao êxito público. Em suma, enquanto civilização for reação, e insanidade moral for progresso.

Texto: Eric Voegelin, in “A nova ciência da Política”, Editora Universidade de Brasília, 1982, páginas 125 a 128
Digitação: JP, 20-2-2024

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