Eric Voegelin
Essa exposição dos perigos do
gnosticismo como teologia civil da sociedade ocidental talvez haja suscitado
algumas dúvidas. A análise aplica-se inteiramente apenas às variedades
progressivistas e idealistas prevalecentes nas democracias ocidentais; não se
aplicaria tão bem às variedades ativistas que prevalecem nos impérios
totalitários.
Qualquer que seja a parcela de
responsabilidade pela situação atual que se possa atribuir aos progressivistas
e idealistas. a fonte mais formidável de perigo iminente parece residir nos
ativistas. A íntima conexão entre os dois perigos, por conseguinte, exige
esclarecimento — tanto mais quanto os representantes das duas variedades de
gnosticismo são antagonistas em luta no mundo inteiro. A análise dessa questão
adicional pode perfeitamente usar como prefácio os pronunciamentos de um famoso
intelectual liberal a respeito do problema do comunismo:
”Lenin estava certamente com razão
quando buscou o objetivo de construir seu céu na terra e inscrever os preceitos
de sua fé' no tecido interno de uma humanidade universal. Ele também estava sem
dúvida certo ao reconhecer que a guerra é o prelúdio da paz, e que é inútil
supor que se possa alterar a tradição de incontáveis gerações, dir-se-ia, da
noite para o dia”
”O poder de qualquer religião sobrenatural
para construir essa tradição desapareceu; a acumulação da pesquisa científica
desde Descartes foi fatal para sua autoridade. Portanto, é difícil imaginar
sobre que bases podem ser reconstruída a tradição civilizada exceto sobre a
ideia em que a Revolução Russa se fundamentou. Ela corresponde, abstração feita
do elemento sobrenatural, ao mesmo clima no qual o Cristianismo se tornou
a religião oficial do Ocidente’'
”Na verdade, em certo sentido
é válido dizer que o princípio russo tem maior alcance do que o cristão, uma
vez que busca a salvação das massas através da realização nesta vida, dando por
isso novo ordenamento ao mundo real que conhecemos’.”
Poucas passagens poderiam revelar mais claramente a situação do intelectual liberal de nosso tempo. A filosofia e o Cristianismo estão além de seu raio de experiência. A ciência, além de constituir um instrumento para dominar a natureza, é algo que o faz suficientemente sofisticado a ponto de não acreditar em Deus. O céu será construído na terra. A autossalvação, a tragédia do gnosticismo que Nietzsche sofreu com intensidade máxima até que sua alma se quebrou, é uma realização da vida que chega a cada homem com a sensação de que ele está contribuindo para a sociedade de acordo com sua capacidade, compensada pelo salário ao fim do mês.
Não há qualquer problema
relativo à existência na sociedade exceto a satisfação imanente das massas. A
análise política indica quem será o vencedor, de modo que o intelectual possa,
no momento oportuno, conseguir um emprego como teólogo da corte no império
comunista. E as pessoas espertas poderão acompanhá-lo em suas hábeis manobras
para conservar-se na crista da onda do futuro. A situação é hoje bastante
conhecida e dispensa maiores comentários.
É o caso dos paracletos
menores em que o espírito se agita; que sentem o dever de desempenhar um papel
público e de servir como professores para a humanidade; que de boa-fé
substituem seu conhecimento crítico por suas convicções; e, com a consciência
inteiramente tranquila, expressam opiniões acerca de problemas que estão fora
de seu alcance. Além disso, não se deve negar a consistência e honestidade
imanentes dessa transição do liberalismo para o comunismo; se o liberalismo for
entendido como a salvação imanente do homem e da sociedade, o comunismo é certamente
sua expressão mais radical. Trata-se de uma evolução que já fora prenunciada
pela fé de John Stuart MiIl no advento último do comunismo para a humanidade.
Em linguagem mais técnica, o problema
pode ser formulado da seguinte forma. As três variedades possíveis de
imanentização — teleológica, axiológica e ativista não constituem apenas três
tipos coordenados, mas se relacionam umas às outras dinamicamente. Em cada onda
do movimento gnóstico, as variedades progressista e utópica tenderão a formar a
ala direita, deixando boa parte da perfeição final à evolução gradual e à acomodação
da tensão entre a conquistas reais e o ideal; a variedade ativista tenderá a formar
a ala esquerda, agindo violentamente na busca da realização completa do reino
perfeito.
A distribuição dos crentes
entre a direita e a esquerda será em parte determinada por equações pessoais,
como entusiasmo, temperamento e consistência; todavia, para outras pessoas, talvez
a maioria, a distribuição será determinada por sua relação com o meio
civilizacional em que ocorre a revolução gnóstica. Pois não se deve esquecer jamais que a sociedade
ocidental não é inteiramente moderna, e sim que a modernidade é um tumor dentro
dela, em oposição à tradição clássica e cristã.
Se só existisse o gnosticismo
na sociedade ocidental, o movimento em direção à esquerda seria irresistível
por pertencer à lógica da imanentizaçâo, já tendo-se consumado há muito tempo.
No entanto, o fato é que as grandes revoluções ocidentais do passado, após sua
lógica guinada para a esquerda, retornaram a uma ordem pública que refletia o
equilíbrio das forças sociais no momento, juntamente com seus interesses
econômicos e tradições civilizacionais.
O receio ou a esperança,
dependendo do caso, de que as revoluções ”parciais” do passado serão seguidas
pela revolução ”radical” e pelo estabelecimento do reino final baseia-se na premissa
de que as tradições da sociedade ocidental estão agora suficientemente
arruinadas e que as famosas massas estão prontas para dar o bote fatal.
Por conseguinte, a dinâmica do
gnosticismo desenvolve-se ao longo de duas linhas. Na dimensão da profundidade
histórica, o gnosticismo move-se da imanentização parcial dos meados da Idade
Média para a imanentização radical da atualidade. E, com cada onda e erupção
revolucionária, ele se move da direita para a esquerda. Entretanto, a tese de
que essas duas linhas da dinâmica devem agora encontrar-se de acordo com sua
lógica interna, de que a sociedade ocidental está madura para cair no
comunismo, de que o curso da história ocidental é determinado pela lógica de
sua modernidade e por nada mais — essa tese é uma instância impertinente da
propaganda gnóstica no que ela tem de mais tolo e corrupto, nada tendo a ver
certamente com o estudo crítico da política.
Contra essa tese cabe apontar
diversos fatos hoje obscurecidos porque o debate está dominado por clichês
liberais. Em primeiro lugar, o movimento comunista na própria sociedade
ocidental, onde quer que tenha tido de depender apenas de seu apelo de massas
sem a ajuda do governo soviético, não chegou a nada.
O único movimento gnóstico
ativista que alcançou um grau notável de sucesso foi o movimento
nacional-socialista, em base nacional limitada; e a natureza suicida desse êxito
ativista é amplamente testemunhada pela abominável corrupção interna do regime
enquanto durou e pelas ruínas das cidades alemãs.
Em segundo lugar, a situação
atual do Ocidente diante do perigo soviético, na medida em que decorre da
criação do vácuo de poder anteriormente descrito, não se deve ao comunismo. O vácuo
de poder foi criado livremente pelos governos democráticos ocidentais, do alto
de uma vitória militar, sem sofrer a pressão de ninguém.
Em terceiro lugar, o fato de
que a União Soviética seja uma grande potência em expansão no continente
europeu nada tem a ver com o comunismo. A extensão atual do império soviético,
englobando as nações satélites, corresponde em linhas gerais ao programa de um
império eslavo sob hegemonia russa, tal como proposto, por exemplo, por Bakunin
a Nicolau I. É perfeitamente concebível que um império hegemônico russo não
comunista tivesse hoje as mesmas dimensões do império soviético, constituindo
perigo ainda maior pela possibilidade de estar mais solidamente consolidado. Em
quarto lugar, o império soviético, conquanto seja uma potência formidável, não põe
em perigo a Europa Ocidental ao nível da forma material.
Estatísticas elementares mostram
que a força de trabalho, os recursos naturais e o potencial industrial da
Europa Ocidental são comparáveis a qualquer força que o império soviético possa
reunir — sem contar com nosso próprio poder nos bastidores. O perigo nasce estritamente
do particularismo nacional e da paralisante confusão moral e intelectual.
Assim, o problema do perigo
comunista recai sobre o problema da paralisia ocidental e da política autodestruitiva
gerada pelo sonho gnóstico. As passagens citadas acima mostram a fonte da
dificuldade. O risco de derrapar da direita para a esquerda é inerente à
natureza do sonho; na medida em que o comunismo é um tipo mais radical e
consistente de imanentizaçăo do que o progressivismo ou o utopismo social, tem
a seu favor a logigue du coeur.
As sociedades ocidentais
gnósticas encontram-se num estado de paralisia intelectual e emocionaI porque não
é possível empreender qualquer crítica fundamental do gnosticismo esquerdista
sem arrancar o gnosticismo de direita de seu curso. No entanto, as grandes revoluções
experienciais e intelectuais são lentas e exigem a passagem pelo menos de uma geração.
Não se pode ir além da formulação
das condições do problema. Haverá um perigo comunista latente, nas mais favoráveis
condições externas, enquanto forem estigmatizados como ”reacionários” o
reconhecimento da estrutura da realidade, o cultivo das virtudes da sophia
e da prudentia, a disciplina do intelecto c o desenvolvimento da cultura
teórica e da vida do espírito ; enquanto o desrespeito pela estrutura da
realidade, a ignorância dos fatos, a construção falaciosa e a falsificação da
história, o opinar irresponsável com base em convicções sinceras, o
analfabetismo filosófico, o embotamento espiritual e a sofisticação agnóstica
torem consideradas virtudes do homem, cuja posse abre as portas ao êxito público.
Em suma, enquanto civilização for reação, e insanidade moral for progresso.
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