domingo, 11 de fevereiro de 2024

Da cunhã é que nos veio o melhor da cultura indígena

Gilberto Freyre

Mas é só a partir do meado do século XVI que pode considerar-se formada, diz Basílio de Magalhães, “a primeira geração de mamelucos”; os mestiços de portugueses com índios, com definido valor demogênico e social. Os formados pelos primeiros coitos não oferecem senão o interesse, que já destacamos, de terem servido de calço ou de forro para a grande sociedade híbrida que ia constituir-se.

À mulher gentia temos que considerá-la não só a base física da família brasileira, aquela em que se apoiou, robustecendo-se e multiplicando-se, a energia de reduzido número de povoadores europeus, mas valioso elemento da cultura, pelo menos material, na formação brasileira.

Por seu intermédio enriqueceu-se a vida no Brasil, como adiante veremos, de uma série de alimentos ainda hoje em uso, de drogas e remédios caseiros, de tradições ligadas ao desenvolvimento da criança, de um conjunto de utensílios de cozinha, de processos de higiene tropical – inclusive o banho frequente ou pelo menos diário, que tanto deve ter escandalizado o europeu porcalhão do século XVI.

Ela nos deu ainda a rede em que se embalaria o sono ou a volúpia do brasileiro; o óleo de coco para o cabelo das mulheres; um grupo de animais domésticos amansados pelas suas mãos.

Da cunhã é que veio o melhor da cultura indígena. O asseio pessoal. A higiene do corpo. O milho. O caju. O mingau. O brasileiro de hoje, amante do banho e sempre de pente e espelhinho no bolso, o cabelo brilhante de loção ou de óleo de coco, reflete a influência de tão remotas avós.

Antes, porém, de salientarmos a contribuição da cunhã ao desenvolvimento social do Brasil, procuremos fixar a do homem. Foi formidável: mas só na obra de devastamento e de conquista dos sertões, de que ele foi o guia, o canoeiro, o guerreiro, o caçador e pescador. Muito auxiliou o índio ao bandeirante mameluco, os dois excedendo ao português em mobilidade, atrevimento e ardor guerreiro; sua capacidade de ação e de trabalho falhou, porém, no rame-rame tristonho da lavoura de cana, que só as reservas extraordinárias de alegria e de robustez animal do africano tolerariam tão bem.

Compensou-se o índio, amigo ou escravo dos portugueses, da inutilidade no esforço estável e contínuo pela extrema bravura no heroico e militar. Na obra de sertanismo e de defesa da colônia contra espanhóis, contra tribos inimigas dos portugueses, contra corsários.

Índios e mamelucos formaram a muralha movediça, viva, que foi alargando em sentido ocidental as fronteiras coloniais do Brasil ao mesmo tempo que defenderam, na região açucareira, os estabelecimentos agrários dos ataques de piratas estrangeiros.

Cada engenho de açúcar nos séculos XVI e XVII precisava de manter em pé de guerra suas centenas ou pelo menos dezenas de homens prontos a defender contra selvagens ou corsários a casa de vivenda e a riqueza acumulada nos armazéns: esses homens foram na sua quase totalidade índios ou caboclos de arco e flecha.

A enxada é que não se firmou nunca na mão do índio nem na do mameluco; nem o seu pé de nômade se fixou nunca em pé de boi paciente e sólido. Do indígena quase que só aproveitou a colonização agrária no Brasil o processo da coivara, que infelizmente viria a empolgar por completo a agricultura colonial.

O conhecimento de sementes e raízes, outras rudimentares experiências agrícolas, transmitiu-as ao português menos o homem guerreiro que a mulher trabalhadora do campo ao mesmo tempo que doméstica.

Se formos apurar a colaboração do índio no trabalho propriamente agrário, temos de concluir, contra Manuel Bonfim – indianófilo até a raiz dos cabelos – pela quase insignificância desse esforço. O que não é de estranhar, se considerarmos que a cultura americana ao tempo da descoberta era nômade, a da floresta, e não ainda a agrícola; que o pouco da lavoura – mandioca, cará, milho, jerimum, amendoim, mamão – praticado por algumas tribos menos atrasadas, era trabalho regular e contínuo pelo de vida nômade.

Daí não terem as mulheres índias dado tão boas escravas domésticas quanto as africanas, que mais tarde as substituíram vantajosamente como cozinheiras e amas de menino do mesmo modo que os negros aos índios como trabalhadores de campo.

Texto: Gilberto Freyre, in “Casa-grande & senzala”, Global Editora, São Paulo 2006, 12ª reimpressão, 2020, páginas 162, 163, 164
Digitação: JP, 11-2-2024 

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