sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

[Aparecido rasga o verbo] Inimaginável

Aparecido Raimundo de Souza 

A SENHORITA DONA MORTE é uma mulher extremamente linda. Conta (até onde se sabe), vinte e dois anos. Possui os cabelos castanhos, retos e soltos até a altura da cintura. Na parte da frente, franjas de cortinas, lhe caem em cascata das sobrancelhas até o nariz. Os olhos pecaminosamente esverdeados lembram uma princesa dos contos de fadas. Todavia, apesar de encantadora, a donzela vive solitária. Sozinha, sem ninguém, se faz enfurnada numa mansão grandiosa de muitos quartos e banheiros. Uma cozinha requintada acomoda todas as modernidades imagináveis da sua rica ocupante. Varandas enormes se enfeitam com flores perfumadas e bem cuidadas. Tudo ao redor de sua residência resplandece cercada por uma paisagem linda e indescritível. 

Apesar de todo esse cartão postal num bairro nobre de São Paulo, nos fundos do quintal um bando de corvos mora encoberto por muitas sombras de compleições insondáveis. A insinuante não tem amigos, nem família, nem amor. Somente o seu mísero e desgastante trabalho. Que tipo de oficio tal criatura desenvolve para uma preciosidade tão chiquérrima? Não outro, senão o de levar as almas dos mortais para a elegantíssima barragem de Guarapiranga, entre os municípios de Itapecerica da Serra e Embu-Guaçu. Da sacada de seu quarto, se avista um muro alto cercando toda a frente da construção. Para além dele, se descortina uma rua calma e cheia de árvores frondosas onde a pasmaceira e o silêncio reinam absolutos. Na verdade, a infeliz odeia a sua atividade. Se constitui, tal farfúncia, num ofício sujo, degradante e horrendamente tedioso. 

Por conta, a jovem abomina do mais fundo de seu coração, ver o sofrimento, o medo, a angústia e a infelicidade dos que partem. Ela se apoquenta também em face de ser amaldiçoada por eles, não obstante temida e evitada. Se enraivece profundamente em decorrência de ser a “causa-chave” de tantos infortúnios e desgraças. Questão de uma semana, recebe do Pai Celestial, uma nova missão. Essa, contudo, especial. Deve ir buscar a alma de um escritor famoso, que está prestes a morrer, não de velhice, de alguma enfermidade que não lhe fora revelada. Conta o “futuro defunto,” quarenta anos. Ela sabe que ele se agiganta além de um homem talentoso. Tem publicado mais de trinta livros de crônicas, todos, sem exceção, recheados com histórias sobre os mais diversos temas, entre eles, a vida plena, o amor mais puro, a esperança e, sobretudo, a magia indescritível de viver.

 A senhorita dona Morte sabe que ele tem muitos fãs, admiradores e, claro, uma enorme legião de amigos. Sabe mais: que a sua saída brusca da vida terrena será muito lamentada. No dia que resolve ser o momento fatal do “escolhido pelo Supremo,” se encaminha até o casa dele em Aldeia da Serra. Furtivamente penetra naquele ambiente acolhedor sem fazer barulho. Passa pela cozinha. Tudo em ordem. Nada fora do lugar. Na sala, uma biblioteca imensa lhe contempla. Ao se dirigir para o quarto, encontra com a vítima que viera tirar o ar que respira. Deitado em sua cama, de bruços, ele dorme e ronca. Ao lado (seu notebook, um punhado de livros, e um bocado de papeis avulsos), possivelmente anotações para suas criatividades. A deslumbrante se aproxima e conclui que ele está, de fato, nos braços de Morfeu. 
Fita seus olhos cerrados e sorri. Com a chegada daquela personagem tão admirável, instantes depois ele desperta e a cumprimenta:
— Olá, senhorita dona Morte. Seja bem-vinda. Vai lhe parecer meio incrível, mas estava esperando por sua doce presença.

A senhorita dona Morte se põem surpresa. Nunca tinha sido recebida com tanta gentileza e cordialidade:
— Como você sabe quem eu sou? – Ela pergunta espantada:
— Eu sei de muitas coisas. Sei que você é a responsável por levar as almas dos que se vão para algum lugar que desconheço o paradeiro. Eu sei que você é a mais temida e odiada de todas as criaturas. Eu sei, lado outro (agora entrando em sua intimidade), que apesar de um ser inimitável, é muito solitária.
— Como chegou a essa conclusão?

— Porque escrevi sobre você. Dei vida a uma narrativa elegante sobre a sua pessoa, ou seja, sobre a sua especialidade como ser divinizado. Resumindo, a Morte como pessoa. Na verdade, escrevi um texto que nunca publiquei. Está aqui no meu Not. Se quiser abrir e ler. Guardei para mim. É uma crônica que escrevi especialmente para esse momento.
A senhorita Morte franze o cenho:
— Para mim?
O escritor mostra um sorriso de canto a conto do rosto e prossegue:
— Sim, para você. Eu quero que saiba que eu não tenho medo de sua pessoa. Que não lhe odeio, e, sobretudo, que lhe compreendo. Eu quero que você saiba que não está sozinha... você tem alguém que se importa com você, que lhe admira. Eu quero que você saiba que lhe acho linda, ou seja, você é uma gatinha especial, e, para mim, em particular, uma menina na flor da idade deveras importante.

— Por que você fez isso? Por qual motivo se importa comigo?
E o escritor, então, se declara, o coração transbordando em festa:
— Porque eu lhe amo... digo... eu te amo!
— Me ama? Fala sério!
A senhorita Morte não acredita no que ouve. Ela nunca tinha recebido assim, de chofre, palavras tão elogiosas, pelo menos até aquele instante. De igual forma, jamais experimentou esse sentimento de felicidade. Percebe que por dentro de sua alma enegrecida, algo novo, vindo do mais escondido, aflora. Se aquece, em seu peito, uma consternação, uma idolatria que ela não sabe o que significava, ou pior, de onde veio:
— Você me ama?

— Sim, eu lhe amo. Eu lhe amo desde que lhe vi pela primeira vez, em um de meus sonhos. E depois, face a face, quando apareceu para buscar minha mãe e, meses depois, meu padrasto. Amei ainda com mais intensidade depois que comecei a escrever sobre você. Eu lhe venero de uma maneira única. Eu lhe amo desde que soube que um dia viria me buscar, em vista de mais uma de suas missões em nome do Altíssimo.
— Mas como isso é possível? Como você pode amar alguém como eu?
— Como isso não é possível? Como não poderia amar alguém como você? Você é a Morte. Em oposto, representa a vida. Você é a dor, em igual norte, é o antídoto da cura. Você é a escuridão, entretanto se resplandece vestida de luz. É portadora de momentos tristes, porém, respira tranquilidade. Do seu olhar pressinto faíscas de eternidade. Você é a senda que leva ao Pai. Você é tudo o que eu sempre quis. Tudo o que eu sempre precisei. Tudo o que eu a meu jeito amei desde que soube de sua existência.

O escritor num gesto de maviosidade e brandura, estende as mãos para ela. A senhorita Morte as recebe entre as suas. Ele a puxa para perto de si, com suavidade, e ela se deixa ser subjugada. Ele a abraça, e ela, se flagra domada, enfraquecida, se aconchega. No instante seguinte, ele a beija com sofreguidão e ela se entrega sem melindres. Ambos ficam assim por um tempo. Um espaço infindo, sem se importarem com o mundo, sem se preocuparem com o tempo, sem se incomodarem (ela principalmente) com a missão recebida do Criador. Naquele momento crucial, a viagem dele, para os aniquilamentos do destino sem volta. Sem levarem em conta as horas, o tempo, a missão, ele num repente a desveste. Peça por peça. Coloca a nua. Em seguida se tocam, se acariciam... por fim, fazem amor. Um amor anormal e Inaudito. Dia seguinte, logo cedo, ela acorda primeiro, percebe o lençol manchado de sangue.

Ao vê-lo desperto, anuncia o que ele, de antemão, sabe de cor e salteado:
— Meu amor, está na hora – diz a deidade, finalmente:
— Eu sei, minha joia rara – sussurra ao ouvido dela lentamente. Faça o que tem de fazer...
— Meu Deus, que situação! Estou pasma. Na verdade, passada!
O escritor procura acalmar os anseios da senhorita Morte:
— Você veio para me levar. Vamos, minha princesa. Vá em frente. Cumpra com seu dever. Não pense em passar o “Homem Lá de Cima” para trás.
A Morte sorri, emotiva e brejeira:
— Eu vou cumprir com meu dever. Me diga: você vai ficar bem?
— Confesso a você, não sei...
— Ao menos, vai se lembrar de mim?

— Nunca lhe esquecerei. Você é e será a minha passagem mais tresloucada, ou a minha morte mais inesquecível de todas... te amo... te amo...

O escritor sorri, beija a senhorita Morte longamente. Tornam a fazer amor. Em seguida, cerra os olhos. Ele chora, ela também se debulha em lágrimas. De repente, a musa o carrega para a barragem de Guarapiranga. E então, sem mais delongas, solta a sua alma. O Senhor de Todas as Coisas o espera e, em contínuo, o leva para o outro lado e ela o deixa partir. Passo seguinte, tarefa findada, volta correndo para a sua mansão. Regressa triste e pesarosa. Guarda numa pastinha a sua história. A que ele havia escrito para ela. A senhorita Morte nunca mais o viu, tampouco, jamais o perdeu. Em paralelo, se fechou para as coisas sublimes do amor. Sabia que o seu amado estava nos braços do Criador. Ela, na verdade, nunca mais o esqueceu. Sempre que sobra um tempo, passeia por todo o entorno de Guarapiranga. E chora muito quando pensa em seu lindo e adorado escritor. E a seu modo inexplicável, sente pulsante a presença dele. A senhorita Morte está grávida. Em breve, um novo ser virá ao mundo.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 2-2-2024

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