domingo, 24 de agosto de 2025

[As danações de Carina] Viagem sem volta

Carina Bratt

DUAS LAGARTIXAS disputam a mesma parede dentro da casa do Nicanor Pontiagudo e da mulher dele, a Serena. O casal tem uma filha de oito anos, a Bárbara. Bárbara tem medo de baratas e lagartixas. Ajudando a aumentar seu azar, no pequeno dormitório, perto da janela onde uma cômoda acomoda as suas roupas, bonecas e brinquedos, todas as noites baratas aparecem do nada. Para completar a sua infelicidade, igualmente duas lagartixas sempre se fazem presentes, principalmente quando a sua atenção está voltada para a novela depois do Jornal Nacional. As taruiras* saem de um desvão do teto, como se quisessem dividir com ela as emoções dos folhetins depois que o Wiliam Bonner encerra o noticiário com seu lacônico “Boa noite”. Uma lagartixa é a representante mais velha e, portanto, a mais sábia. O outro é um jovem “lagartixo” impulsivo. Os dois amam debater sobre quem tem direito à sombra do dia e da tarde e ao melhor ângulo para observar os donos da casa, principalmente os movimentos da menina Bárbara. 
A mais velha das lagartixas é a Ximbica Sonhadora, ‘uma réptil’ veterana e profunda conhecedora de alvenarias. O ‘lagartixo’ atende pelo nome de Zeca Estufadinho. Carrega um porte jovem e se acomodou recém-chegado de outra moradia contígua. Trouxe na bagagem muita energia e ambição. A cena que passo a descrever cria vida e forma ao entardecer, quando o sol projeta uma faixa dourada sobre o reboco quente — território disputado passo a passo por ambos os répteis, contudo, sem maiores interesses do ‘lagartixo’ em ser o dono do pedaço.

Ximbica Sonhadora se (esticando preguiçosamente na sombra do fio da antena da televisão):
— Ah, essa luz da tarde... tem o calor exato para aquecer os ossos sem fritar os pensamentos. Já é minha há três verões, sabia?
Zeca Estufadinho (escalando com agilidade se aproximando perto da amiga, os olhos brilhando):
— Três verões? Isso é quase uma eternidade! Mas o mundo gira, Ximbica. E quem chega com fome de parede também tem direito a um cantinho iluminado.
Ximbica (arqueando a cauda com elegância):
— Fome de parede? Menino, você ainda não aprendeu que o melhor ângulo não é o mais quente, contudo, o mais estratégico. Daqui, observo os humanos aí embaixo sem ser vista. Já ouvi confissões, vi romances começarem e até uma briga pela posse do controle remoto.

Zeca (rindo com um estalo de língua):
— Eu prefiro ação! Quero ver os humanos de frente, sentir o risco, viver o agora. Ontem quase me vi esmagado por um chinelo, foi emocionante!
Ximbica (suspirando):
— Emoção é bom, mas sabedoria é melhor. A parede ensina, se você souber escutar. Cada rachadura tem uma história, cada sombra um segredo. Vou logo te avisando. Cuidado com a Bárbara. Ela não suporta a nossa presença.

Zeca (parando por um instante, pensativo):
— Ficarei de olhos abertos. Voltando ao que acabou de falar. E se a gente dividir? Metade da sombra pra você, metade do sol pra mim. Assim, cada um observa o ambiente do seu jeito.
Ximbica (sorrindo com os olhos): 
— Agora falou como quem começa a entender a parede. Que seja assim, Zeca. Mas se lembre: o território é só cenário. O verdadeiro palco é o olhar que lançamos sobre ele. 
Fim de tarde, começo de noite. Lá fora, o sol embora mais fraco, ainda projeta uma faixa dourada sobre o reboco. As lagartixas se encaram, cada uma tentando ocupar o melhor ponto.

Zeca (com a cauda ainda tremendo pela adrenalina):
— Ufa, amiga! Escalei três tijolos e desviei de um gato só pra chegar aqui. Essa ‘nossa’ parede tem cheiro de oportunidade!
Ximbica (calma, imóvel, como quem já viu muitos pores do sol:
— Oportunidade? Menino, essa parede é mais velha que a sua ambição. Já vi três reformas e um casamento dos ocupantes anteriores acabar bem ali, na porta que acessa a sala.

Zeca (olhando em volta, curioso):
— E você ficou parada esse tempo todo? Não quis explorar outras paredes, outros horizontes?
Ximbica (arqueando a sobrancelha — ou o que seria uma, se as lagartixas tivessem):
— A sabedoria não está em mudar de parede, mas em entender o que ela revela. Cada rachadura aqui tem uma história. E essa faixa de sol... é minha desde que o cachorro totó dessa família ainda era um filhote.
Zeca (tentando se acomodar na borda da sombra):
— Mas o mundo muda, Ximbica. E quem chega com fome também precisa de espaço. Não dá pra viver só de lembrança.

Ximbica (com um sorriso quase imperceptível):
— E quem vive só de pressa acaba virando sombra antes de entender a luz. Você já observou os humanos daqui?
Zeca (empolgado):
— Ontem vi o tal do Nicanor dançando sozinho na cozinha. Achei que fosse um ritual de acasalamento. Sem falar que a música era mais chata que as palhaçadas sem graça do Didi Mocó
Ximbica (rindo baixinho):
— Era só sexta-feira. Eles fazem isso quando acham que ninguém está olhando. E nós... somos as butucas arregaladas e invisíveis da casa.

Zeca (pensativo):
— Então... talvez possamos dividir. Você fica com a sombra da sabedoria, eu com o sol da juventude. E juntos, observamos o mundo.
Ximbica (se esticando um pouco para o lado, cedendo espaço):
— Está aprendendo, Zeca. A parede é grande. Mas o olhar... ah, o olhar precisa ser compartilhado.
Noite tranquila. A parede está silenciosa, exceto pelo zumbido distante de um ventilador no quarto ao lado do casal. Ximbica está imóvel, contemplando o céu. Zeca se aproxima devagar.

Zeca (com voz mais calma que o habitual):
— Ximbica... estive pensando. Talvez eu tenha chegado com pressa demais. A parede não precisa ser um campo de batalha.
Ximbica (sem tirar os olhos da lua):
— A juventude costuma confundir território com identidade. Mas fico feliz que esteja começando a ouvir o silêncio.
Zeca (se sentando ao lado dela, respeitando a distância):
— É que... eu queria provar que também tenho valor. Que posso ser mais do que só rápido ou ousado.

Ximbica (se virando lentamente para ele):
— Valor não se mede em centímetros de parede, Zeca. Se mede em como você observa o mundo — e o que aprende com ele.
Zeca (olhando para a janela da cozinha):
— Hoje vi a bela e encantadora esposa do Nicanor chorando. Ela estava sozinha, com uma xícara de café na mão. Não entendi muito bem, mas... senti alguma coisa.
Ximbica (com um leve sorriso):
— Você está se referindo a Serena. Sentir é o primeiro passo para entender. A parede nos dá abrigo, mas são os humanos que nos ensinam sobre o que é viver.

Zeca (pensativo):
— Então... se eu ficar com o lado da parede que pega o sol da manhã, e você com o do cair da noite, como agora, podemos dividir sem atropelos?
Ximbica (acenando com a cauda):
— Podemos, sim. E mais: igualmente trocar olhares, histórias e silêncios. Essa parede onde estamos é grande, mas o mundo é maior. E há espaço para dois pares de olhares distintos.
Zeca (sorrindo):
— Dois olhares, uma parede. Gosto disso. Quem sabe um dia a gente até senta e de parceria escrevemos um livro.

Ximbica (rindo baixinho):
— Já estamos escrevendo, Zeca. Cada dia, uma página. Cada silêncio, uma vírgula, cada acontecimento, um fato...
Ximbica Sonhadora e Zeca Estufadinho aprenderam a dividir a parede e a observar o mundo em redor, juntos. Mas como toda boa crônica, o final precisa virar tudo de cabeça para baixo, sem perder a beleza. Novela terminada. Noite silenciosa. A parede está fria, envolta pela penumbra. Zeca e Ximbica estão lado a lado, em silêncio, observando a casa adormecida. O casal, no cômodo ao lado dorme. A televisão segue ligada. Nicanor ronca.
Zeca (sussurrando):
— Ximbica... já pensou que talvez a gente não esteja só observando os nossos amigos humanos? Talvez eles também nos vejam.

Ximbica (sem se mover):
— Alguns veem. Poucos. Os que ainda têm olhos para o invisível.
Zeca (olhando para a janela):
— Hoje, a menina me olhou. Direto nos olhos. Não piscou. Foi como se... como se ela soubesse...
Ximbica (com a voz mais baixa que o vento):
— Ela sabe. Há humanos que percebem. Que sentem. Que escutam o silêncio das paredes. E cuidado. A televisão da mocinha está ligada. Ela finge estar dormindo. Mas está quieta, só esperando...

Zeca (com um arrepio na cauda):
— E se... e se a gente não for só lagartixa? E se formos algo mais?
Ximbica (virando lentamente para encarar o amigo):
— Você está pronto para saber? Pois bem. Não se descuide. Toda atenção para com a menina. Ela é arisca, esperta e pode nos pegar de calças curtas...
Zeca (hesitante):
— Acho que estou pronto para saber sim.

Um clarão repentino atravessa a parede. Não é a luz elétrica, nem o luar. É algo antigo, profundo, como se a própria casa respirasse. As duas lagartixas se iluminam por dentro — não com luz, mas com a memória.
Ximbica (com um brilho nos olhos):
— Somos os guardiões. Ecos de quem já viveu aqui. Fragmentos de histórias que não podem desaparecer.
Zeca (atônito):
— Então... não somos só bichos. Somos lembranças?
Ximbica (sorrindo):
— Somos o que resta quando ninguém mais se lembra. E hoje... alguém lembrou.

A parede pulsa. A casa respira. E, num instante, as duas lagartixas como por encanto, descem quase até o chão. Duas baratas estão distraídas. Não percebem as lagartixas. Elas descem. As baratas estão mais próximas. Precisamos cumprir nosso papel. Devorar as baratas. Nosso jantar está quentinho e a nossa espera. Na parede, resta apenas uma rachadura em forma de espiral — como uma assinatura antiga. Aliás, um final que transforma o cotidiano em mistério, e as lagartixas das paredes em símbolos de memória e presença. Nesse momento, a menina dá um salto como se fosse um felino e ataca com uma lata de inseticida. As duas lagartixas são pegas numa armadilha inesperada. Inopinadamente as baratas somem do pedaço. Ximbica e Zeca, ainda tentam subir para o cimo de onde vieram, mas seus esforços se fazem lentos demais.

Ambos são interrompidos pela ágil ação da pequena Bárbara, que ferozmente, salta do seu sono e atinge o alvo pondo os dois representantes da família dos Squamata a nocaute de modo fulminante. Ximbica cai para um lado, se contorce, se estrebucha e morre. Zico ainda vai um palmo à frente e, como a sua amiga, antes de fechar os olhos para sempre, vê seus sonhos se perderem em meio a uma nuvem branca do remédio fatal saído com fúria descontrolada da poderosa embalagem do aerossol assassino. Incrivelmente as baratas se salvam a trancos e barrancos se escafedendo para as bandas do quarto onde dormiam Nicanor Pontiagudo e sua companheira Serena.

* Tatuíras. Nome como as lagartixas são conhecidas pelos capixabas, em Vitória, no Espírito Santo.

Título e Texto: Carina Bratt, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 24-8-2025

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