domingo, 17 de agosto de 2025

[As danações de Carina] Brejo de Jacó

Carina Bratt

DONA PERERECA DO OLHO VERDE era uma mulher de poucas palavras. Contudo, carregava em seus costados, muitos segredos. Confidências, como uma síndrome do arco da velha. Quando saia à rua, para fazer supermercado, a sua figura simples e jovial se transformava num rosto fechado, ao tempo em que o seu olhar se fazia enigmático. Pelo sim, pelo não, esse modo de agir deixava transparecer a quem se encontrasse com ela, a dúbia impressão de existir algo profundo. Algum motivo escuso que a anciã escondia a sete chaves por detrás da máscara da sua aparência serena.

Os vizinhos contíguos, apenas especulavam, mas, na realidade, ninguém realmente sabia o que se passava ou o que rolava além das paredes de sua residência, uma espécie de fortaleza erigida num quintal imenso, sem falar no casarão que lembrava a casa de Margarida Bonetti (1). Essa bela construção se via cercada por um muro demasiadamente alto, o que impedia os bisbilhoteiros de plantão xeretarem além do que se fazia permitido.

A bem da verdade, quando ao debandar para a rua, e voltava cheia de sacolas de compras, escancarava um pesado portão de ferro deslizante que emitia um som lastimoso sobre trilhos cobertos de grossas camadas de ferrugens oxidadas. Somente nessas oportunidades, tudo o que um dia prosperou em um espaço acolhedor, se moldava em lembranças de um pedacinho da mais pura luxúria dos idos de outrora. Havia uma piscina em forma de coração repleta de água podre e escura.  Logo à frente, ao entorno da casa, uma quadra cheia de árvores centenárias dava conta do tamanho do abandono que perdia o viço a cada novo raiar de dia naquele pedaço que em tempos distantes brilhava aos assombramentos dos moradores mais longevos.

Do contrário, o portão cerrado, vivalma conseguia vislumbrar coisíssima alguma. Belo dia, Manhoso, o cachorro dela, um Labrador Retriever por puro descuido de sua dona, fugiu. A casinha onde ele dormia, incrivelmente partiu atrás. Desde esse dia, ambos nunca mais foram vistos. Menos de uma semana após esse evento, embrenhada em idêntica rota de sumiço sem vestígios, dona Perereca do Olho Verde, igualmente pareceu (ou pelo menos deu a entender) ter seguido mesma rota, como se no mesmo plano traçado, tivesse sido engolida pela Terra.

Por conta desse evento, nunca mais a pequena Palmital do Brejo Seco deu conta do seu paradeiro. Sua magnânima propriedade, aos poucos e com o correr dos meses, do abandono e da solidão, se deteriorou de vez. Hoje, tantos anos passados, o belo e esplendoroso retiro virou refúgio de moradores de ruas e bandidos. Dependendo das horas, passar em frente, se faz temeroso, principalmente quando cai a noite. Os inquilinos, (antigos vizinhos) que ocupam ambos os lados da rua estão à deriva. Ao salve-se quem puder. Correm o risco iminente, esses pacatos, serem assaltados, ou no pior dos mundos, mortos.

A polícia militar jura de pés juntos que faz rondas diuturnamente.  Uma mentira das mais deslavadas. Na verdade, tudo não passa de conversas para bois dormirem e roncarem. Seu Neco, um confinante antigo, elaborou algumas ideias que igualmente outros mais ‘longevados,’ (como ele), em questão do tempo de convivência na comunidade, acharam interessante pôr em pratos limpos. As ideias se consubstanciavam em pegarem desprevenidos o prefeito e seus asseclas pelos fundilhos das calças, quando por volta das vinte e uma horas  ou mais precisamente no momento em que os safardanas  costumam dar o ar da graça, com seus “amiguinhos e amiguinhas” numa espécie de bar dançante de seresteiros coligado a um inferninho conhecido como ‘Recanto do Vem Que Tem,’ e aplicar-lhes uma surra memorável, ou em outras palavras, trazer à baila uma esfrega bem talhada até deixá-los com os ossos em pandarecos.

Essas biscas abandonavam o bordel impreterivelmente por volta das três da manhã, municiados numa algazarra infernizante. Nos mesmos moldes, peitar (em idêntico saco de gatos) os militares que apregoam dar ‘cobertura’ aos moradores, segurança que na realidade todos sabiam, esses fardados somente ‘se faziam presentes,’ de fato, para apadrinharem, em troca de polpudas gratificações, nas funções de “guarda-costas” protegendo das ‘incomodações,’ as turminhas não só do prefeito mas também de seus fiéis subordinados. A façanha ia um pouco além.

Pega-los de calças curtas, no exato momento em que os safardanas se preparassem para voltarem para suas casas, numa espécie de condomínio de alto luxo distanciado  exatos dois quilômetros e pouco do centro. Um outro morador, antigo tenente do exército, se juntou ao grupo, se enturmou com o cabeça e as ideias de seu Neco ao tempo em que apresentou mais uma lista de soluções brilhantes para dar uma lição memorável à elite intocável dos senhores salafrários da pequena localidade. 

— Não podemos somente grampear o prefeito — esclareceu. Nos mesmos moldes, carecemos de englobar os pilantras fardados que marcam presença em continência (não às nossas famílias que aqui residem), notadamente aos ‘vagabundos’ de ternos de grife, e as ‘lambisgóias’ enfurnadas em seus vestidos baratos, com a finalidade única de se banquetearem nos fazendo a todos de bestas e tapados. Necessitamos de uma ação devastadora, uma tomada de terreno definitiva que acabe de uma vez com essa farra que está nos colocando à margem de uma tragédia anunciada.

E assim foi feito. Numa emboscada urdida e bem planejada, pegaram o prefeito, quando saia do ‘Recanto Vem que Tem.’ Lincharam as suas acompanhantes e puniram sobejamente os fardados. A ação desse grupo apelidado de ‘Fantasmas do diabo’ foi tão perfeita e impecável, tão arrebatadora e eficaz, que ficou conhecida como ‘Combate de extermínio’. No final, o ilustre prefeito precisou ser internado. Os militares (também surpresados de ‘cuecas nas mãos’), se viram surrados a paus, sapatadas, cassetetes e chicotadas. O seu carro e o do vice e as duas únicas viaturas da unidade militar viraram uma enorme fogueira. As mundanas partícipes da pouca vergonha acabaram numa situação vexatória e, claro, não muito decente.

O mais legal. Como o furdunço foi levado a efeito em horário nobre, tido nas redondezas como em ‘nome das altas horas’, ou seja, em salvaguardo do sagrado e intocável silêncio, onde toda a comunidade trabalhadora que vivia unicamente para a labuta digna e honesta dormitava no descanso dos justos, ninguém foi reconhecido, preso ou processado. Bem que ‘à depois’ tentassem. Apesar dos reforços vindos (dia seguinte) de cidades próximas, os envolvidos nos bacanais e, de roldão, os libertinos e desordeiros da elite alcunhada como ‘os deuses impalpáveis,’ da cidade, sem sequer, um dos mandachuvas terem ficado de fora, a quadrilha de farândolas sofreu, na pele, duros golpes, uma experiência pra lá de inesquecível e inusitada.

O cerco aos ‘magnatas’ foi tão carinhosamente engendrado, que nas culminâncias, nenhum morador se viu responsabilizado ou detido, acabando a sobra (como sempre) para os pobres e infelizes moradores de rua que ocupavam desordenadamente o casarão de dona Perereca do Olho Verde. A escaramuça acabou, de uma só vez, com as sacanagens do prefeito e sua gangue, com os policiais corruptos e as prostitutas do bar ‘Recanto Vem que Tem’, que encerrou as suas funções definitivamente.   

Explicação necessária: Por qual motivo o texto ser rotulado como ‘Brejo de Jacó?  Na Bíblia, Jacó foi um personagem importante. Neto de Abraão, filho de Isaque e Rebeca, e irmão gêmeo de Esaú. Ele é conhecido por sua história complexa, marcada por enganos, mas também por sua transformação e fé em Deus. Jacó é considerado um dos patriarcas do povo israelita e sua história é narrada no livro de Gênesis

Título e Texto: Carina Bratt, da cidade de Extremoz, no Rio Grande do Norte e Congonhas, São Paulo, 17-8-2025

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