Walter Biancardine
O filósofo brasileiro Olavo de Carvalho disse, há quase dez anos – com a crueza que separa adultos de meninos – que “um dia, EUA e Rússia se entenderão, dividirão o mundo em dois e a União Europeia vai tomar no que lhe resta de cu”. Pois bem: o encontro de Anchorage foi a fotografia da profecia em fase de revelação. Dois homens num carro blindado, um bombardeiro fantasma riscando o céu, e a Europa olhando tudo de fora, fungando a vidraça. Não é “fim da história”; é retorno do velho mundo, com a etiqueta trocada.
Comecemos pelo quadro: neste
recente 15 de agosto de 2025, Trump recebeu Putin na Joint Base
Elmendorf-Richardson, no Alasca. Houve aperto de mão na pista, passeio conjunto
no banco de trás da The Beast – quebra de protocolo que não se
faz sem mensagem – e show aéreo com um bombardeiro B-2 escoltado por caças
F-22, sinal de que o anfitrião trouxe seus anjos silenciosos para sobrevoar a
conversa. O encontro durou perto de três horas, terminou sem cessar-fogo para a
Ucrânia, mas com “acordos em maioria dos pontos”, convite de Putin para
“a próxima em Moscou” e um Trump rebaixando a retórica de sanções “por
ora”. Os fatos estão aí: não há tratado, mas houve coreografia, e a coreografia
– espero que saibam – é a linguagem dos impérios.
O efeito imediato foi um clarão no horizonte estratégico: Trump saiu dizendo que o caminho não é “cessar-fogo”, mas acordo final – uma linguagem que Moscou aprecia porque congela conquistas no terreno; Kiev range os dentes porque vê nisso a possibilidade de “paz” com fronteiras amputadas. A imprensa internacional dividiu-se entre “passo útil” e “capitulação simbólica”, e os fact-checkers prepararam o já tradicional cinto de utilidades para moldar ambos os lados às suas narrativas. Nada de novo sob o sol, exceto o essencial: Estados Unidos e Rússia sentaram-se a sós para tratar de uma guerra europeia, com a Europa assistindo escondida, da porta de seu quarto e, quando muito, soprando ao ouvido de Kiev o que ele deve pedir. Eis a humilhação civilizatória que Bruxelas – a raiz do mal e da frouxidão – finge não notar.
Sobre o ritual, uma nota: quem
manda recado com um B-2 não está brincando de flauta doce. Sobrevoo de
bombardeiro furtivo é teatro estratégico: “paz sim; mas com supremacia
tecnológica à vista”. Para Putin, posar ao lado desse espetáculo é aceitar a
moldura americana para expor o seu próprio quadro: um czar moderno que conversa
de igual para igual, entra na limusine do adversário e sai com convite para
recebê-lo em Moscou. O resto – coletivas mornas, falas lacônicas, evasivas
– é cortina. O palco foi montado para que duas potências, de novo,
convertessem a crise europeia numa equação bilateral. Foi assim ao longo do
século XX, quando valia a pena ser adulto no tabuleiro; é assim agora,
novamente.
E onde entra o filósofo
brasileiro Olavo de Carvalho, merecedor do bordão popular “Olavo tem razão”?
Entra no começo, quando poucos entendiam a linha de força. Anos atrás, ele
escreveu que Trump e Putin “restaurariam a bipolaridade” e que a Europa tomaria
o remédio amargo. Não porque se amem; mas porque os interesses convergem quando
o inimigo comum é o globalismo de comitê, essa tecnocracia sem rosto que
precisa da Europa como torre de controle. A aliança possível – mesmo que
episódica, tática, intermitente – entre Washington e Moscou é mortal para o
sonho de Bruxelas governar o mundo por meio de normas, conselhos, cortes e
protocolos “vinculantes” que sempre, curiosamente, vinculam os mesmos. O Alasca
foi um ensaio desse arranjo: um lembrete de que o peso real ainda está nos
músculos, não no punho engomado de burocratas.
“Mas não houve acordo!”, dirá
o prudente – mero eufemismo moderno para medroso. Sim, não houve; e isso é
secundário. Grandes mudanças não começam com tinta e selos; começam com cena e
silêncio. Quando dois líderes se fecham, quebram protocolo, exibem poder e saem
falando em “próxima rodada em Moscou”, informam ao planeta que o eixo
decisório, de fato, se moveu. Se vier um acordo – e creio que virá – a Europa
será chamada a somente carimbar, depois. Se não vier, a mensagem já cumpriu a
função: Putin ganhou respeitabilidade performática; Trump, a imagem de quem
“tenta a paz do jeito adulto”; e a OTAN, a aflição de assistir ao dono da casa
jogar sinuca com o incendiário da vizinhança. Para quem gosta de símbolos: o
B-2 sulca o céu americano; o convidado entra na The Beast; a
bandeira azul com estrelas da UE não aparece em lugar algum. É a iconografia
daquilo que Olavo anteviu, com seu linguajar misto de Sócrates com estivadores
do cais do porto.
E os conservadores, o que
viram? A direita americana, que pensa em poder – não em catecismo – entendeu o
gesto. Charlie Kirk chamou de “passo mais perto da paz” e sublinhou o
mérito político do encontro, mesmo sem “paper” assinado; a ala “híbrida”
de influencers celebrava o show de força do sobrevoo e a
naturalidade do convívio no carro presidencial, lendo ali uma reedição da
“diplomacia do aperto de mão com músculo” – “Handshake with a smile and a
big stick behind”. Já a ala da direita que virou polícia de pureza
ideológica, bufou: “legitimou o inimigo”, “falou macio demais”, “cadê as
sanções, cadê a humilhação pública?”. É o velho cisma entre realistas e
moralistas. Realistas contam cabeças, portas, mapas e armas; moralistas
contam likes, e o Alasca premiou os primeiros.
Houve também os que fizeram do
encontro um teatro de memes: a “virada de rosto” de Putin quando o B-2 passou,
a fofoca sobre o que teriam cochichado no banco de trás, os takes de
Hannity embalando a versão oficial – tudo isso serve para borrar o núcleo:
mesmo a crítica hostil já naturaliza que o assunto “paz na Europa” pode ser
resolvido por duas bocas, sem Bruxelas soprando no teleprompter. Quando a
histeria memeira admite a pauta, é sinal de que a pauta
venceu.
No campo dos fatos duros e
reais, dois pontos merecem lupa. Primeiro: Trump ajustou a mira após o
encontro, recuando de ameaças imediatas e trocando “cessar-fogo” por “acordo
final” como norte. Isso agrada Moscou e pressiona Kiev, que agora corre para Washington,
a buscar garantias de que não será “vendida” num pacote de segurança com laços
frouxos. Segundo: Putin saiu satisfeito e já convidando para Moscou, com
porta-vozes vendendo “clima muito positivo”, enquanto europeus – sobretudo no
Báltico – rosnaram nas redes. A triangulação se impõe: USA e Rússia conversam;
Ucrânia pede bênção; Europa pede para não ser ignorada. Eis a nova liturgia.
Meus escassos leitores poderão
objetar: “e a China, e o Irã, e o Eixo das Autocracias?” Justamente por
existirem é que o aceno Washington-Moscou ganha densidade. Para lidar com a
coalizão antiocidental, a realpolitik exige que separe, isole,
corrompa lealdades e quebre blocos. O melhor presente para Pequim seria um
Ocidente unificado sob o flácido cajado europeu e uma Rússia empurrada de vez
para os braços chineses. O pior pesadelo para Pequim é ver a Rússia entretida
com promessas de status e garantias no teatro europeu, enquanto os EUA
concentram recursos no Pacífico. Quem ensina isso não é um “influencer”:
é Metternich – e Olavo, que sempre repetiu a lição.
E a União Europeia? A UE vive
de papel, regulamento e solemnitas. Quando o mundo afunila em
decisões de força, quem lidera conversa é quem tem míssil, testosterona e
moeda. Bruxelas tem relatórios ESG e multas antitruste – indispensáveis numa
normalidade de boutique, mas inúteis quando os canhões falam.
O posfácio melancólico da UE
começou quando terceirizou sua defesa aos EUA e seu gás à Rússia; o capítulo do
Alasca só confirma a ópera: quem não tem espada e bolas assina o que os outros
decidem. Não é derrota “moral”; é retorno ao real. Olavo só descreveu o óbvio,
aquilo que os salões negavam entre taças de prosecco.
Mas não confundamos o
diagnóstico com torcida. Não há nada romântico em “dividir o mundo em dois”.
Bipolaridade é ordem tensa, negociada na faca; estabiliza por medo, não por
consenso – quase uma lição de Maquiavel. A alternativa, porém, era o quê? Um multilateralismo
de fachada, comandado por burocratas sem mandato e por ONGs com orçamento de
petrodólares ou de elementos como George Soros, fazendo engenharia social
transnacional enquanto a artilharia decide o mapa? Entre blindados e a comissão
de boas maneiras, prefiro os adultos na sala – e que os adultos tenham rosto,
endereço e responsabilidade diante de seus povos.
Voltemos ao estilo – não ao
meu, tosco, mas ao da história. O estilo do poder é parco: duas frases no
microfone, três sinais no céu, e um convite para “Moscou, quem sabe em breve”.
O resto é espuma. Se haverá acordo, ninguém sabe. Se a Ucrânia aceitará termos,
é improvável, sem garantias de aço. Se a Europa acordará do transe, talvez
quando for tarde. Mas que o eixo do mundo rangeu no Alasca, disso não tenho
dúvida. O rugido das turbinas do B-2 foi a trilha sonora e o banco de trás
da The Beast, o confessionário. E a velha Europa, de fora,
segurando a vela de um casamento que já não é o dela.
E antes que alguém venha com a
litania de sempre – “mas Trump mente, Putin mente, fact-checkers,
2016, 2022, etc.” – concedo tudo. Sim, mente-se. Mente-se, e muito. E
justamente por isso é preciso olhar menos para a verborragia e mais para a
gramática do gesto. O gesto do Alasca diz: voltamos ao concerto de potências. A
Europa, que não gosta de música forte, tapa os ouvidos e chama de “barulho”. O
mundo real chama de “política”. Olavo chamava de “adultez”. E
adultamente, é preciso admitir: não foi “paz na nossa época”. Foi o início de
outra época. Com paz, se houverem nervos; sem paz, se houver sentimentalismo. A
decisão, como sempre, não será tomada em Bruxelas.
Se eu fosse conselheiro de um
líder conservador europeu – Deus me livre –, diria apenas isto: parem de pregar
sermão em quem carrega espada. Formem exércitos, arrumem testosterona, negociem
sua própria sobrevivência, pois o resto é monólogo de salão.
Trump e Putin, entre um rugido
de turbina e um sorriso de carro oficial, já abriram a nova página.
E, quer gostem ou não, vocês
foram rebaixados ao rodapé.
Título, Imagem e Texto: Walter
Biancardine, ContraCultura,
17-8-2025
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