Aparecido Raimundo de Souza
E eu, que só queria
pular da cama, preparar um breakfast tranquilo e em seguida desfrutar de um
pouco de paz antes de começar a escrever meu texto, vi meu dia que prometia ser
maravilhoso se curvar diante dela. A luz que eu havia acendido, mudou de tom, a
música vinda do radinho de cabeceira se calou em chiados esquisitos e
espaçosos.
A alegria que antes
dançava leve, se recolheu num canto, tímida. Não era tempestade, mas silêncio.
Desses que no meu entender pesam mais que o ribombar de um trovão enfurecido A
nuvem não anunciou chuva. Apenas ficou. E às vezes, é isso que mais machuca o
que permanece assim do nada, sem explicação. Meu Deus, o que está acontecendo?
Era um dia bonito, desses que parecem prometer redenção. Sem falar na magia do
céu.
Entretanto, por algum
motivo, a beleza que dele emanava, não impediu que a nuvem se distendesse — e
se fizesse pesada, escura, cheia de lembranças que não cabiam mais no meu
presente. Com ela, de braços dados, a solidão. Também essa criatura não
alardeou estrondo. Veio vindo e se instalou como quem já conhecia a casa: e, de
fato, conhecia. Se recostou numa mesinha de canto ao lado da minha cama e no
minuto seguinte se levantou indo até meu guarda-roupas.
Mexeu nas gavetas da memória, acendeu a luz de outros cômodos, inclusive aqueles dos meus escondidos que eu tentava manter apagados. Para destruir, de vez, meu dia, a tristeza veio logo no encalço. Sem pedir licença, se abancou ao meu lado trazendo o fracasso como companhia. E eu, que só queria me levantar, tomar meu dejejum e ir para o escritório no começo do corredor e escrever meu texto, me vi parado, olhando para o nada com olhos cheios de tudo.
A melancolia, como
ensinava Santo Agostinho “credo quia absurdum” * tem um jeito estranho de se
fazer presente. E a gente só acredita numa coisa, quando não consegue explicar,
até porque essa coisa não aperta, mas também não solta. Porém, me fez lembrar dos
rostos que não vejo mais, das vozes que o tempo calou, dos abraços que ficaram
no passado. A saudade é cruel: ela não mata, mas também não deixa a gente viver
direito.
As minhas “pessoas
queridas” e apartadas do meu convívio, não são apenas ausência. São presenças
em forma de falta. São os lugares onde o quieto fala mais alto. São os
aniversários que não têm mais sentido, os finais de semana que perderam o
cheiro e o gosto do dejejum, do almoço e do café e claro, das conversas
nascidas para serem jogadas fora. E assim eu sigo, com a nuvem ainda pairando,
esperando que no minuto seguinte ela se dissolva.
Ou que eu aprenda a
caminhar sob ela, sem perder a beleza de olhar para o céu. Ela se engrandeceu
sem aviso, sem dizer a que veio, como quem já sabia que o meu dia bonito não
duraria. A nuvem escura não pintou no meu pedaço com trovões e relâmpagos, mas com
lembranças. E essas, sim, fazem um estardalhaço que chega a ser ensurdecedor.
Nesses lances rápidos,
lembro da mamãe. Recordo do cheiro do bolo no forno, do jeito como ela sabia
quando eu estava triste, mesmo sem dizer uma palavra. Mamãe partiu cedo demais,
como quem sai de cena antes dos aplausos derradeiros. E desde então, o mundo
parece menos acolhedor. A minha casa, quase de esquina, continua de pé, mas não
tem mais aquele gosto, ou melhor dito, não tem mais aquele cheiro forte e
peculiar de lar.
Meus filhos cresceram,
casaram, descasaram e seguiram. E eu fiquei aqui, tentando entender em que
ponto da estrada nos desencontramos. Meus rebentos vivem as suas vidas, e eu,
apesar dessas lacunas, os adoro e os amo em silêncio, mesmo não ligando (aliás,
nunca o fizeram), e esquecem que também sinto falta. Isso, bem sei, não é
abandono, é distância. Não importa. Dói
aqui dentro, esse incômodo, como se fosse algo mais tenebroso. A saudade dos
que partiram cedo demais (mamãe Ana e meu pai Roberto), são feridas abertas que
não se arrugam nem se encarquilham.
As atimias
consternadas dos filhos e filhas que não trazem os netos, também contribuem
para a solidão se tornar maior. A gente, entretanto, aprende a conviver com
“esses vácuos, com essas ausências”, como quem se limita e se acostuma a andar
com pedras nos sapatos. Às vezes, elas apertam mais. Em outras, parecem ter
sumido. Mas basta uma voz no quintal do vizinho, uma música alta vinda do bar
do seu Arthur, ou uma foto achada ao acaso — e lá estão elas, inteiras de novo
massacrando o sossego dos calinhos e os joanetes de estimação.
A nuvem escura
continua ali. Firme e forte. Não sei se vai embora. Talvez essa agourenta tenha
vindo para ficar. E oxalá, com o tempo, (ainda que a poder de pauladas nos
costados), eu aprenda a olhar para ela com menos medo. No fundo, no fundo, ela
só existe porque houve amor. E isso, nem o tempo apaga. Coisa de uma semana,
lembrei do cheiro das roupas lavadas que minhas filhas Amanda e Luana
espalhavam pela casa.
O varal era quase um
altar — ali pendurava não só fraldas, vestidinhos e calças plásticas, mas
também o cuidado, o zelo, o amor incondicional da Marlucia que não precisava de
palavras. Quando elas sorriam, por algum motivo bobo e corriqueiro, até os dias
nublados pareciam menos pesados. A casa de repente ficou grande demais. O
relógio do corredor que acessa a cozinha, continua marcando as horas, mas
parece que o tempo estancou junto com os ponteiros enferrujados.
O som da chaleira
fervendo ainda ecoa, mas não há mais as mãos carinhosas e meigas para servir o
café. E o sofá da sala, diante da tevê preto e branco, antes tão disputado,
agora é só um lugar onde o vazio se senta. Ainda aqui pela casa, alguns
brinquedos estão guardados, a bem da verdade, como relíquias de um tempo em que
a casa se fazia cheia de risos e correrias. Hoje, Narjara, Eduardo, Amanda e
Luana vivem as suas vidas, e eu os vejo de longe, como quem observa um trem que
já partiu.
Às vezes, me pergunto
se lembram do cheiro do bolo, das histórias antes de dormir, dos banhos, dos
abraços apertados. O celular toca menos. E quando se faz presente, é rápido,
urgente, quase protocolar. E não são meus filhos. A saudade não tem espaço nas
agendas deles. Mas eu, firme, forte e incansável, continuo esperando,
aguardando como quem espera por um “oi, pai,” ou um “oi vô,” que talvez nunca
cheguem. Me olho no espelho do banheiro, quando vou fazer a barba e vejo alguém
que carrega muitas histórias, mas poucas testemunhas.
A minha juventude foi
embora se mandou de mala e cuia com os verões, e o rosto agora guarda marcas
que ninguém mais pergunta como surgiram. O dia do enterro de mamãe Ana foi
ensolarado, como se o céu quisesse contrariar a dor. As flores se faziam
bonitas demais para aquele momento. E mesmo cercado de gente, foi ali, foi
exatamente ali, que a solidão se instalou de vez dentro de meu ser.
No dilatado do dia, o
céu se moldou, se enfeitou como se zombasse da minha agonia. As flores que
chegaram se fizeram bonitas demais para aquele momento. E mesmo cercado de
gente, foi ali, bem ali que a solidão supliciosa efetivamente se instalou de
vez, como uma pena severa a ser levada à cabo. O telefone, repito, toca menos.
E quando dá sinais de vida, é rápido, urgente, quase sem alma. A prostração dos
que partiram cedo demais é uma ferida constante que não sangra, mas que também
não cicatriza.
A gente aprende a
conviver com ela, e a aceitar, como escreveu Nélida Piñon em seu livro “O Calor
das coisas”, “nós aprendemos a respirar com metade dos pulmões.” E então, hoje,
logo pela manhã, a nuvem se ergueu de novo. Contudo, algo nela estava meio que
diferente. Intrigado, abri a porta da sala e saí para a varanda. A rua estava
vazia. O céu, seguia escuro. No chão, meu Pai Santíssimo, no chão quase embaixo
do portão, um envelope. Dentro, uma tirinha de papel. Na verdade, um bilhete.
Letras amareladas, tremidas. Peguei-o pressuroso e li. Dizia apenas:
"Mamãe está aqui.
Mas não como você se lembra de mim."
*Creio porque é
absurdo.
Título e Texto:
Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro,
9-9-2025
Ela seria uma espécie desconhecida de sólido geométrico?
O julgamento do ano ou a divina sacanagem da comédia humana?
[Aparecido rasga o verbo – Extra] Nosso Adeus ao Mestre do Humor: A Morte de Luiz Fernando Veríssimo
Matei todos os heróis que meus filhos poderiam ter tido
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