terça-feira, 9 de setembro de 2025

[Aparecido rasga o verbo] Foi assim, inexplicavelmente incrível

Aparecido Raimundo de Souza

O MEU DIA nasceu cedo e com promessas. As seis e meia da manhã, ao abrir a janela do meu quarto, me deparei com um céu, tremendamente azul como esperança recém-pintada. Tudo parecia conspirar a favor. Mas foi então que ela se ergueu. Uma nuvem escura, densa, sem pedir licença. Não veio aos poucos, não se esgueirou pelas bordas do horizonte. Ela simplesmente se levantou inteira, se alçapremou como quem já sabia que seria protagonista.

E eu, que só queria pular da cama, preparar um breakfast tranquilo e em seguida desfrutar de um pouco de paz antes de começar a escrever meu texto, vi meu dia que prometia ser maravilhoso se curvar diante dela. A luz que eu havia acendido, mudou de tom, a música vinda do radinho de cabeceira se calou em chiados esquisitos e espaçosos.

A alegria que antes dançava leve, se recolheu num canto, tímida. Não era tempestade, mas silêncio. Desses que no meu entender pesam mais que o ribombar de um trovão enfurecido A nuvem não anunciou chuva. Apenas ficou. E às vezes, é isso que mais machuca o que permanece assim do nada, sem explicação. Meu Deus, o que está acontecendo? Era um dia bonito, desses que parecem prometer redenção. Sem falar na magia do céu.

Entretanto, por algum motivo, a beleza que dele emanava, não impediu que a nuvem se distendesse — e se fizesse pesada, escura, cheia de lembranças que não cabiam mais no meu presente. Com ela, de braços dados, a solidão. Também essa criatura não alardeou estrondo. Veio vindo e se instalou como quem já conhecia a casa: e, de fato, conhecia. Se recostou numa mesinha de canto ao lado da minha cama e no minuto seguinte se levantou indo até meu guarda-roupas. 

Mexeu nas gavetas da memória, acendeu a luz de outros cômodos, inclusive aqueles dos meus escondidos que eu tentava manter apagados. Para destruir, de vez, meu dia, a tristeza veio logo no encalço. Sem pedir licença, se abancou ao meu lado trazendo o fracasso como companhia. E eu, que só queria me levantar, tomar meu dejejum e ir para o escritório no começo do corredor e escrever meu texto, me vi parado, olhando para o nada com olhos cheios de tudo.

A melancolia, como ensinava Santo Agostinho “credo quia absurdum” * tem um jeito estranho de se fazer presente. E a gente só acredita numa coisa, quando não consegue explicar, até porque essa coisa não aperta, mas também não solta. Porém, me fez lembrar dos rostos que não vejo mais, das vozes que o tempo calou, dos abraços que ficaram no passado. A saudade é cruel: ela não mata, mas também não deixa a gente viver direito.

As minhas “pessoas queridas” e apartadas do meu convívio, não são apenas ausência. São presenças em forma de falta. São os lugares onde o quieto fala mais alto. São os aniversários que não têm mais sentido, os finais de semana que perderam o cheiro e o gosto do dejejum, do almoço e do café e claro, das conversas nascidas para serem jogadas fora. E assim eu sigo, com a nuvem ainda pairando, esperando que no minuto seguinte ela se dissolva.

Ou que eu aprenda a caminhar sob ela, sem perder a beleza de olhar para o céu. Ela se engrandeceu sem aviso, sem dizer a que veio, como quem já sabia que o meu dia bonito não duraria. A nuvem escura não pintou no meu pedaço com trovões e relâmpagos, mas com lembranças. E essas, sim, fazem um estardalhaço que chega a ser ensurdecedor.

Nesses lances rápidos, lembro da mamãe. Recordo do cheiro do bolo no forno, do jeito como ela sabia quando eu estava triste, mesmo sem dizer uma palavra. Mamãe partiu cedo demais, como quem sai de cena antes dos aplausos derradeiros. E desde então, o mundo parece menos acolhedor. A minha casa, quase de esquina, continua de pé, mas não tem mais aquele gosto, ou melhor dito, não tem mais aquele cheiro forte e peculiar de lar.

Meus filhos cresceram, casaram, descasaram e seguiram. E eu fiquei aqui, tentando entender em que ponto da estrada nos desencontramos. Meus rebentos vivem as suas vidas, e eu, apesar dessas lacunas, os adoro e os amo em silêncio, mesmo não ligando (aliás, nunca o fizeram), e esquecem que também sinto falta. Isso, bem sei, não é abandono, é distância.  Não importa. Dói aqui dentro, esse incômodo, como se fosse algo mais tenebroso. A saudade dos que partiram cedo demais (mamãe Ana e meu pai Roberto), são feridas abertas que não se arrugam nem se encarquilham.

As atimias consternadas dos filhos e filhas que não trazem os netos, também contribuem para a solidão se tornar maior. A gente, entretanto, aprende a conviver com “esses vácuos, com essas ausências”, como quem se limita e se acostuma a andar com pedras nos sapatos. Às vezes, elas apertam mais. Em outras, parecem ter sumido. Mas basta uma voz no quintal do vizinho, uma música alta vinda do bar do seu Arthur, ou uma foto achada ao acaso — e lá estão elas, inteiras de novo massacrando o sossego dos calinhos e os joanetes de estimação.

A nuvem escura continua ali. Firme e forte. Não sei se vai embora. Talvez essa agourenta tenha vindo para ficar. E oxalá, com o tempo, (ainda que a poder de pauladas nos costados), eu aprenda a olhar para ela com menos medo. No fundo, no fundo, ela só existe porque houve amor. E isso, nem o tempo apaga. Coisa de uma semana, lembrei do cheiro das roupas lavadas que minhas filhas Amanda e Luana espalhavam pela casa.

O varal era quase um altar — ali pendurava não só fraldas, vestidinhos e calças plásticas, mas também o cuidado, o zelo, o amor incondicional da Marlucia que não precisava de palavras. Quando elas sorriam, por algum motivo bobo e corriqueiro, até os dias nublados pareciam menos pesados. A casa de repente ficou grande demais. O relógio do corredor que acessa a cozinha, continua marcando as horas, mas parece que o tempo estancou junto com os ponteiros enferrujados.

O som da chaleira fervendo ainda ecoa, mas não há mais as mãos carinhosas e meigas para servir o café. E o sofá da sala, diante da tevê preto e branco, antes tão disputado, agora é só um lugar onde o vazio se senta. Ainda aqui pela casa, alguns brinquedos estão guardados, a bem da verdade, como relíquias de um tempo em que a casa se fazia cheia de risos e correrias. Hoje, Narjara, Eduardo, Amanda e Luana vivem as suas vidas, e eu os vejo de longe, como quem observa um trem que já partiu.

Às vezes, me pergunto se lembram do cheiro do bolo, das histórias antes de dormir, dos banhos, dos abraços apertados. O celular toca menos. E quando se faz presente, é rápido, urgente, quase protocolar. E não são meus filhos. A saudade não tem espaço nas agendas deles. Mas eu, firme, forte e incansável, continuo esperando, aguardando como quem espera por um “oi, pai,” ou um “oi vô,” que talvez nunca cheguem. Me olho no espelho do banheiro, quando vou fazer a barba e vejo alguém que carrega muitas histórias, mas poucas testemunhas.

A minha juventude foi embora se mandou de mala e cuia com os verões, e o rosto agora guarda marcas que ninguém mais pergunta como surgiram. O dia do enterro de mamãe Ana foi ensolarado, como se o céu quisesse contrariar a dor. As flores se faziam bonitas demais para aquele momento. E mesmo cercado de gente, foi ali, foi exatamente ali, que a solidão se instalou de vez dentro de meu ser.

No dilatado do dia, o céu se moldou, se enfeitou como se zombasse da minha agonia. As flores que chegaram se fizeram bonitas demais para aquele momento. E mesmo cercado de gente, foi ali, bem ali que a solidão supliciosa efetivamente se instalou de vez, como uma pena severa a ser levada à cabo. O telefone, repito, toca menos. E quando dá sinais de vida, é rápido, urgente, quase sem alma. A prostração dos que partiram cedo demais é uma ferida constante que não sangra, mas que também não cicatriza.

A gente aprende a conviver com ela, e a aceitar, como escreveu Nélida Piñon em seu livro “O Calor das coisas”, “nós aprendemos a respirar com metade dos pulmões.” E então, hoje, logo pela manhã, a nuvem se ergueu de novo. Contudo, algo nela estava meio que diferente. Intrigado, abri a porta da sala e saí para a varanda. A rua estava vazia. O céu, seguia escuro. No chão, meu Pai Santíssimo, no chão quase embaixo do portão, um envelope. Dentro, uma tirinha de papel. Na verdade, um bilhete. Letras amareladas, tremidas. Peguei-o pressuroso e li. Dizia apenas:

"Mamãe está aqui. Mas não como você se lembra de mim."   

*Creio porque é absurdo.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 9-9-2025

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