Rafael Nogueira
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Arte: Paulo Márcio |
A mal chamada "PEC da
blindagem" não me parece, à primeira vista, uma conspiração de corruptos
para assegurar a impunidade, como alardearam tantos membros do governo federal
e foliões da micareta esquerdista, sempre prontos a vestir a fantasia de
guardiões da virtude, mesmo depois de saírem impunes de comprovadas
estripulias.
Mas a história é menos óbvia.
Na Constituição de 1988, originalmente, previu-se que, antes de qualquer
denúncia contra deputados ou senadores ir parar no Supremo Tribunal Federal, a respectiva
Casa legislativa deveria dar o seu aval. Eram dispositivos que serviam para
resguardar a separação de poderes, para que nem tudo pudesse ser decidido por
promotores ou juízes.
O problema é que surgiu um caso muito fora de série. Hildebrando Pascoal, então
deputado pelo Acre, era conhecido como o "deputado da motosserra".
Adivinha por quê. Isso. Por ter mandado esquartejar desafetos. Sim, com
Serra-elétrica. Sim, ele mesmo o fazia, com suas próprias mãos.
Diante de um personagem desses, o pavor de seus pares em assumir a
responsabilidade de autorizar ou barrar o processo é compreensível. A solução
foi retirar o Congresso do caminho e deixar a decisão nas mãos exclusivas do
procurador-geral da República e do STF.
Três décadas depois, a realidade mudou. Não há mais Hildebrando serrando
adversários, mas há um Supremo cada vez mais inclinado ao jogo político. A
consulta constitucionalmente garantida ontem abdicada pelo Congresso, hoje
enfraquece a representação popular concentrando poderes em quem não foi eleito.
Pensa comigo: uma votação qualquer no Congresso pode ser capturada por uma
suprema ligação. A discussão, portanto, não é tão simples quanto a gritaria dos
shows de rua quis fazer parecer.
II.
Tenho lido Leo Strauss e Eric Voegelin ultimamente, e se entendi bem, para eles
nós vivemos num momento privilegiado para a filosofia e para a ciência. Pois
note bem: a filosofia clássica não nasceu no apogeu da Grécia, mas na sua
decadência. Platão escreve A República quando Atenas definhava, corroída por
guerras internas, pela derrota para Esparta, pela erosão que abriria caminho
para a dominação macedônica. Não foi a era dourada que viu nascer filosofia.
Séculos depois, Santo
Agostinho publica sua A Cidade de Deus sob o estrondo das invasões bárbaras que
corroíam Roma. O mesmo padrão se repete com Voegelin, Strauss, Hannah Arendt e
tantos outros intelectuais do século XX, que fugiram do nazismo e do comunismo
levando consigo não apenas suas extraordinárias mentes, mas também os escombros
da cultura europeia. Voegelin vinha de Viena, daquela Viena que, entre o fim do
século XIX e o início do XX, talvez tenha sido o ponto mais alto já alcançado
pela humanidade em música, literatura, artes visuais, ciências e humanidades.
Em cada uma dessas épocas, o
colapso social e político fez bem à inteligência. A filosofia encontrou sua
razão de ser não no conforto, mas na crise.
III.
Se é verdade que vivemos em decadência, há nisso a estranha consolação de que
foi da decadência que nasceram grandes livros e grandes obras. Claro que isso
pode custar a nós, estudiosos contemplativos, problemas de ordem prática
gravíssimos: pior que contas atrasadas, são as perseguições judiciais, os
exílios forçados. Mas quem sabe daí não brotam as obras de gênio que tanto
faltam?
Talvez não seja coincidência
que questiúnculas políticas sanguinárias e a leitura de Strauss e Voegelin
tenham se cruzado em minha mesa na mesma semana.
As duas realidades falam, cada
uma à sua maneira, sobre o fenômeno do colapso da ordem como prelúdio
necessário à busca pela ordem interior. Se não conseguirmos produzir as obras,
ao menos teremos esboçado os desenhos a partir dos quais outros poderão erguer
edifícios inteiros de contribuição brasileira ao conhecimento universal.
Título e Texto: Rafael
Nogueira, O Dia, 24-9-2025
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