Título: João Luiz Mauad, X, 4-12-2025, 20h06
A decisão liminar de Gilmar Mendes, ministro decano do
STF, é de gravidade comparável às dos atos institucionais da ditadura militar
Mario Sabino
Por
meio de um golpe branco, a democracia brasileira se tornou, ontem, uma
autocracia. Nela, o único dos três Poderes composto por integrantes sem mandato
popular, o Judiciário chefiado pelo STF, passou a estar acima dos outros dois,
e de forma incontrastável.
Não
é exagero retórico. A decisão liminar de Gilmar Mendes, no âmbito de uma
ação movida por aliados políticos de ministros do Supremo, é de gravidade
comparável às dos atos institucionais da ditadura militar.
Com
uma canetada monocrática, o decano revogou o artigo 52 da Constituição, segundo
o qual compete privativamente ao Senado Federal processar e julgar os ministros
do STF. Ele também extinguiu a lei, datada de 1950, que garante a qualquer
cidadão brasileiro apresentar denúncia por crimes de responsabilidade dos
ministros do tribunal. O povo se viu alijado de um direito.
De
acordo com a decisão liminar de Gilmar Mendes, o que era competência do Senado
agora passa a ser atribuição exclusiva da Procuradoria-Geral da República, hoje
comandada pelo seu amigo e ex-sócio Paulo Gonet.
Caberá somente à PGR denunciar ministros do STF e, para que haja abertura de processo de impeachment, Gilmar Mendes determinou que será necessário o apoio de dois terços do Senado, não mais o de uma maioria simples. Os demais ministros devem chancelar a liminar a partir do dia 12 de dezembro, em plenário virtual, longe do escrutínio popular, portanto.
Só
em uma república das bananas, juízes podem rasgar a Constituição e uma lei
dessa forma para impor a sua vontade a 81 senadores eleitos.
Na
sua primeira camada, a do casuísmo, a liminar serve para blindar os integrantes
do STF contra a provável maioria de direita a ser eleita para o Senado, em
2026. Nas condições que existiam até ontem, não seria impossível para essa
eventual maioria obter a cabeça de Alexandre de Moraes, prioridade do
bolsonarismo até o momento frustrada pelos presidentes da Casa.
Na
sua segunda camada, porém, a liminar de Gilmar Mendes vai muito além do
casuísmo. Ela é a formalização da supremacia do STF sobre os outros poderes,
aberração autoritária que vem sendo construída desde 2019 com a abertura, de
ofício, do primeiro dos inquéritos sigilosos destinados a “salvar a
democracia”.
O
salvamento da democracia pelo tribunal é uma daquelas fantasias que jornalistas
gostam de vender, mas ela não resiste ao teste da realidade de um Supremo que
virou canhão solto no convés.
A
liminar do decano sacramenta que um ministro do tribunal pode realmente fazer o
que quiser, sem qualquer controle externo digno desse nome, ao arrepio da
Constituição e das leis que regulamentam os direitos e deveres dos cidadãos.
Exemplo
disso é que, se o Legislativo aprovar uma emenda constitucional para reverter a
decisão de Gilmar Mendes, o STF irá declará-la inconstitucional, como já foram
advertidos senadores e deputados.
Alguns
jornalistas apontam que, no caso de um candidato da direita vencer a eleição
presidencial do ano que vem, o próximo procurador-geral da República não será
dócil como Paulo Gonet e poderá levar adiante uma denúncia contra um ministro
do Supremo. Ou seja, o feitiço do STF se viraria contra o feiticeiro.
É
uma ingenuidade. Primeiro, porque o tentáculos políticos dos ministros do
Supremo hoje alcançam o órgão e a corporação que se conectam diretamente ao
tribunal no seu dia a dia: PGR e PF. Ninguém mais as chefia sem a aprovação
prévia de integrantes do tribunal, e a aprovação exige lealdade absoluta.
Depois,
haverá sempre a possibilidade de o STF mudar outra vez a legislação sobre o
impeachment de seus ministros para evitar novos sobressaltos. Não existem
pudores, na atual composição, quanto ao uso da jurisprudência de ocasião e da
discricionariedade para fazer valer os seus interesses e conveniências — basta
verificar como o ministro Dias Toffoli se apropriou do processo contra Daniel
Vorcaro, que fez ótimas amizades em Brasília, usando de simpatia e generosidade
calculadas.
Estamos
vivendo sob uma autocracia, apesar de aparências em contrário que funcionam
como atenuante para a verdade dura. Alguns chamam de ditadura do Judiciário.
Não importa o nome que se dê, a Nova República, com o seu sistema de freios e
contrapesos, terminou oficialmente ontem com o ato institucional do STF. O que
temos é simulacro.
Texto: Mario Sabino, Metrópoles, 4-12-2025, 17h11

Tarde demais para tentar recuperar a aparência de normalidade institucional.
ResponderExcluirA própria imprensa que hoje denuncia os excessos contribuiu para legitimar o avanço de um poder sem limites.
O resultado está aí: um ex-presidente preso por um suposto golpe, enquanto os verdadeiros golpistas administram o país por meio de decisões monocráticas que se sobrepõem à democracia - com total sucesso.