sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

[Aparecido rasga o verbo] O defunto inconformado

Aparecido Raimundo de Souza

AFLOROSO PICÃO passado a menos de duas horas à condição de defunto, além de fresco, está furioso. Por conta, a criatura (resmunga dentro do caixão, aliás, não resmunga, berra):
— Ei, alguém que esteja me escutando aqui do lado? Por favor... por acaso fui colocado num esquife ou em uma caixa de sapato?
O gerente da funerária, o Combodart da Silva Tansulosina (assustado, arregala os olhos espiando ao redor):
— Meu Deus, quem está falando?
Afloroso Picão:
— Eu, seu moço! O ocupante recém-chegado. Já vou logo avisando: não estou nada satisfeito... Antes de descer os sete palmos, quero fazer uma reclamação. Necessito de um novo caixão.

Combodart, sem entender bulhufas:
— Ora, mas o senhor já partiu deste mundo... não deveria se importar com mais nada.
Afloroso Picão:
— Não me importar? Chega mais perto e dê uma olhada. Tire a tampa. Mal consigo esticar os braços! Espia, passei a vida inteira reclamando de apertos, ônibus lotados, elevadores cheios... e agora, até na subida para a eternidade, me colocam num caixão tamanho P!
Combodart, espantado, (coça a cabeça):
— Senhor, por favor, me perdoe, talvez o orçamento da sua família esteja meio apertado...

Afloroso Picão (indignado):
— Apertado? Pois quem está apertado, meu amigo, sou eu! Se ao menos fosse um ataúde king size, eu poderia descansar em paz. Assim, com este onde estou agora, vou passar meus futuros dias em desconforto...
Combodart tenta acalmar (a impaciência de cujus):
— Mas veja, meu nobre, observe pelo lado bom: o senhor não precisará mais se preocupar com dores nas costas...
Afloroso Picão (em tom sarcástico):
— Claro, porque agora tenho dores na alma!
Combodart:
— Quer que eu tente convencer a sua esposa a trocar? Seus entes queridos não estão mais aqui na sala ao lado, mas a sua mulher segue conversando com o padre Antônio Maria, o dono da funerária...

Afloroso Picão:
— Sim, diga a ela que se não arrumar um caixão maior, eu voltarei para reclamar todas as noites. E aí, quem não vai descansar em paz serão os que ficam! Principalmente a minha irmã Esparadrapina. Toda noite, a partir de hoje, vou lhe perturbar o sossego fazendo cosquinhas em seus pés.
Combodart, efetivamente assustado:
— Senhor, fique calmo. Com licença. Vou falar com sua companheira.
O Combodart se afasta, mas Afloroso Picão não se aquieta, segue a alta voz:
— Vamos... eu não sou sardinha para ficar enlatado desse jeito!

O gerente Combodart se assusta:
— Meu Deus, me acuda! Jesus, Maria, José...
— Pois é, meu caro. Quem foi o gênio que achou que eu caberia nesse caixão tamanho infantil?

Nesse exato momento, vem da sala ao lado a única pessoa presente. A viúva Julia Picão (chorando, mas ouvindo a voz do falecido):
— Querido? É você?
Afloroso Picão:
— Sou eu, minha querida e devotada metade da maçã. Me permita reclamar: se era para economizar, você poderia ter escolhido flores mais baratas, não um caixão menor! Puta que pariu!

O padre Antônio Maria, dono da funerária, logo atrás de sua cliente, (faz o sinal da cruz):
— Isso é obra do além... quem morreu não fala...
Afloroso Picão (irônico):
— Obra do além nada, seu padreco afrescalhado. Isso é falcatrua da sua loja fajuta de caixões colado em sua igreja e, de roldão, aos pentelhos do cemitério. Foi você e seus vendedores que empurraram para meus familiares, principalmente para minha esposa, uma promoção enganosa. Ladrão!

Combodart, interfere, tentando mais uma vez apaziguar:
— Mas senhor, até onde sei, o caixão onde o senhor está deitado agora foi escolhido por sua família, ou melhor dito, por suas filhas e genros... se eles estivessem aqui, mas como precisavam seguir para seus respectivos trabalhos...
Afloroso Picão:
— Família? Filhas e genros? Então quer dizer que depois de anos pagando boletos, sustentando a casa, os filhos, os netos, esses “boca abertas” dos maridos parasitas dessas beldades, o prêmio final é me enfiarem, goela abaixo, ou a dentro, neste recipiente apertado?

A viúva (tenta justificar o injustificável):
— É que o modelo maior, meu amor, estava meio fora do orçamento... e como ninguém se prontificou a coçar os bolsos...
Afloroso Picão, espuma de raiva. Solta, de contrapeso, uns puns fedorentos. Os presentes se abanam:
— Fora do orçamento? Pois agora estou fora do juízo! Se não arrumarem outro paletó de madeira, vou me levantar daqui e escolher um a minha altura. E mais: levarei alguém comigo... acho que será você, minha estimada cara metade!... meus genros e filhas seguiriam comendo o que recebo da merda do Loas. Se o filho da puta do Lula não continuar roubando os aposentados... aquele traste que todos chamam de presidente deveria estar no inferno...

O cadáver na mesa ao lado, esperando para ser preparado para o sepultamento, levanta a cabeça e com voz abafada e se manifesta):
— Ei, senhores, “menas” conversas. Falem baixo. Estou cansado. Fui atropelado pelo caminhão de lixo da prefeitura e gostaria de esperar a minha vez em silêncio.
Afloroso Picão (responde alterado, os nervos em frangalhos):
— Em silêncio uma pinóia. Fica na sua. Aproveita e vai lá fora fumar um cigarro...

O Padre Antônio Maria (tenta acalmar as bravezas exaltadas):
— Seu Afloroso, vamos todos respirar fundo...
Afloroso Picão (ri):
— Respirar fundo? Boa sorte, seu padre. Aqui dentro não tem nem espaço pra encher os pulmões!
A viúva, finalmente (decide):
— Está bem. Ok. Vamos trocar o caixão. Mas só desta vez!

Afloroso Picão, (bate palmas, satisfeito):
— Assim sim é que se fala, minha patroa. Amor da minha vida. Porque se não, eu voltarei todas as noites para reclamar. E aí, quem não vai descansar em paz serão vocês!

O caixão treme com as reclamações do desinquieto e futuro comedor de capim pela raiz. A viúva segue aos prantos. O padre tenta rezar. Está feliz, pois sabe que vai embolsar uns trocados a mais. Seu gerente, o Combodart limpa o suor com um lenço com as iniciais da funerária.

De repente, do nada, o impossível acontece: o leito mortuário de Afloroso começa a se expandir, como se fosse um objeto inflável. Afloroso Picão, no minuto seguinte, se vê com espaço de sobra. Para perplexidade de todos os presentes, seu corpo inerte se levanta meio aos trambolhões e dispara:
— Finalmente! Já era em tempo... um caixão tamanho família!

Um inusitado ainda mais caótico acontece em seguida. O caixão cresce tanto, mas tanto, que vira uma espécie de carro espacial, com luzes piscando e turbinas surgindo dos lados. O padre Antônio Maria se benze, tenta cantar “Jesus Cristo” de Roberto Carlos, mas antes de terminar de esparrar as cruzes, desmaia. O gerente Combodart sai catando cavacos. A viúva, em face desse inesperado, consegue mal e porcamente balbuciar:
— Mas... mas... agora percebo... de fato, esse tipo de caixão não estava no contrato do padre, quando assinei o documento com a merda desta funerária...

Minuto seguinte, o assombroso, o improvável e o inconcebível aflora. O sem vida, vestido com um uniforme do Super Homem aparece lembrando o inoxidável Christopher Reeve sabe-se lá como e anuncia:
— Adeus, terráqueos! Se não me deram por aqui, nem tive descanso em paz, buscarei sossego nas estrelas!

O caixão decola em direção ao céu. Atravessa umas nuvens ralas e deixa um rastro de pétalas de flores e velas apagadas. Os demais que acorrem, olham esbugalhados e boquiabertos enquanto o extinto desaparece no espaço. Com voz a imitação de seres extraterrestres, promete voltar um dia para cobrar juros do antigo caixão apertado. O inusitado velório (velório?) se encerra com brados e mugidos histéricos, sem mencionar as pessoas próximas debandando ao tempo em que se veem pisoteadas não só pela confusão alvoroçada, como, igualmente, pelas fugas às cegas em meio aos carros e motocicletas com seus condutores pra lá de sobressaltados. Dia seguinte o jornalzinho “O Furo do Olho Vesgo” estampa o acontecido em letras garrafais:

DEFUNTO INCONFORMADO TRANSFORMA SEU CAIXÃO EM NAVE ESPACIAL E FOGE DA TERRA.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, ES, 12-12-2025

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