A consolidação da candidatura de Flávio Bolsonaro reacende o clima de polarização que marcou as últimas eleições no Brasil. Isso é bom ou ruim para Lula?
Nuno Vasconcellos
Uma das manias mais irritantes
do cenário político brasileiro é a insistência de certos “analistas” em tirar
conclusões antes de conhecer as variáveis da equação e de apontar como
inevitáveis resultados que não consideram todas as circunstâncias em torno do
problema. Essa mania tem se manifestado com uma frequência assustadora em
referência à candidatura do senador Flávio Bolsonaro. Em tempo: esse assunto
foi tratado nesta coluna no domingo passado e volta a ser discutido agora; não pelo que
representa de novo, mas pelo que reacende de velho na política brasileira.
Flávio entrou na raia há menos
de duas semanas e causou tanta surpresa que muitos o receberam como se
estivesse “de brincadeira”. Sua decisão não deveria ser levada a sério. Tanto
assim que muita gente chegou a considerar sua desistência como certa. A maioria
dos defensores desse ponto de vista não dispunha de qualquer evidência de que
Flávio sairia da disputa. Mas insistia na ideia da desistência porque, em suas
hipóteses de cenário, não havia espaço para a possibilidade dessa candidatura.
Agora, terão que aceitar a verdade: até prova em contrário, a candidatura é
para valer.
Outros, igualmente surpresos,
reagiram como se o senador já estivesse em campanha desde o início e que sua
colocação discreta nas primeiras pesquisas de opinião que incluíram seu nome
mostrava que, assim como os outros nomes da direita, ele não teria qualquer
chance de vitória. Por tudo que sua família representa na política brasileira e
por acreditar que a prisão de seu pai, o ex-presidente Jair Bolsonaro, e o
suposto fracasso de seu irmão, o agora ex-deputado Eduardo Bolsonaro, na missão
que ele se atribuiu nos Estados Unidos, minariam completamente suas chances,
Flávio pisaria no ringue eleitoral sem qualquer possibilidade de vitória e
apenas serviria de sparring para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Os excessos analíticos se manifestam com força igual, mas em direção contrária, entre os que aprovaram a largada de Flávio Bolsonaro na corrida. Bolsonaristas convictos chegaram a apontá-lo como único nome capaz de enfrentar Lula com chances de vitória e os mais entusiasmados até atribuíram a ele certo favoritismo. Ou seja: houve exageros tanto de um lado quanto do outro.
Flávio, porém, nem é o
candidato inviável que muitos apontam nem a novidade capaz de surpreender a
todos e que se torna imbatível ao longo da campanha, como foi Fernando Collor,
em 1989, e seu pai, em 2018. O melhor a fazer neste momento é jogar um facho de
luz sobre o cenário e tentar avaliar se as chances de ele chegar ao Planalto
são reais.
“NARRATIVA CORRETA” — Como sempre acontece em disputas que envolvem uma
reeleição, o que está em jogo não são as propostas da oposição, mas a avaliação
do candidato que busca permanecer no poder. Sendo assim, as análises iniciais
devem se concentrar mais nas virtudes e nos vícios do governo do presidente
Lula do que nas credenciais do candidato de oposição. Ocorre que, pelo fato de
ser filho de quem é, Flávio traz para a disputa ingredientes que não estavam
previstos.
É preciso considerar que, antes de Flávio penetrar na festa para a qual não havia sido convidado, tudo se encaminhava para uma disputa com os nervos menos eriçados do que estiveram nas eleições presidenciais mais recentes. A situação vinha se encaminhando para um cenário que mostrava um presidente Lula menos radical na defesa dos temas que garantem a fidelidade da esquerda e da extrema-esquerda, mas que são rejeitados pelos demais eleitores. No cenário ideal, Lula disputaria votos com o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que traria para o debate um discurso mais moderado do que o de Jair Bolsonaro, mas que garantiria o apoio dos eleitores identificados com a direita.
O resultado desse embate, com
largo favoritismo para Lula no momento da largada, beneficiaria àquele que se
mostrasse mais capaz de atrair o eleitor médio. Esse eleitor não é de direita
nem de esquerda, não é fiel a qualquer candidato, vota de acordo com as
próprias conveniências e com as circunstâncias do momento. Não é o caso de
chamá-lo, aqui, de “eleitor de centro”, para não subordiná-lo aos movimentos
ardilosos do chamado “Centrão” — que trata o cenário político como um armazém
de secos e molhados e está sempre transformando cargos em mercadoria. Esse
eleitor é apartidário, dono do próprio voto, se guia mais por fatores
emocionais do que por preferências políticas e representa algo em torno de 30%
dos votos.
Ninguém, a esta altura, tem a
menor ideia de quem ele escolherá quando estiver diante da urna.
Com Flávio na disputa, o cenário se altera e o realinhamento dos astros tende a
reproduzir a mesma polarização que marcou as campanhas eleitorais passadas. E,
do ponto de vista do governo, aumenta o peso de alguns ingredientes que teriam
importância mais discreta se a disputa fosse contra Tarcísio. Se contra o
governador o cenário tendia à despolarização, do ponto de vista de Flávio,
quanto mais polarização, melhor.
O principal esforço do senador
nos primeiros momentos da campanha deverá ser o de reacender a chama que, em
2018 e 2022, transformou o bolsonarismo num fenômeno de massa — e a
possibilidade de que isso aconteça, neste momento, depende mais de eventuais erros
de condução política por parte do governo do que da capacidade do senador de,
no primeiro momento, atrair a simpatia do eleitor médio. A mobilização do
eleitor de direita, neste momento, é essencial para criar o ambiente emocional
que, na hora certa, pode atrair o eleitor que tem em mãos o poder de decidir a
eleição.
Lula não precisa de fazer
tanto esforço. Basta não errar. Ele é favorito numa disputa em que largou antes
de todos os demais e estava, até uma semana e meia atrás, sozinho na raia. Seu
provável adversário, Tarcísio de Freitas, sequer havia decidido se entraria ou
não na disputa. E dava a entender que só entraria em campo caso as forças que o
apoiam reunissem condições suficientes para aumentar suas chances de vitória.
Flávio, não. Ele sabe que só terá alguma chance se reduzir a hostilidade que
existe contra ele e construir, por sua própria força e não por apoio do Centrão
ou de quem quer que seja, um ambiente favorável, que lhe dê condições de
vitória. Chega como azarão e, portanto, sem a obrigação de vencer. E é
justamente essa a primeira circunstância que precisa ser levada em conta na
análise de suas possibilidades.
Lula tem uma máquina poderosa
em mãos e já deixou claro que, a partir de agora, ela trabalhará exclusivamente
voltada para a reeleição. Na quarta-feira, o presidente reuniu sua equipe na
Granja do Torto, em Brasília, e cobrou que os ministros se empenhem mais na
divulgação dos resultados de suas pastas. Mais do que isso, ele quer que
insistam na comparação dos resultados com os das gestões anteriores. Segundo o
presidente, o governo ainda não achou a “narrativa correta” para fazer com que
a população tome conhecimento de suas realizações.
É aí que está o problema de
Lula. A máquina é poderosa, mas seu funcionamento deixa a desejar em aspectos
que, do ponto de vista eleitoral, têm mais impacto do que as vantagens
proporcionadas pelas áreas em que o governo se destaca. Alguns ministérios realmente
têm o que mostrar e não precisam de narrativa alguma, só de fatos, para expor
suas realizações. O governo tem apresentado dados positivos no que se refere ao
desempenho da economia. Lula tem, e certamente o exercerá, todo o direito de
apresentar os números positivos desses setores que estão indo bem como
realizações de seu governo.
Resta saber se esses dados
positivos serão suficientes para cobrir a má impressão deixada em áreas
especialmente sensíveis. A verdade é que a maioria das 38 pastas que compõem
seu governo têm muito pouco, ou quase nada, para mostrar. Algumas, como são os
casos da Justiça e Segurança Pública e das Relações Exteriores, mais ajudariam
às pretensões eleitorais do chefe se, ao invés de inventar uma narrativa para
divulgar suas ações, tentassem esconder o que andaram fazendo nos últimos anos.
E é justamente de áreas sob a
responsabilidade desses e de outros ministérios próximos ao presidente que
podem emergir os problemas que, quando for chegada a hora, são capazes de
influenciar a decisão de voto do eleitor médio, minar o favoritismo de Lula e
transformar a corrida pela reeleição, em 2026 numa disputa muito mais difícil
do que seria se seu principal adversário não carregasse o sobrenome Bolsonaro.
PEDRAS NO CAMINHO — Quem reparar direito notará que, neste momento — e
sem incluir na lista o clima de “já ganhou” que já levou dezenas de candidatos
experientes a cometerem erros infantis e os fizeram perder eleições
praticamente ganhas — há pelo menos quatro fatores sensíveis que, se não forem
muito bem administrados pelo governo, podem se transformar em obstáculos reais
à reeleição de Lula.
Nenhum deles parece ter,
sozinho, força suficiente para causar danos irreversíveis às chances eleitorais
do presidente. Combinados, no entanto, podem criar problemas e produzir
fraturas que, bem exploradas pelos adversários, podem criar uma situação que narrativa
nenhuma, por mais eloquente que seja, conseguirá conter seu impacto negativo.
Que fatores são esses? Vamos lá.
Nº1: GOVERNO E STF — A troca de elogios entre o presidente Lula e o
ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, na festa de
lançamento do canal de notícias SBT News, dias atrás, expôs uma proximidade
que, do ponto de vista do apelo eleitoral, é desfavorável ao governo. Essa
proximidade reforça a percepção de que o rigor excessivo do ministro contra o
ex-presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores não passou de uma trama
orquestrada com a intenção de afastar o principal adversário de Lula da
disputa.
Por mais que o governo e o
Judiciário tentem negar, a percepção é a de que os dois são unha e carne.
Não adianta o PT e seus apoiadores criarem uma narrativa em torno da autonomia
dos poderes e serem obrigados a sair sempre em defesa do papel institucional do
STF. O que o “eleitor médio” percebe, a esta altura, é que o governo e a
Justiça caminham lado a lado num tema que só pode ter seu peso eleitoral
devidamente avaliado se os eleitores da esquerda e da extrema-esquerda forem
excluídos da amostra.
Apenas essa exclusão
permitiria avaliar, com precisão, como a parte da sociedade que decidirá a
eleição enxerga o rigor exagerado não só contra Bolsonaro, mas, também, contra
todos os condenados pelas manifestações do dia 8 de janeiro de 2023. Não há quem
discorde que as penas aplicadas contra eles foram exageradas — e que isso será
considerado nas eleições.
A amplitude dos placares das
votações do chamado projeto da “dosimetria” na Câmara (onde foi aprovado por
291 votos a 148) e no Senado (onde obteve 48 votos a favor e 25 votos
contrários) mostra que as chances de livrar da cadeia os condenados às penas pesadíssimas
aplicadas por Moraes têm amplo apoio social. A despeito disso, a esquerda e a
extrema-esquerda, com o apoio de satélites do governo que não têm uma imagem
propriamente vinculada à defesa de princípios morais (como é o caso do senador
alagoano Renan Calheiros, do MDB), insistem em defender o rigor contra os
condenados. E, para defender seus pontos de vista, convocam manifestações tão
esvaziadas que apenas expõem a falta de apoio popular às penas exageradas.
Pior: além de não encontrar
eco no eleitorado médio, esse tipo de postura contrasta com o tratamento frouxo
e condescendente que o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski,
historicamente, defende para crimes que, aos olhos da sociedade, são muito mais
graves do que os cometidos pelos manifestantes bolsonaristas. Uma das questões
que podem interferir no resultado da luta pela conquista do eleitor médio é:
como justificar tanto rigor contra os condenados pelo 8 de janeiro e, ao mesmo
tempo, estar sempre defendendo atenuantes para os autores de crimes hediondos?
Nº 2: CRIME ORGANIZADO — A sociedade, de um modo geral, cobra mais rigor
contra a bandidagem e o governo, por mais que tenha passado, de algum tempo
para cá, a defender o endurecimento do jogo contra os criminosos, é pouco
convincente nesse papel. O aumento da sensação de perigo do cidadão diante da
expansão do poder das organizações criminosas e a cobrança de uma política mais
enérgica no combate às quadrilhas serão fatores determinantes para decisão de
voto nas próximas eleições brasileiras. Como, aliás, já foram, na semana passada,
nas eleições presidenciais do Chile.
Isso mesmo: entre os motivos
da vitória do candidato de direita José Antonio Kast contra a comunista
Jeanette Jara, no Chile, está o tratamento da esquerda às quadrilhas que há
anos fizeram do porto de Valparaíso um entreposto do tráfico de drogas para os
Estados Unidos. Com o apoio do governo americano, Kast teve habilidade para
explorar eleitoralmente a situação. O tratamento aos criminosos é um dos pontos
mais frágeis do governo brasileiro e, bem explorado pelo senador, pode tirar
votos preciosos de Lula.
Nº 3: A SITUAÇÃO INTERNACIONAL — A vitória de Kast comprova uma
tendência que vem se espalhando pela América Latina. A presença de Javier Milei
no governo da Argentina, somada à de Daniel Noboa no Equador, Rodrigo Paz, na
Bolívia, Santiago Peña, no Paraguai, e Nayib Bukele, em El Salvador, indica que
o Brasil com seu governo de esquerda está ficando isolado na região. Conduzida
por uma diplomacia tíbia e pouco convincente, a política externa do Brasil
encontra cada vez menos apoio quando, por exemplo, contesta as ações dos
Estados Unidos em relação à Venezuela.
Dependendo do que acontecer
nos próximos dias e das atitudes que o governo porventura venha a tomar em
defesa do narcoditador Nicolás Maduro, Lula será cobrado pelo apoio que sempre
deu ao governo “bolivariano”. E sofrer as consequências de uma posição que,
hoje em dia, rende mais prejuízos do que benefícios eleitorais.
Nº 4: A SAÚDE DE JAIR BOLSONARO — Esse é um tema delicado, mas, com o
devido cuidado, precisa ser incluído entre os fatos que poderão ter impacto
sobre os rumos da disputa. A saúde do ex-presidente Bolsonaro é frágil e, por
razões óbvias, tem piorado desde que ele passou a cumprir na superintendência
da Polícia Federal, em Brasília, a pena de prisão a que foi condenado pelo STF.
A decisão de Alexandre de
Moraes de dificultar a internação do ex-presidente para mais uma das cirurgias
a que terá de se submeter em decorrência da facada que levou de um militante de
esquerda na campanha de 2018 certamente foi acompanhada pelo eleitor médio e
pode ser cobrada nas urnas. Na hora agá, a conta sobre a piora do estado de
saúde de Bolsonaro poderá ser cobrada de Lula. Mais delicado ainda: uma piora
mais acentuada do quadro de saúde do ex-presidente pode levar seus apoiadores a
um clima de comoção que, certamente, pode se voltar contra o candidato que mais
se beneficiou com seu afastamento da disputa.
A história das próximas
eleições ainda está por ser escrita. Acontece que a entrada de Flávio na
disputa torna a eleição de 2026 muito parecida com a de 2022. Só que, agora,
com o sinal trocado: quem atacava agora está na defensiva; e quem defendia
ganhou a prerrogativa do ataque. Resta saber o que acontecerá.
Esta coluna será interrompida a partir da próxima edição e só voltará a
circular no dia 16 de janeiro. A todos os que nos acompanham ao longo deste ano
nosso muito obrigado e, a todos, o desejo de um 2026 rico em emoções e pobre em
disputas irrelevantes. Um feliz Natal e um ótimo Ano Novo!
Título e Texto: Nuno
Vasconcellos, O Dia, 21-12-2025

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