Presente em quintais, áreas de serviço e lajes por décadas, o tanque de lavar roupa foi muito mais que um objeto utilitário — virou cenário de infância, trabalho invisível e memória afetiva da cidade
Bruna Castro
Ele estava lá antes da máquina, antes do porcelanato, antes da promessa de praticidade. Cinza, áspero, pesado, quase indestrutível. O tanque de lavar roupa de cimento moldado não era apenas um objeto da casa carioca — era um lugar. Um ponto fixo da vida cotidiana onde o tempo corria de outro jeito, marcado pelo barulho da água, pelo esfregar ritmado da roupa, pelo cheiro do sabão em barra e pelas conversas atravessadas que nunca começavam nem terminavam direito.
Em milhares de casas do Rio,
sobretudo nas Zonas Norte e Oeste, o tanque ocupava posição central
no quintal, na área de serviço ou na laje. Não por capricho, mas por
necessidade. Ali se lavava roupa à mão, se ensaboavam tênis, se deixava a
camisa de molho “até amanhã”, se esfregava o uniforme da escola, se limpava o
pano de chão e, não raramente, se dava banho no cachorro nos dias de calor. Era
um equipamento multifuncional antes mesmo de a palavra existir.
Mas o tanque não servia só
para lavar. Servia para conversar. Quantas histórias não foram contadas com o
braço dentro d’água? Quantos conselhos atravessaram o tanque de uma vizinha
para outra, enquanto a roupa era torcida com força? Ali se falava da vida
alheia, da conta atrasada, do filho que não obedecia, do marido que chegava
tarde, da novela da noite anterior. O tanque era testemunha silenciosa de
dramas pequenos e grandes, desses que nunca viram manchete, mas sustentaram a
cidade.
Havia também o corpo. O frio da água no inverno, o choque nas mãos. O calor insuportável do verão, quando lavar roupa era quase uma forma de resistência física. O tanque exigia esforço, tempo, presença. Não havia botão para apertar e sair. Era preciso ficar ali, enfrentar a tarefa, terminar o que se começou. Por isso mesmo, o tanque ensinava. Ensinava paciência, repetição, responsabilidade — valores que não vinham escritos, mas eram aprendidos na prática, de geração em geração.
Com o tempo, o tanque virou
símbolo. Símbolo de uma casa viva, de uma família em funcionamento, de um
cotidiano que não se escondia. As casas modernas tentaram empurrá-lo para fora,
substituí-lo por máquinas silenciosas e áreas de serviço cada vez menores. Em
muitos apartamentos novos, ele simplesmente desapareceu. Mas a memória ficou.
Basta mencionar “tanque de cimento” para que o carioca saiba exatamente do que
se trata — e veja, mentalmente, uma cena inteira.
Assim como o piso suburbano, o
tanque carrega uma estética própria, ligada ao improviso, à durabilidade e à
adaptação. Não era bonito nos catálogos, mas era honesto. Não prometia
conforto, mas entregava resultado. E, sobretudo, fazia parte de um modo de
viver em que a casa não era vitrine, era ferramenta.
Talvez por isso o tanque de cimento provoque hoje uma nostalgia tão forte. Ele lembra uma cidade mais doméstica, mais lenta, mais falada. Um Rio onde o trabalho invisível sustentava tudo, onde o quintal era extensão da sala e onde a cidade também se construía nesses pequenos rituais diários. O tanque pode ter saído de muitas casas, mas continua firme na memória coletiva. Porque, no fundo, ele nunca foi só um tanque. Foi um pedaço do Rio.
Título e Texto: Bruna
Castro, Diário do Rio, 31-12-2025
A história do ‘Piso Suburbano’

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