sexta-feira, 7 de novembro de 2025

[Aparecido rasga o verbo] A casa das bundas ditosas

Aparecido Raimundo de Souza

NAQUELA CASA bonita e elegante no bairro Jardim Guanabara, na Ilha do Governador, tudo era grande.  Aliás, imenso. Os risos, os abraços, as piadas sem graça, os palavrões, as refeições, os potes de sorvete, os sofás reforçados, e claro, os traseiros. Era uma família de pesadas bundas ditosas. Traseiros felizes, redondos, e absolutamente sem nenhum tipo de pudores. O bom, nessa situação. Todos, sem tirar nem pôr, viviam em harmonia, celebrando cada refeição como um ritual sagrado, onde em mesa farta reinavam, a todo vapor, as feijoadas, as pizzas de mussarela, os salgadinhos, as frituras, os refrigerantes açucarados e o colesterol tinha vida farta com força total. Por lá, as figuras esquizofrênicas dos seres magros não iam além de um mito inventado pela população de esfomeados e raquíticos que viviam embaixo da marquise de um ponto de ônibus defronte ao portão do Cemitério da Cacúia. 

A convivência dessa família de pesos, se fazia exemplar. Nunca brigavam por bobagens. Dividiam o controle remoto, o último pedaço de bolo, o restinho do café no fundo da garrafa e até os segredos mais íntimos e cabeludos. Havia, como em toda família, um ponto de tensão que nem o amor conseguia suavizar: o banheiro. A casa, construída por um arquiteto “meia boca”, sem nenhuma visão de praticidade futura, dividia o bairro com Waldick Soriano, naqueles idos um “zé ninguém” que nem cogitava em ser famoso, menos ainda, o Lafaiete (o que tinha um conjunto que acompanhava o Roberto Carlos), que morava todos em palacetes de tirar o fôlego, cada um mais encantador que o outro, todos irmanados na pacata e bucólica Rua Ituá, na entrada do Jardim Guanabara. A propriedade dos pesadões embora a casa fosse imensa e por azar ou burrice de quem a colocou em pé, se ateve em dispor apenas de um banheiro. Um, para dez bundas ditosas. E era ali, (nesse “um só banheiro”) que a paz se desfazia como papel higiênico molhado.

A privada, sempre pela manhã e à tarde, virava campo de batalha. Havia uma escala rigorosa, um cronograma com horários milimetricamente calculados, e mesmo assim, os imprevistos aconteciam. Um pratão de feijão mal digerido, uma lasanha ousada, uma pizza, uma macarronada e pronto: estava formado o caos total. A porta de entrada vivia ameaçada de ser arrombada por urgências intestinais. A chave que trabalhava na fechadura, sonhava em trocar de nariz. No pior dos mundos, fugir para a casa de um dos moradores ao lado, fosse o lado direito, ou  esquerdo. O exaustor trabalhava em tempo integral, como um mártir da ventilação. E o vaso, coitado do vaso, esse já tinha sido molestado por diversas empresas especializadas em entupimentos umas trocentas vezes só neste ano, desde os primeiros dias de janeiro.

Apesar dos apertos, literalmente a família dos rechonchudos seguia firme. De antemão sabiam que, no fundo, o que os unia se fazia maior do que qualquer descarga entupida: era o amor imensurável em sua melhor forma de expressão. O amor incondicional, sem mascaras.  E talvez misturado com fermento, vinho e cerveja. O sanitário, vulgarmente conhecido como “cagador”, não se fazia apenas num mecanismo hidráulico. Se transformara, o sujeito, cabeça tronco e membros em um mártir. Um herói silencioso que enfrentava batalhas diárias contra as forças que desafiavam as leis da física e da má digestão. A mais nova da prole, a menina Conceição, uma gordinha de dez anos, o apelidara de “Comedor de tudo”

Por assim, o “Comedor de tudo” tinha seus dias bons, claro. Quando o café da manhã se fazia servido leve, o almoço se constituía somente em saladas, (raríssimas vezes) ele o “Comedor de tudo” até cantava a sua melodia de escoamento com orgulho. Entretanto, bastava um domingo de feijoada completa, um rodízio de pizza, ou o aniversário de algum vizinho, a tia Serafina, que fazia uns bolos de chocolate com oito camadas e três tipos de recheios. Com isso, o infeliz do “Cagador”, perdão, do “Comedor de tudo” entrava em estado de alerta geral. A família, embora unida, se fazia impiedosa com o pobre guerreiro. Ninguém queria assumir a culpa pelos constantes entupimentos. A infração recaia sempre no que usara antes e logo depois surgia a conversa de que “foi o anterior que exagerou”, “o encanamento que se fazia velho demais”, ou “o papel higiênico que deveria ser “menas fino” ou biodegradável”.

Pelo sim, pelo não, o “Comedor de tudo”, calado, sem saída, sofria horrores. Até que um dia, o infeliz, pê da vida, se revoltou. Chutou os pés do bidê e encrencou com o chuveiro metido a besta. Meio da madrugada, após uma sequência de visitas ao banheiro, cada uma mais dramática que a outra, o “Comedor de tudo” decidiu que chegara a hora de se manifestar. E o que fez? Passou a mão na cordinha que liberava a água da caixa da descarga e a cortou inteira. Daí em diante, nada mais funcionou. O “Comedor de tudo” simplesmente cruzou os braços. Aguentou firme e forte o cheiro dos dejetos expelidos. Nem um suspiro, nem um “minha nossa, que horror!”. Se calou num silêncio profundamente absoluto.

A imagem do não funcionamento da descarga, grosso modo, passou a se constituir no tipo de imagem que grudava na cabeça e não só nela, nos fundilhos. Uma descarga sem a cordinha tudo bem, mas uma latrina entupida na casa dos paquidermes das bundas ditosas se tornara praticamente num personagem coadjuvante bastante sofrido. Por vezes se via destratado, todavia, no seu padecimento penoso e sempre à beira de um colapso estomacal decorrente de um vômito hidráulico que a cada novo minuto dava sinais de jogar tudo pra fora. Às vezes se segurava, noutras, não tinha como. “Comedor de tudo” não se constituía apenas num mecanismo hidráulico, mais que isso, o cidadão se fizera um mártir. Um herói silencioso que enfrentava batalhas diárias contra forças que desafiavam as leis da física e da má digestão.

O “privadão” tinha lá seus dias bons, claro. Quando o café da manhã vinha de boa, ou seja, servido leve, e o almoço se consubstanciava só em saladas (repetindo, raríssimas essas ocasiões), o “Comedor de tudo” até cantava com a sua voz desafinada aquela do Waldick Soriano “Eu não sou cachorro não...” sem, contudo, promover o escoamento das merdas acumuladas. Entretanto, nos finais de semana, a feijoada caia pesada. O rodízio das pizzas e das batatinhas fritas, ou mesmo uma comemoração inventada, com destaque para a tia Chica Sovaco de Jardineira (a que fazia uns bolos com oito camadas e três tipos de recheios, sem falar nos cabelos nunca raspados de suas axilas) para que o WC entrasse em estado de angustia e a calamidade culminava para lá de incontida e insuportável.

A família ontem, acordou em pânico. Despertou em meio a uma enorme gritaria, como se o coração da habitação inteira tivesse parado. Reunião de emergência entre os dez moradores foi convocada na cozinha. Sugestões surgiram: desentupidor, bicarbonato, soda cáustica, desinfetante com cheirinho de hortelã, vinagre e sal, reza forte e até exorcismo pelo padre Fábio de Melo. Nada até então parecia funcionar. Foi então que decidiram fazer o impensável: construir ao contíguo, um segundo banheiro. Por falta de verba, a obra durou meses. A convivência nesse interregno ficou tensa. A espera, insuportável. Os mais afoitos usavam o quintal, os encostos dos muros. Quem precisava se livrar, corria, levava uma pá, e após se aliviar, cavava um buraco e enterrava o que fedia.  

Quando o novo banheiro finalmente foi inaugurado, com prolongamento do primeiro, separado apenas por uma cortina plástica, teve comes e bebes, fita de inauguração e discurso emocionado do patriarca Zebedeu. O “Comedor de tudo” soltou um jato triunfal. Como quem pretendia deixar claro um “Era só o respeito que eu queria.” O majestoso “Comedor de tudo” ganhou, de lambuja, uma namorada, ou seja, a nova “bacia dejetória”, trazia consigo uma maviosidade de privada para furisco nenhum botar defeito. O trono lindo e impecável, todo de vestidinho azul, com fitinhas amarelinha nas bordas, e até uma tampa último tipo abafou. O nome carinhoso que foi dado a ela, pela menina Conceição, à nova privada da casa, passou a ser chamada de “Vem que Aguento” como se a beldade (imagine!), fosse uma personagem imbuída dos mais nobres sentimentos. Em resumo, a nova bacia azul trouxe personalidade ímpar para um objeto cotidiano que nos dias subsequentes se transformou efetivamente numa heroína. “Comedor de tudo”, agora mais alegre e saltitante, teve tempo até de escrever um diário.

“Domingo passado, foi feijoada. De novo! Estou exausto. Mas acredite, em paz.  Estou vivendo um romance com a “Vem Que Aguento”. Sobreviver às madrugadas, ficou mais fácil. Não fosse a minha amada, juro que faria uma promessa ao santo dos cagões de barrigas em petição de miséria, Santo Padroeiro dos Cus Desarranjados.  Pediria a transferência para uma das casas aqui ao lado, onde descobri, mora uma família de ”veganos.” Eu e a deliciosa “Vem que aguento” estamos pensando  em ter um filho”.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 7-11-2025

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