Aparecido Raimundo de Souza
A convivência dessa
família de pesos, se fazia exemplar. Nunca brigavam por bobagens. Dividiam o
controle remoto, o último pedaço de bolo, o restinho do café no fundo da
garrafa e até os segredos mais íntimos e cabeludos. Havia, como em toda
família, um ponto de tensão que nem o amor conseguia suavizar: o banheiro. A
casa, construída por um arquiteto “meia boca”, sem nenhuma visão de praticidade
futura, dividia o bairro com Waldick Soriano, naqueles idos um “zé ninguém” que
nem cogitava em ser famoso, menos ainda, o Lafaiete (o que tinha um conjunto
que acompanhava o Roberto Carlos), que morava todos em palacetes de tirar o
fôlego, cada um mais encantador que o outro, todos irmanados na pacata e
bucólica Rua Ituá, na entrada do Jardim Guanabara. A propriedade dos pesadões
embora a casa fosse imensa e por azar ou burrice de quem a colocou em pé, se
ateve em dispor apenas de um banheiro. Um, para dez bundas ditosas. E era ali,
(nesse “um só banheiro”) que a paz se desfazia como papel higiênico molhado.
A privada, sempre pela manhã e à tarde, virava campo de batalha. Havia uma escala rigorosa, um cronograma com horários milimetricamente calculados, e mesmo assim, os imprevistos aconteciam. Um pratão de feijão mal digerido, uma lasanha ousada, uma pizza, uma macarronada e pronto: estava formado o caos total. A porta de entrada vivia ameaçada de ser arrombada por urgências intestinais. A chave que trabalhava na fechadura, sonhava em trocar de nariz. No pior dos mundos, fugir para a casa de um dos moradores ao lado, fosse o lado direito, ou esquerdo. O exaustor trabalhava em tempo integral, como um mártir da ventilação. E o vaso, coitado do vaso, esse já tinha sido molestado por diversas empresas especializadas em entupimentos umas trocentas vezes só neste ano, desde os primeiros dias de janeiro.
Apesar dos apertos,
literalmente a família dos rechonchudos seguia firme. De antemão sabiam que, no
fundo, o que os unia se fazia maior do que qualquer descarga entupida: era o
amor imensurável em sua melhor forma de expressão. O amor incondicional, sem mascaras. E talvez misturado com fermento, vinho e
cerveja. O sanitário, vulgarmente conhecido como “cagador”, não se fazia apenas
num mecanismo hidráulico. Se transformara, o sujeito, cabeça tronco e membros
em um mártir. Um herói silencioso que enfrentava batalhas diárias contra as
forças que desafiavam as leis da física e da má digestão. A mais nova da prole,
a menina Conceição, uma gordinha de dez anos, o apelidara de “Comedor de tudo”
Por assim, o “Comedor
de tudo” tinha seus dias bons, claro. Quando o café da manhã se fazia servido
leve, o almoço se constituía somente em saladas, (raríssimas vezes) ele o
“Comedor de tudo” até cantava a sua melodia de escoamento com orgulho.
Entretanto, bastava um domingo de feijoada completa, um rodízio de pizza, ou o
aniversário de algum vizinho, a tia Serafina, que fazia uns bolos de chocolate
com oito camadas e três tipos de recheios. Com isso, o infeliz do “Cagador”,
perdão, do “Comedor de tudo” entrava em estado de alerta geral. A família,
embora unida, se fazia impiedosa com o pobre guerreiro. Ninguém queria assumir
a culpa pelos constantes entupimentos. A infração recaia sempre no que usara
antes e logo depois surgia a conversa de que “foi o anterior que exagerou”, “o
encanamento que se fazia velho demais”, ou “o papel higiênico que deveria ser
“menas fino” ou biodegradável”.
Pelo sim, pelo não, o
“Comedor de tudo”, calado, sem saída, sofria horrores. Até que um dia, o
infeliz, pê da vida, se revoltou. Chutou os pés do bidê e encrencou com o
chuveiro metido a besta. Meio da madrugada, após uma sequência de visitas ao
banheiro, cada uma mais dramática que a outra, o “Comedor de tudo” decidiu que
chegara a hora de se manifestar. E o que fez? Passou a mão na cordinha que
liberava a água da caixa da descarga e a cortou inteira. Daí em diante, nada
mais funcionou. O “Comedor de tudo” simplesmente cruzou os braços. Aguentou
firme e forte o cheiro dos dejetos expelidos. Nem um suspiro, nem um “minha
nossa, que horror!”. Se calou num silêncio profundamente absoluto.
A imagem do não
funcionamento da descarga, grosso modo, passou a se constituir no tipo de
imagem que grudava na cabeça e não só nela, nos fundilhos. Uma descarga sem a
cordinha tudo bem, mas uma latrina entupida na casa dos paquidermes das bundas
ditosas se tornara praticamente num personagem coadjuvante bastante sofrido.
Por vezes se via destratado, todavia, no seu padecimento penoso e sempre à
beira de um colapso estomacal decorrente de um vômito hidráulico que a cada
novo minuto dava sinais de jogar tudo pra fora. Às vezes se segurava, noutras,
não tinha como. “Comedor de tudo” não se constituía apenas num mecanismo
hidráulico, mais que isso, o cidadão se fizera um mártir. Um herói silencioso
que enfrentava batalhas diárias contra forças que desafiavam as leis da física
e da má digestão.
O “privadão” tinha lá
seus dias bons, claro. Quando o café da manhã vinha de boa, ou seja, servido
leve, e o almoço se consubstanciava só em saladas (repetindo, raríssimas essas
ocasiões), o “Comedor de tudo” até cantava com a sua voz desafinada aquela do
Waldick Soriano “Eu não sou cachorro não...” sem, contudo, promover o
escoamento das merdas acumuladas. Entretanto, nos finais de semana, a feijoada
caia pesada. O rodízio das pizzas e das batatinhas fritas, ou mesmo uma
comemoração inventada, com destaque para a tia Chica Sovaco de Jardineira (a
que fazia uns bolos com oito camadas e três tipos de recheios, sem falar nos
cabelos nunca raspados de suas axilas) para que o WC entrasse em estado de
angustia e a calamidade culminava para lá de incontida e insuportável.
A família ontem,
acordou em pânico. Despertou em meio a uma enorme gritaria, como se o coração
da habitação inteira tivesse parado. Reunião de emergência entre os dez
moradores foi convocada na cozinha. Sugestões surgiram: desentupidor,
bicarbonato, soda cáustica, desinfetante com cheirinho de hortelã, vinagre e
sal, reza forte e até exorcismo pelo padre Fábio de Melo. Nada até então
parecia funcionar. Foi então que decidiram fazer o impensável: construir ao
contíguo, um segundo banheiro. Por falta de verba, a obra durou meses. A
convivência nesse interregno ficou tensa. A espera, insuportável. Os mais
afoitos usavam o quintal, os encostos dos muros. Quem precisava se livrar,
corria, levava uma pá, e após se aliviar, cavava um buraco e enterrava o que
fedia.
Quando o novo banheiro
finalmente foi inaugurado, com prolongamento do primeiro, separado apenas por
uma cortina plástica, teve comes e bebes, fita de inauguração e discurso
emocionado do patriarca Zebedeu. O “Comedor de tudo” soltou um jato triunfal.
Como quem pretendia deixar claro um “Era só o respeito que eu queria.” O
majestoso “Comedor de tudo” ganhou, de lambuja, uma namorada, ou seja, a nova
“bacia dejetória”, trazia consigo uma maviosidade de privada para furisco
nenhum botar defeito. O trono lindo e impecável, todo de vestidinho azul, com
fitinhas amarelinha nas bordas, e até uma tampa último tipo abafou. O nome
carinhoso que foi dado a ela, pela menina Conceição, à nova privada da casa,
passou a ser chamada de “Vem que Aguento” como se a beldade (imagine!), fosse
uma personagem imbuída dos mais nobres sentimentos. Em resumo, a nova bacia
azul trouxe personalidade ímpar para um objeto cotidiano que nos dias
subsequentes se transformou efetivamente numa heroína. “Comedor de tudo”, agora
mais alegre e saltitante, teve tempo até de escrever um diário.
“Domingo passado, foi
feijoada. De novo! Estou exausto. Mas acredite, em paz. Estou vivendo um romance com a “Vem Que
Aguento”. Sobreviver às madrugadas, ficou mais fácil. Não fosse a minha amada,
juro que faria uma promessa ao santo dos cagões de barrigas em petição de
miséria, Santo Padroeiro dos Cus Desarranjados.
Pediria a transferência para uma das casas aqui ao lado, onde descobri,
mora uma família de ”veganos.” Eu e a deliciosa “Vem que aguento” estamos
pensando em ter um filho”.
Título e Texto:
Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro,
7-11-2025
Como será o estar do outro lado da vida?
Sigo assim, ao bem querer de um vento que ainda sopra...
A gaveta do amor proibido
Meros operários da construção civil

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