Aparecido Raimundo de Souza
DE REPENTE, do nada, por descuido, a empregada Mariana, responsável por todo o serviço da casa de seus patrões, sem largar um minuto do celular, ao retirar as roupas de dona Flor, do varal e de seu marido Romário Romão, ao correr ao quarto do casal para guardar as referidas peças, não repara e deixa uma calcinha ir de roldão no meio das cuecas. São quase cinco da tarde. Nessa hora, uma luz suave entra pelas frestas da janela entreaberta. Afobada, em vista de faltar menos de meia hora para seus patrões chegarem do escritório onde trabalham nos serviços de advocacia, a infeliz não se dá conta que uma calcinha rendada de dona Flor, a preferida dela, justamente a de cor vinho, foi repousar acidentalmente entre as cuecas masculinas do patrão. Diligente e ágil, uma cueca azul, de algodão, sai correndo de perto dos seus pares e se aproxima com elegância.
A Cueca Azul (se achega, toda melosa):
— Boa tarde, senhorita. Perdoe a ousadia. Não sei o motivo de estar aqui. Apenas tenho em mente que este não é o seu habitat natural, mas me permita dizer… a sua presença eleva o nível desta gaveta a patamares jamais sonhados. Seja, pois, bem-vinda...
A calcinha (surpresa, e ao mesmo tempo estupefata) procura ser gentil:
— Oh, obrigada. Eu explico. Foi um erro da desastrada da Mariana a empregada aqui da casa. Como sempre, distraída tagarelando com as amigas no celular. Eu devia estar na gaveta aqui de cima.
A Cueca Azul (com um leve sorriso galanteador):
— Eu sei. Já imaginava fosse isso. Repare, minha princesa. Erros são os degraus do destino. E se o acaso lhe trouxe e lhe fez cair justo aqui, quem sou eu para questionar o senhor que rege o nosso universo?
A Calcinha (ri discretamente):
— Você tem lábia. Me lembra um desses políticos corruptos que vivem como ratos de esgoto em Brasília.
A Cueca Azul (com seriedade poética):
— Não é lábia, moça, é admiração. Vejo, daqui, que a sua costura é pura arte. Sua renda, nem se fala. Uma sinfonia. E seu tom… vinho, como uma boa bebida nessas noites que merecem ser lembradas.
A Calcinha (cora, se é que uma calcinha tem esse dom igual aos dos humanos):
— Você fala como se fosse um intelectual...
A Cueca Azul:
— Sou apenas uma peça que apesar do que carrega, sonha. E hoje, eu me permito sonhar acordado com a possibilidade de um breve toque de elegância em meio à rotina de companheiros sem eira nem beira que aqui dividem espaço comigo.
No que fala, A Cueca Azul (se aproxima com um palavreado impecável):
— Senhorita, me tolere a perturbação de insistir, não por vaidade, mas por reverência. Desde o instante em que a vi cair nesta gaveta, o ambiente por aqui ganhou um aroma de pura poesia. Estou inebriado...
A Calcinha (com um sorriso gentil no rosto corado refulge como se quisesse chamejar as palavras da Cueca Azul disparatadamente):
— Desde que começou a falar, esta gaveta virou palco de teatro. Mas saiba, cavalheiro, que a minha estadia aqui será breve. Sou visitante, não residente. Por ser assim...
A Cueca Azul (com olhar dramático, se é que também as cuecas têm olhos e ainda mais sensibilizantes, se finge de desentendida e travesseia desembainhando a sua picardia não levando as palavras da Calcinha à sério):
— Breve ou não, minha linda, há encontros que valem por uma eternidade. Estou me lembrando, se me permite, daquele filme, “Perfume de Mulher”, onde Al Pacino, na pele de Frank Slade e Donna, estrelado pela belíssima Gabrielle Anwar se encontram e ele pede a jovem para dançar. Ela diz, “meu noivo vai chegar em poucos minutos”. Frank arremata observando: “em um momento, se vive uma vida”. Se me consente continuar opinando, agora mudando o tema, a costura de todo o seu perfil parece feita por mãos que entendem de arte e alma. Sobretudo, de alma.
A Calcinha (com leveza e firmeza não se dá por vencida):
— Agradeço penhoradamente a lembrança do filme e o elogio, mas meu caro, a arte não se mistura com distração. Lembra, que, por descuido, fui colocada aqui, ou melhor, jogada por engano, e para seu governo, com todo respeito, não pretendo fazer morada onde não há nenhum cabimento. Por favor, não me entenda mal...
A Cueca Azul (tenta manter o charme e obtempera sem perder a pose):
— Mas e se o cabimento for reinventado? E se esta gaveta, antes monótona, se tornar num piscar de pálpebras num espaço de diálogos entre os chamados pelos seres humanos como os “opostos que se atraem?
A Calcinha (com um tom doce, mas resoluto, contra-ataca, muito séria e dona de si):
— Meu querido, os opostos podem se atraírem, sim, não há a menor dúvida. Mas perceba. Também podem se respeitar à distância. Meu lugar é em outro compartimento, e minha essência não se molda ao improviso.
A Cueca Azul (suspira e se dobra levemente como se ensaiasse uma reverência):
— Então me resta admirar a sua doce presença de longe. Como as pessoas se deslumbram diante de uma estrela sabendo que jamais esse astro será alcançado. Todavia, que a sua luz, apesar da lonjura, acredite, vale cada segundo de contemplação.
A Calcinha (com um brilho inesperado de gratidão):
— E isso, meu ilustre senhor Cueca Azul, é exatamente o que acabo de dizer que distingue um galanteio de um incômodo. Saber a hora de parar. Obrigada pela sua elegância. Agora, se me permite, aguardarei sentada aqui no meu cantinho o retorno à minha ala com a dignidade das coisas que devem permanecer intactas.
A Cueca Azul (se inclina pela segunda vez com uma nova honra respeitosa):
— Perdoe a minha insistência, senhorita portadora da mais bela perfeição e do mais sublime e puro objeto que guarda o amor. Apesar de ter caído aqui por engano, não posso deixar de perguntar… qual é o nome dessa dama magnânima que trouxe tanta sofisticação à esta humilde gaveta?
A Calcinha (se ergue de onde está sentada com graça elegante):
— Me chamo La Perla. Mas pode me chamar apenas de Perla. Sou filha de estilistas italianos. Apesar dos pesares, já me adaptei bem ao clima tropical.
A Cueca Azul se queda deveras (impressionada):
— La Perla… então não é só beleza, é também pedigree. Um prazer inenarrável. Eu sou Calvin. Calvin Klein, boxer de algodão egípcio, edição limitada. Muito prazer!
A Calcinha (sorri com um charme de elegância ímpar):
— Um nome de peso. E um tecido de respeito...
A Cueca Azul, ou melhor, agora Calvin Klein, (tenta manter o charme, sem se tornar pedante e vulgar):
— Perla, a sua presença aqui é como uma ópera em meio ao silêncio. Mas me permita acrescentar… há algo em sua costura que me intriga...
A Calcinha (baixa o tom, com dosada discrição):
— Calvin, meu querido… por favor, rogo que aja com moderação. As outras cuecas, seus companheiros ao redor de nós, (olhe para os lados, despistadamente). Observe. Estão de ouvidos em pé. Me chegam cochichos desrespeitosos vindos daquelas duas Zorbas ao lado daquele Mash com cara de tarado acomodados ali no canto...
A Cueca azul, agora uma legítima Calvin Klein (espia de soslaio para os colegas apontados):
— Esses são uns despeitados. Sempre prontos para comentarem o que para eles tem sabor de extraordinário.
A Calcinha (com firmeza gentil):
— Não é sobre eles. Tem a ver com a compostura. Entendo que por um deslize da empregada dos meus patrões, esse cochilo da serviçal não precise virar manchete dentro do seu quadrado.
A Cueca azul, repetindo, a Calvin Klein, dá um passo atrás, ou seja, (recua com alinho cortês):
— Tem razão. A última coisa que desejo é comprometer a sua divinal e impecável conspicuidade.
A Calcinha (com um leve aceno):
— Então, lhe rogo, encarecidamente. Mantenha o tom cavalheiresco. A elegância não está só na costura, mas na postura.
A Cueca Azul-Calvin Klein (se inclina com emoção contida):
— Perla… se este for nosso último instante juntos, me permita um gesto. Entenda, ele, não de ousadia, mas de gratidão. Um beijo, um ósculo leve como o toque de seda, apenas para divinizar o que jamais será por mim esquecido.
A Calcinha La Perla (com delicadeza na voz):
— Calvin… seja discreto. Se mantenha cavalheiro até o fim. Lembre, meu jovem galã: há beijo que se dá com palavras. E o seu, acredite, me tocou mais do que qualquer contato físico que você pudesse ter endereçado a mim.
A Cueca Azul- Calvin Klein (suspira, extasiada):
— Então, minha Diva, que minhas palavras sejam o recheio desse beijo. E que a sua lembrança se torne o meu eterno perfume.
Nesse exato momento, a gaveta se abre com um estrondo. A luz da tarde que ainda insiste em entrar pela janela, invade o espaço. Mariana, colada no celular como pulga no cachorro, emite uns gritinhos de satisfação ao tempo em que arregala os esbugalhos.
— Ah, danadinha. Te achei. Meu Pai! Graças a Deus a patroa ainda não chegou do serviço. Nem meu patrão! Se um deles dá de fuça com uma peça íntima colocada errada numa gaveta onde não deveria estar… acho que, zangados e soltando fogo pelas ventas, ambos me colocariam nos cafundós do olho da rua!
Rapidamente a desastrada recolhe a calcinha e a devolve à gaveta feminina, sem perceber, logicamente, o clima que paira entre as demais cucas guardadas. A gaveta masculina é fechada com um suspiro abafado.
Para lá de apaixonado, a Cueca Azul, melhor dito, a Calvin Klein (em pensamento, enquanto a escuridão retorna, agora mais forte, dolorida e pesada):
— Até breve, minha inesquecível Perla. Que a sua renda dance em sonhos, e que um dia, por acaso ou destino, as nossas costuras, cada uma no cumprimento do mais sagrado dever, se cruzem novamente... ainda que num motelzinho de beira de estrada.
A Calcinha (agora na gaveta certa, em silêncio, murmura numa espécie de monólogo com seus botões):
— Adeus, Calvin. Que a sua fibra máscula nunca perca a elegância, mesmo estando entre os sacolejos e solavancos do bruto que você tão generosamente agasalha na rotina do seu dia a dia.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, ES, 28-10-2025
Anteriores:

Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-