terça-feira, 7 de outubro de 2025

[Aparecido rasga o verbo] O incrédulo às vezes cria asas e voa entre os mortais

Aparecido Raimundo de Souza

Explicação necessária:
Um dia, o Tonho entrou na floresta que existia perto do prédio onde estudava. Extremamente curioso, mas cético e zombeteiro, queria provar que tudo que os seus colegas falavam com relação ao mundinho onde viviam naquele povoado distante de São Paulo se fazia normal. Mas lá, entre as árvores dessa floresta, onde ninguém tinha coragem de ir e ele se dispôs a encarar, uma coisa muito, muito exótica e insólita aconteceu. Esse texto é a narrativa dessa aventura meio alienígena, contada como de fato, se passou. Essa historinha por mim criada, é ousada, engraçada e cheia de alma. Ela desafia a lógica, mas abraça a imaginação. E isso é exatamente o que a literatura adulta precisa. Os rapazes e as moças de hoje não querem historinhas certinhas com lições morais previsíveis. Eles querem se surpreender, rir, se emocionar e pensar: “Ué, tudo o que esse imbecil desse cara metido a escritor falou nesse texto idiota pode, de fato, acontecer? ”Claro que sim.

COMO TODA HISTÓRIA dos meus tempos de criança, a minha também começa assim: era uma vez, faz muito, muito tempo, um rapaz interiorano de dezesseis anos de idade, chamado Tonho, inocente e cético, só levava fé naquilo que via diante da sua pequenez. Dito de forma mais abrangente. O rapaz não acreditava em nada. Se alguém dizia que viu uma estrela cadente, ele retrucava, brabo: “Mentira!” Se falavam de dragões ou fadas, ele dava contra: “Isso não existe!”. Foi no meio dos cipós dançantes que ele, certo dia, encontrou algo... algo diferente. Essa é a história desse rapazola, sem tirar nem pôr e desse “algo diferente”. Exatamente como aconteceu...

O sujeito a entrar em cena a seguir, é um orangotango. O nome dele, Boris. Mas pasmem, esse cidadão não é um orangotango qualquer. Para começar, a figura não tem cabeça. Assim que o Bebeto, o seu colega de turma, mesma sala, carteiras coladas comentou sobre essa história, aliás, uma história pra lá de surreal, de cara, o Tonho se abriu numa gargalhada sonoramente gostosa. E mandou bala:
— Conversa pra boi dormir, Bebeto. Você está brincando comigo. Não existe nada no mundo em que vivemos que não tenha cabeça.
— É mesmo? E o que você me diz da tal mula sem?
— Fala sério! Você ainda acredita nisso? Bobagem. Literatura barata. Invenção de gente que não tem o que fazer... e gosta de escrever merda...

Todavia, a coisa não parou por aí. Evoluiu. Criou forma. A turma, em peso, passou a falar abertamente sobre o tal do orangotango descabeçado que rondava pelas redondezas. Não demorou muito tempo, a escola inteira, os professores, funcionários, pais e mães, enfim, todos os moradores do bucólico e distanciado São José do Olho Virado, esquecido na poeira de muitos quilômetros de São Paulo, resolveram comentar sobre essa história maluca. A ponto de, num final de semana, o Tonho, já de saco cheio com essa conversa para ingleses verem, resolveu por conta própria e risco tirar a patacoada e colocar a coisa em pratos limpos.

— Isso é humanamente impossível! — falou conversando com seus botões. E quer saber? Eu vou entrar nessa floresta e provar pra todos esses meus colegas bobocas e pra toda cidadezinha de São José que tudo o que estão falando por aqui, não passa de coisas inventadas. Absurdos. Como muitos acreditam em asneiras eu mesmo irei pessoalmente vasculhar essa floresta de canto a canto e provar, de uma vez por todas, que o que está na boca do povo, não passa de conversa fora de esquadro. Bobagens sem sentido, “Sandices, desatinos e irracionalidades como vive apregoando meu pai” quando vai tomar cerveja com seus amigos no bar do Zé Perneta.
Com esse pensamento na cachola, no sábado Tonho pulou cedo da cama, tomou o café e disse para a mãe:
— Vou jogar bola com meus colegas.

A mãe não se importou. Sabia que o Tonho, realmente, nos sábados, chovesse ou fizesse sol, não havia quem o segurasse em casa. Mandava o dejejum para dentro e saia apressado para se reunir com seus colegas do ginasial para realmente jogar uma pelada. Paramentado com a camisa do Corinthians, saiu e tomou a direção do campo que ficava contíguo ao prédio onde estudava e a estação de trem. A tal floresta se fazia um pouco distanciada, além dos muros enorme do prédio escolar, pelo menos uns três ou quatro quilômetros, mais precisamente no final da rua descalça e comprida que finalizava nos calcanhares de um morro enorme que se perdia de vista. Sem titubear, Tonho seguiu firme e resoluto em busca do seu intento. A se ver na entrada que acessava a gleba de terra onde começava as cercanias da densa floresta, não titubeou.

Destemido, seguiu resoluto e se embrenhou por um varadouro estreito e tortuoso coberto por árvores frondosas e centenárias que, de tão altas, não permitia que o sol se fizesse robusto e radiante. Por ele, caminhou quase meia hora e quanto mais ia em frente, a paisagem fechada parecia não ter fim. Tinha consciência que a cada passo dado se distanciava da estrada de terra bruta que o trouxera até o portal. Chegou numa clareira. Suando bastante, sentou um pouco no que outrora deveria ter sido uma casa antiga totalmente em ruínas. Tirou a camisa e enxugou o suor do rosto. O sol estava a pino e apesar das árvores ao derredor cobrirem o ar escaldante, o calor se fazia insuportável. De repente, do nada, uma voz esquisita como saída de dentro de uma taquara rachada o pegou de surpresa.

— Olá meu jovem. Posso saber o que faz aqui?
Tonho num primeiro momento, se assustou. Arregalou os olhos, atônito. Olhou para todos os lados, mas não viu ninguém. Refeito dessa perturbação, indagou:
— Quem está falando comigo?
De pronto, não houve resposta. Ressabiado, insistiu:
— Quem está aí querendo me fazer de otário? Vamos, seja quem for, apareça.

Veio à mente, talvez um dos colegas de estudo escondido, sequioso e deslumbrado pela mesma balela dos demais que iguais a ele, com relação ao tal orangotango não levava muita fé. Só que ninguém respondeu. Perguntou de novo, umas seis vezes e o silêncio perdurou. Insistiu pela última vez:
— Mostra a cara. Se pensa que estou tremendo de medo, se enganou redondamente. Não estou nenhum pouquinho assustado. Vamos, seja homem...
Foi nesse exato momento que ele se agigantou. Um ser diferente pintou no pedaço. A coisa esquisita veio saindo de onde estava oculto a passos lentos e calmos. Um tremendo de um orangotango todo preto, com cara de poucos amigos. Cara não. Ele não tinha cara.
— Seja bem-vindo, meu jovem... Prazer. Eu sou Boris. Então, quem é você?

Tonho arregalou uns olhos virados na incredulidade, tamanho se fez seu espanto. A figura se moldou inteira ao sair detrás de num gigantesco jequitibá-rosa. O guri ficou estupefato, claro, mas não se deixou abater. Tampouco tremeu na base e se espantou. Em nenhum momento pensou em dar voz aos calcanhares, fazer meia volta sobre o próprio medo e sair às carreiras numa corrida precipitada. Isso jamais! Já que se dispusera a vir até ali, não ficaria bonito dar as costas e simplesmente se empreender num escape apressurado e afobado. O orangotango insistiu:
— E aí, de novo. Quem é você?

Escabreado, sem acreditar no que via, Tonho respondeu:
— Meu nome é Tonho. E você, querendo botar medo em mim, quem pensa que é? Vamos, tira essa roupa ridícula. Valeu pela iniciativa. Parabéns. A sua ideia de se passar por um orangotango foi bem legal. Quase acreditei.
— Falo sério, meu amigo. Me chamo Boris e sou, de fato, o orangotango sem cabeça do qual todos comentam...
Tonho gargalhou estrondoso, sem se deixar vencer pela estuporação do assombramento:
— Ora, vamos, Boris. Me poupe. Se você não tem cabeça, como me vê? Ou melhor, me explique, como está de pé e falando comigo? Na pior das piadas sem graça. Como sabe que estou aqui?

Boris, respondeu com um gesto elegante, apontando para o coração:
— Meu jovem, nem tudo que é real precisa ter cabeça. — respondeu numa voz suave que agora, parecia vir junto com o ar mormacento daquele começo de manhã radiosa.
Tonho arregalou de novo os olhos. O orangotango se aproximou ficando a três passos dele:
— Não precisa ter medo. Sou um orangotango mansinho...

— Ok. Se eu estivesse com medo, como acabou de dizer, eu teria colocado sebo nas canelas. Agora que viu que não me assustou nem um pouco, deixa de se fazer de desentendido. Tira esse disfarce idiota, ridículo e mostra quem realmente é. Tenho para mim que você ou é um dos meus professores ou o pai de um dos meus colegas...

Apesar de no fundo, não estar nem um pouco abalado com a presença do tal orangotango, instintivamente piscou várias vezes. Coçou os olhos. Beliscou o braço. Mas o orangotango sem cabeça continuava ali, parado, como se fosse um ser inanimado e sem vida, tipo a coisa mais normal do mundo.
— Você... você não tem cabeça! — Tonho exclamou, tentando manter a compostura.
— Ah, é isso? — disse o orangotango, com a voz saindo sabe-se lá de onde. Acredite, meu amigo, já me acostumei. Meus amigos dizem que isso me dá um ar misterioso. A Mirabel, minha namoradinha, acha esse fato bastante charmoso. Ela diz a toda hora que sou um “noiado”, ou trocado em miúdos, um “cabeça aberta”, mesmo sem ter uma.

Tonho se arregalou num esbugalho. Estava incrédulo, mas não podia mostrar essa fraqueza:
— Você tem namorada?
— Claro! Ela é uma orangotanga de vinte e oito anos, mais nova que eu um ano. A danada nasceu artista. Pinta quadros com os pés e escreve poemas com folhas. Uma vez fez um soneto sobre o cheiro das maças vermelhas. Chorei. Quero dizer... chorei por dentro.
— Isso não faz sentido nenhum — murmurou Tonho.
— Sentido é superestimado — respondeu o orangotango. Meus pais dizem que sou meio fora de órbita. Às vezes acho que eles não deixam de ter razão. Meu pai, em particular, queria que eu fosse contador de cabritos com Alzheimer. Tem muitos por aqui. Minha mãe sonhava que eu virasse apresentador de telejornal na rede de televisão aqui da selva. Mas eu... eu gosto de conversar com meninos iguais a você, incrédulos.

Tonho começou a rir um riso nervoso e meio sarcástico:
— Você tem amigos?
— Claro! Um bocado deles. Posso citar o Tamanduá Elias que só anda de patins, o Alfredo, um Bicho-Preguiça que fala em versos, e o Jabuti Tucunduva que vive correndo atrás do tempo. Somos um grupo bem unido. Jogamos xadrez com frutas e fazemos campeonatos de quem consegue ficar mais tempo sem pensar em nada.
Tonho se levantou do tronco da árvore, mas tornou a se acomodar, desta vez numa pedra, já sem saber se sonhava ou vivia o melhor começo de dia da sua vida.
— Você é mesmo real?

O orangotango sem cabeça deu uma cambalhota elegante e respondeu:
— Real é aquilo que te faz sentir. E você está sentindo, não está?
Tonho não respondeu de pronto. Pela primeira vez, não quis provar que algo, ou aquele algo que presenciava se resumia numa grande lorota. Ele só queria continuar ouvindo.
O orangotango estendeu o braço — ou melhor, a mão. Tonho, desconfiado, escondeu a sua nas costas:
— Vamos nos apresentar. Estamos aqui proseando e eu ainda não sei seu nome. Muito prazer. Eu me chamo realmente Boris. E você, qual é a sua graça?

Tonho finalmente estendeu a mão direita:
— Tá legal. Eu sou o Tonho...
—Seja bem-vindo meu amigo Tonho. Se me permite, vou lhe fazer uma proposta. Quer descortinar essa floresta todinha, de canto a canto, ou melhor, uma parte dela que tenho certeza, você nunca viu em lugar nenhum? Então, o que me diz?
— Sim, quero...
— Se prepare. Vou te levar para a incrível floresta das coisas que não se explicam. Acaso já ouviu falar dela?
— Nunca, respondeu Tonho, rindo de um canto a outro da boca. Agora que nos apresentamos, me fala. Quem é você? Tira essa máscara.
— Não existe nenhuma máscara a ser tirada. Então, por favor, vamos ou não conhecer toda essa localidade maravilhosa? Sim, ou não?

Antes de partirem de vez, Tonho indagou:
— Floresta das coisas que não se explicam... me poupe. Isso é um nome?
— De forma alguma. É um aviso — respondeu Boris com um sorriso invisível:
— Ok, seu Boris. Vou fingir que entro na sua. Vamos em frente.

Boris e Tonho partiram para essa tresloucada aventura. Atravessaram por uma cortina de cipós que sussurravam segredos. Havia um riacho e uma ponte. Cruzaram. Do outro lado, após uma pequena caminhada, a floresta ficava cada vez mais densa ao tempo em que se mostrava com paisagens diferentes e acolhedoras. As árvores tinham os olhos verdes e os mantinham fechados, como se estivessem dormindo ou sonhando. As flores flutuavam no ar e os cogumelos tocavam violino.

— Aqui tudo tem alma — disse Boris. Mas nem tudo se posiciona numa lógica considerada lógica no sentido legal da palavra.
Passos à frente, encontraram o Tamanduá Elias, andando de patins. Ele deslizava em círculos perfeitos enquanto recitava receitas de bolos de chocolate:
— Não fique amedrontado. Esse é o Elias. Ele só anda em espiral — explicou Boris. Diz que o mundo gira, então ele também...
Pintou no pedaço o Alfredo, o preguiçoso Bicho-Preguiça, no dizer de Boris, o poeta. Nesse momento a criatura pendurada de cabeça para baixo, declamava um de seus versos:
“Se o tempo escorre como mel, por que correr, se posso voar devagar e atingir os píncaros do céu?”

Tonho se fez hipnotizado:
— Isso é... bonito — murmurou...
— É estranho — corrigiu Boris. — Mas lembre-se de um detalhe. Bonito e estranho são primos em primeiro grau.
Chegaram ao centro da floresta. Havia uma clareira com vários brinquedos, tipo gangorras, balanços, uma roda gigante e um carrossel onde, aliás, um Jabuti, ou melhor dito, o Jabuti Tucunduva, no mesmo ritmo do brinquedo, corria em círculos, sobre o próprio eixo, com um relógio preso ao casco.

— Deixa eu explicar. Esse aí é o Tucunduva. Ele tenta chegar antes do tempo. Até onde sei, nunca conseguiu, mas dizem as más línguas que já chegou depois, várias vezes.
Tonho, encantado riu alto. Pela primeira vez, ele não queria entender. Queria sentir.
— E você? — Perguntou Tonho. — Por que não tem cabeça?
Boris olhou para o céu, ou talvez para dentro de si. Vai-se saber. Exclamou quase em sussurro:
— Às vezes, para ver melhor, meu mais novo amigo, é preciso parar de olhar. Eu perdi a minha cabeça procurando respostas. Ganhei a floresta em troca. Sou feliz por conta disso.

Tonho ficou um instante emudecido. A floresta parecia respirar com ele.
— Posso lhe fazer uma pergunta?
—Claro, meu mais novo amigo. Claro que pode. Manda...
— Se eu quiser, estou só me antecipando... se eu quiser voltar aqui uma outra vez, serei bem recebido?
— Só se você parar de tentar provar a si mesmo que tudo o que está vendo por aqui é mentira — disse Boris. — A floresta, como um todo, só aparece para quem acredita no que não faz sentido.

Tonho olhou para todos os lados, sem se fixar em nenhum. As flores numa alegria contagiante dançavam. As rosas vermelhas, os cravos e as margaridas, num outro espaço erguido numa espécie de platô fixo sobre pedras enormes e de várias cores, incluindo meia dúzia de cogumelos cantavam. E ele, Tonho, finalmente, passou a acreditar.
Quase fim do dia, depois de encherem as respectivas barrigas com suculentas maças e tenros pedaços de abacaxis, Boris olhando para o céu, exclamou:
— Nossa! Já se faz tarde. Agora, meu mais novo amiguinho, está na hora de você ir embora. Venha comigo. Vamos nos embrenhar por uma via secundária que lhe tirará as palavras. Você certamente se sentira sem fôlego. E não se preocupe. Essa via que acessaremos o deixará no mesmo lugar por onde entrou aqui.

Pegando o menino pela mão, o Orangotango levou Tonho por uma série de sendas secretas. Mostrou nessa nova jornada, borboletas que cantavam, passarinhos que voavam soltos, papagaios e árvores que contavam histórias à beira de um lago imenso e azul que refletia nada mais, nada menos que sonhos. Em cada passo dado, Tonho suspirava de alegria, ao tempo em que aprendia uma nova lição sobre acreditar, imaginar e sentir.
Chegaram, exatamente no local onde ele deixou a estrada e se embrenhou mata adentro. Boris se despediu com um abraço invisível.
— Volte quando quiser. Sempre será bem recebido.

Tonho voltou para casa diferente. Não acreditava em tudo, mas agora sabia que o mundo ao seu redor se fazia maior do que seus olhos podiam realmente enxergar. Ver e sentir. Sentir e ver. Às vezes, o impossível é só o comecinho de uma aventura.
Dia seguinte depois do ginásio, Tonho regressou à floresta. Boris o esperava sentado numa pedra.
— Finalmente apareceu o Margarido! Pensei que não viesse
— Pensou errado, Boris. Aqui estou eu...
—Tenho uma outra surpresa pra te mostrar.

Entraram sem mais delongas, mata adentro. Chegaram num descampado onde havia uma pedra enorme.
— Suba aqui e sente ao meu lado.
Tonho obedeceu.
Do nada, a um comando de Boris, a pedra começou a flutuar coisa de um metro do chão. O orangotango fazia malabarismos com pensamentos — literalmente. Pequenas bolhas saídas de sua boca, estalavam no ar com um punhado de ideias dentro. De repente, o céu da floresta se abriu como uma cortina multicolorida. Num dado momento... apareceu uma escada. Uma escada feita de luz líquida, que escorria para cima.
— É hora — disse Boris.
— Hora de quê? — Tonho perguntou, de chofre, já sem se importar com a lógica da coisa ser verdadeira ou não.
— De você escolher...

A floresta nesse momento silenciou. Até o Jabuti Tucunduva apareceu do nada, os esquilos idem, um casal de onças e um leopardo pararam de correr como se quisessem agarrar as pernas do tempo.
— Escolher, Boris? Escolher o que, exatamente?
— Escolher entre este mundo que você conhece... e o mundo que te conhece... e te contempla... lá do mais distanciado firmamento.
Tonho olhou para a escada surgida do nada. Na verdade, ela se deslocou detrás de uma castanheira, envolta numa espécie de sonho inimaginável. O rapaz espiou a floresta ao seu redor. Em seguida, se concentrou longamente para si mesmo, como se visse inteiro em frente de um espelho invisível.

— Vamos, Tonho... você sobe ou fica?
— O que acontecerá se eu subir?
— Você vai esquecer tudo. Inclusive que esqueceu...
— E se eu não subir e quiser ficar aqui com vocês?
— Nesse caso, vai lembrar de tudo. Inclusive do que nunca aconteceu...

Tonho respirou fundo. Torceu as mãos. Coçou a cabeça. Sem dizer uma palavra, finalmente se dispôs a seguir seus instintos.
Se pôs em marcha. Cada degrau que galgava, sentia que se apagava uma parte de sua vida. Do nada, tudo foi sumindo. A incredulidade, depois a lógica, a pressa, e finalmente a dúvida. Até que Boris — pensou com seus botões, como sempre, era um orangotango pra lá de engraçado e criativo.
— Amigos — falou Boris para os que se achavam presentes. Aqui deixamos mais um jovem que dentro de alguns minutos se tornará parte da constelação que nos contempla.

A floresta inteira a partir dessas palavras de Boris, se recolheu. As flores voltaram ao chão. Os cogumelos guardaram seus violinos. As onças e os tigres voltaram para seus esconderijos. Tudo magicamente desapareceu como uma quimera bonita e estupenda que não queria, de nenhuma maneira, ser vista e, sobretudo, lembrada.

Na pequena São José do Olho Virado, ninguém mais viu ou ouviu falar de Tonho. Nem mesmo seus pais, embora toda a cidade procurasse intensamente por ele. Tampouco no ginásio. Em dias de hoje, muitos, e muitos anos depois, às vezes, quando alguém no meio da rua, ou à noite, na praça da matriz, um menino ou uma menina, ou mesmo um casal de namorados trocando carícias no banco em frente à igreja do padroeiro encara o céu imenso e comenta “isso que hipoteticamente dizem os mais idosos se passou aqui, tempos atrás, com o tal do Tonho, nunca existiu”. 

Nessas horas, uma estrela esfomeada de amor e esperança pisca no céu intermitentemente. E talvez, só talvez, seja o Tonho, não se aguentando, rindo de canto a canto da boca com seus dentes perfeitos, espiando bem lá do mais alto céu a cidadezinha onde morava e um dia, no longínquo passado viveu por dezesseis primaveras, alimentando um punhado de alucinações que possivelmente nunca existiu.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Sooretama, em Linhares, no Espírito Santo, 7-10-2025

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