sexta-feira, 19 de setembro de 2025

[Aparecido rasga o verbo] Luvas de pelicas

Aparecido Raimundo de Souza

SE EU NÃO FALAR, se eu não tocar no assunto, talvez você que me lê agora, nem acredite. Mas pode ter certeza. Há quem guarde mágoas como quem coleciona selos raros com cuidado em álbuns invisíveis, longe dos olhos, mas sempre ao alcance das memórias mais devassas. Eu, por exemplo, tenho aqui em casa, uma gaveta com uma porção de tranqueiras. É um compartimento corrediço de madeira desgastada pelo esboroar dos anos.  Fica no meu quarto. A longeva nem chave tem. Vegeta, a infeliz, seus dias encaixada numa cômoda dos tempos em que a minha avó andava de bicicleta de uma roda só e enxergava o mundo ao seu redor com olhos de felicidade. Ela se abre e se fecha empurrando. Como diria, está mais para um cacareco obsoleto emocional. Às vezes a preciosidade se embarga sozinha, tipo assim, quando o dia está nublado ou quando eu pronuncio, sem querer, aquele nome que o tempo tentou mandar para o raio que o parta e não conseguiu. Dentro dela, há bilhetes que nunca foram respondidos, silêncios que doeram mais que gritos estridentes e promessas que se desfizeram como um papel de folha de caderno mergulhado em chuva torrencial.

Mágoas pequenas, como a daquela vez em que não me convidaram para uma festa. Martírios gigantescos, como a ausência dorida que virou rotina. O curioso é que mesmo pesando tanto, essa tralha nunca transborda. Em contrapartida, parece que o meu “eu” tem um talento estranho para acomodar dores como se cada lástima encontrasse seu cantinho, sua etiqueta, ou seu lugar. Há dias em que decido abrir a droga do bagulho com coragem. Releio os bilhetes, encaro os fantasmas, e às vezes até consigo rir feito uma hiena desmamada de uma dor ingente que já não fustiga tanto. Porque mágoa, quando encarada de frente, perde um pouco da sua força. E quem sabe, um dia, eu transforme esse badulaque em uma caixa de aprendizados. Ou melhor: em uma fogueira. E talvez, de roldão, crie coragem e bote tudo a queimar. A arder num fogaréu sem culpa e sem volta. Também existem mágoas que não abrem a boca. Elas apenas ficam. Se postam sentadas num desvão da alma, como parentes distantes que vieram da puta que os pariu para uma visita rápida e nunca mais foram embora.

A primeira mágoa da qual me lembro tem cheiro de domingo triste. Era dia de Capelete com arroz e feijão, carne assada a dar com pau, muito refrigerante e na tevê um filme reprisado. Mas havia um vácuo. Faltava ele, o meu pai. Não por acidente, nem por destino. Evaporara porque meu velho escolheu não se fazer presente. E essa ausência virou um buraco enorme e constante, como um eco ensurdecedor que insiste em repetir retumbantemente o que nunca foi dito. Depois vieram outras mágoas mais estrambóticas. Aquelas que chegaram com os velórios. Primeiro com papai partindo, assim do nada, sem revelar os motivos. Logo depois a mamãe. E ficaram sem chão os abraços que não foram dados. Com os “eu te amo” que se fizeram acorrentados na garganta. Tempos adiante, parentes outros que igualmente escafederam sem aviso, deixando retratos amarelentos que não sorriam mais. E a gente, aos poucos, aos trancos e barrancos, aprende a gracejar com os olhos molhados fingindo que a saudade é só uma lembrança bonita. A solidão também tem lá as suas desolações. Ela não precisa de motivo.

Basta um dia sem sol, uma manhã acinzentada, uma música antiga do Roberto Carlos, ou de Agnaldo Timóteo, um cheiro de ausência que soleniza alguém. E lá está ela, sentada ao lado da gente, como quem diz: “Lembra daquele tempo? Daquela dor? Pois é, meu caro! Ainda estamos aqui.” Mas há algo curioso nas mágoas: elas não criam rugas, tampouco envelhecem. Podem ter décadas, mas as danadas continuam frescas, como se tivessem acontecido ontem. E talvez seja esse particular que nos torna humanos. Essa capacidade de sentir o que já passou como se ainda estivesse acontecendo hoje, agora e a todo vapor. No fim, talvez as mágoas não queiram ser esquecidas. Quem sabe só pretendam ser compreendidas. Olhadas de frente, com carinho. Como quem diz: “Eu sei que em você doeu. Mas eu... acredite, eu sobrevivi.” A mágoa, dependendo da sua intensidade, pode virar raiz. Em vez de enterrá-la, podemos deixá-la crescer, ou até viver em forma de sabedoria. Às vezes, na minha agonia, me questiono: o que essa dor me ensinou de bom, ou de ruim? Quando a mágoa vira lição, ela deixa de ser ferida e passa a ser cicatriz visível, mas não dolorosa.

Assimilei, outrossim, aos trancos e barrancos que a mágoa que não é dita vira nó. Nó de laço apertado. Nó que sufoca. Conversar com alguém de confiança, escrever um texto cantarolar uma melodia ao acaso, ou até transformar alguma coisa estranha em arte, tudo isso é uma forma de dar voz e alento ao que fere, ao que nos tira o foco e nos machuca. Mesmo norte, o que nos arrebata a calma, a tranquilidade, a esperança, e a vontade de seguir em frente. Aos setenta e dois, aprendi também que quando a dor é muito pesada, ela se desintegra, começa a perder o equilíbrio, a força, o sentido e até a razão de ser uma simples mágoa. Por conta disso, entre lágrimas velhas e novas, descobri que perdoar não é absolver o outro. É libertar a nós mesmo. É dizer: “eu não carrego mais esse peso.” E isso não precisa apagar a lembrança, apenas tirar dela o veneno que atormenta. O buraco grandioso que a mágoa deixa pode ser preenchido com afeto, com novos vínculos, com momentos que fazem sentido. Não é sobre substituir, mas sobre ampliar. O coração não é um espaço finito.

Ele se expande, se materializa. Algumas mágoas se afastam, saem de cena, vão morar num canto discreto dentro de nós. E tudo bem. Elas não precisam desaparecer para que a gente seja feliz. Basta que não comandem nossos passos. Aos setenta e dois, repito, aprendi que há mágoas que não gritam. Elas apenas ficam. Se prostram sentadas numa cadeira de balanço meio capenga num escondidinho oculto num canto inabitado da alma, ou mesmo no quarto, como parentes chatos e distantes que vieram para uma visita vapt-vupt e nunca mais foram embora. São discretas, mas persistentes. E mesmo quando o tempo tenta varrer a dor com suas rotinas e distrações, elas insistem, pugnam teimosas, em permanecerem aqui, tipo assim, como uma poeira fina que sempre arranja um jeito de voltar a sujar os móveis de rostos antigos. A solidão também tem suas mágoas. Tem sim, de verdade. Ela não precisa de motivo. Basta um dia esquisito, chuvoso, uma música inadequada, um cheiro que lembra alguém. E lá está ela, sentada ao nosso lado, como quem diz: “Lembra daquele tempo? Se recorda daquela dor?” E a gente obviamente lembra. E faz isso porque no fundo, a mágoa não perde o viço. Pode ter décadas, mas continua fresca, inteira, irritante, como se tivesse acontecido no dia de ontem.

Dentro dela, há bilhetes os mais diversos que nunca foram respondidos, silêncios pesados que doeram mais que berros e promessas que se desfizeram como papel em chuva torrencial. Mágoas pequenas, como a vez em que uma das minhas filhas, a Luana, não me convidou para a festa de meu neto Heitor. Mágoas grandes, como a ausência que virou rotina. O curioso é que, mesmo pesando tanto, essa quiquiriqui nunca transborda. Parece que o nosso âmago tem um talento meio desordenado para acomodar dores, como se cada mácula encontrasse seu cantinho, sua etiqueta, seu lugar. Mas nem sempre é assim: há dias em que decido abrir a gaveta com coragem. Escancaro e releio os bilhetes, discuto com os fantasmas, e às vezes até consigo rir de uma dor que já não sacaneia tanto. Porque a mágoa, quando encarada de frente, nos bate forte, nos arrebenta, nos estapeia, ou nos esbofeteia sem ferir, sem deixar marcas à mostra. A mágoa nos espicaça, nos alfineta nos acutila, mas o faz com luvas de pelicas, ou seja, nos bota para baixo, nos dá uma lição de moral nos faz perder um pouco da nossa vitalidade sem deixar contornos de agressão. Por ser dessa forma, quem sabe, um dia, eu transforme essa porra dessa geringonça em uma caixa de aprendizados. Ou melhor: em uma fogueira. E decida, de uma vez por todas, incinerar tudo. Tacar fogo sem culpa. E o melhor de tudo, sem volta.

Então, entre mortos e feridos, entre cadáveres e defuntos, volta à baila a indagação inevitável: como esquecer das mágoas sem deixar um vazio no meio do coração ou um buraco incomensurável na alma? Talvez não seja sobre esquecer. Talvez seja sobre transformar. Mágoa pode virar raiz. Em vez de enterrá-la, podemos deixá-la crescer em forma de sabedoria. Quando a dor vira lição, ela deixa de ser ferida e passa a ser cicatriz. Uma cesura palpável, visível, mas decididamente não dolorosa. Falar sobre ela ajuda? Sim, sem dúvida. Mágoa que não é dita vira nó. Aperta no pescoço. Conversar, escrever, transformar em arte, tudo isso é forma de dar voz ao que nos melindra e danifica. E quando a dor é muito bajulada, condensada, encorpada ou divinizada, ela começa a perder força. Volto a golpear fortemente na tecla de que às vezes, precisamos de um gesto simbólico: simbólico? Sim! Escrever uma carta e queimá-la em seguida, visitar um lugar que marcou e se despedir, colher uma rosa e entregá-la a uma jovem no corredor, ou dentro do elevador, sempre em nome da grata e imorredoura homenagem.

O nosso corpo-matéria precisa entender que a alma está pronta para seguir. Perdoar também liberta. Não é esquecer, nem absolver o outro. É dizer: “Eu não carrego mais esse peso.” E isso não precisa remover definitivamente do recôndito da lembrança, apenas tirar dela o infame e pegajoso veneno. Pois bem! O buraco que a mágoa deixa pode ser preenchido com afeto, com novos vínculos, com momentos perenais e sempiternos. Enfim, com pequenos mimos que fazem ou que dão sentido ao próprio sentido. Não é sobre substituir, mas sobre ampliar. O coração não é um espaço finito. Ele sempre dá um jeito e se desfralda, se alarga, se prolifera. Se regozija. Por epítome, aceitar que algumas dores não dizem tchau, ou “estou indo, talvez nunca mais volte a dar o ar da graça”. Na realidade, de repente, elas só mudam de lugar. Algumas mágoas vão morar num discreto dentro de nós. Tudo bem. Elas não carecem de desaparecer para que a gente seja inteiramente feliz. Basta apenas e tão somente que não comandem, jamais, os nossos passos se resolvermos ampliar nossos desejos em direção a novos horizontes de um porvir que se avizinha.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Venda Nova do Imigrante, no Espírito Santo, 19-9-2025

Anteriores:
Terapia caseira para ir além do cotidiano 
Algumas palavras sobre “La Liberté guidant le peuple” 
Foi assim, inexplicavelmente incrível 
Ela seria uma espécie desconhecida de sólido geométrico? 
O julgamento do ano ou a divina sacanagem da comédia humana? 
[Aparecido rasga o verbo – Extra] Nosso Adeus ao Mestre do Humor: A Morte de Luiz Fernando Veríssimo

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-