Aparecido Raimundo de Souza
Mágoas pequenas, como a daquela vez em que não me convidaram para uma festa. Martírios gigantescos, como a ausência dorida que virou rotina. O curioso é que mesmo pesando tanto, essa tralha nunca transborda. Em contrapartida, parece que o meu “eu” tem um talento estranho para acomodar dores como se cada lástima encontrasse seu cantinho, sua etiqueta, ou seu lugar. Há dias em que decido abrir a droga do bagulho com coragem. Releio os bilhetes, encaro os fantasmas, e às vezes até consigo rir feito uma hiena desmamada de uma dor ingente que já não fustiga tanto. Porque mágoa, quando encarada de frente, perde um pouco da sua força. E quem sabe, um dia, eu transforme esse badulaque em uma caixa de aprendizados. Ou melhor: em uma fogueira. E talvez, de roldão, crie coragem e bote tudo a queimar. A arder num fogaréu sem culpa e sem volta. Também existem mágoas que não abrem a boca. Elas apenas ficam. Se postam sentadas num desvão da alma, como parentes distantes que vieram da puta que os pariu para uma visita rápida e nunca mais foram embora.
A primeira mágoa da
qual me lembro tem cheiro de domingo triste. Era dia de Capelete com arroz e
feijão, carne assada a dar com pau, muito refrigerante e na tevê um filme
reprisado. Mas havia um vácuo. Faltava ele, o meu pai. Não por acidente, nem
por destino. Evaporara porque meu velho escolheu não se fazer presente. E essa
ausência virou um buraco enorme e constante, como um eco ensurdecedor que
insiste em repetir retumbantemente o que nunca foi dito. Depois vieram outras
mágoas mais estrambóticas. Aquelas que chegaram com os velórios. Primeiro com
papai partindo, assim do nada, sem revelar os motivos. Logo depois a mamãe. E
ficaram sem chão os abraços que não foram dados. Com os “eu te amo” que se
fizeram acorrentados na garganta. Tempos adiante, parentes outros que
igualmente escafederam sem aviso, deixando retratos amarelentos que não sorriam
mais. E a gente, aos poucos, aos trancos e barrancos, aprende a gracejar com os
olhos molhados fingindo que a saudade é só uma lembrança bonita. A solidão
também tem lá as suas desolações. Ela não precisa de motivo.
Basta um dia sem sol,
uma manhã acinzentada, uma música antiga do Roberto Carlos, ou de Agnaldo
Timóteo, um cheiro de ausência que soleniza alguém. E lá está ela, sentada ao
lado da gente, como quem diz: “Lembra daquele tempo? Daquela dor? Pois é, meu
caro! Ainda estamos aqui.” Mas há algo curioso nas mágoas: elas não criam
rugas, tampouco envelhecem. Podem ter décadas, mas as danadas continuam
frescas, como se tivessem acontecido ontem. E talvez seja esse particular que
nos torna humanos. Essa capacidade de sentir o que já passou como se ainda
estivesse acontecendo hoje, agora e a todo vapor. No fim, talvez as mágoas não
queiram ser esquecidas. Quem sabe só pretendam ser compreendidas. Olhadas de
frente, com carinho. Como quem diz: “Eu sei que em você doeu. Mas eu...
acredite, eu sobrevivi.” A mágoa, dependendo da sua intensidade, pode virar
raiz. Em vez de enterrá-la, podemos deixá-la crescer, ou até viver em forma de
sabedoria. Às vezes, na minha agonia, me questiono: o que essa dor me ensinou
de bom, ou de ruim? Quando a mágoa vira lição, ela deixa de ser ferida e passa
a ser cicatriz visível, mas não dolorosa.
Assimilei, outrossim,
aos trancos e barrancos que a mágoa que não é dita vira nó. Nó de laço
apertado. Nó que sufoca. Conversar com alguém de confiança, escrever um texto
cantarolar uma melodia ao acaso, ou até transformar alguma coisa estranha em
arte, tudo isso é uma forma de dar voz e alento ao que fere, ao que nos tira o
foco e nos machuca. Mesmo norte, o que nos arrebata a calma, a tranquilidade, a
esperança, e a vontade de seguir em frente. Aos setenta e dois, aprendi também
que quando a dor é muito pesada, ela se desintegra, começa a perder o
equilíbrio, a força, o sentido e até a razão de ser uma simples mágoa. Por
conta disso, entre lágrimas velhas e novas, descobri que perdoar não é absolver
o outro. É libertar a nós mesmo. É dizer: “eu não carrego mais esse peso.” E
isso não precisa apagar a lembrança, apenas tirar dela o veneno que atormenta.
O buraco grandioso que a mágoa deixa pode ser preenchido com afeto, com novos
vínculos, com momentos que fazem sentido. Não é sobre substituir, mas sobre ampliar.
O coração não é um espaço finito.
Ele se expande, se
materializa. Algumas mágoas se afastam, saem de cena, vão morar num canto
discreto dentro de nós. E tudo bem. Elas não precisam desaparecer para que a
gente seja feliz. Basta que não comandem nossos passos. Aos setenta e dois,
repito, aprendi que há mágoas que não gritam. Elas apenas ficam. Se prostram
sentadas numa cadeira de balanço meio capenga num escondidinho oculto num canto
inabitado da alma, ou mesmo no quarto, como parentes chatos e distantes que
vieram para uma visita vapt-vupt e nunca mais foram embora. São discretas, mas
persistentes. E mesmo quando o tempo tenta varrer a dor com suas rotinas e
distrações, elas insistem, pugnam teimosas, em permanecerem aqui, tipo assim,
como uma poeira fina que sempre arranja um jeito de voltar a sujar os móveis de
rostos antigos. A solidão também tem suas mágoas. Tem sim, de verdade. Ela não
precisa de motivo. Basta um dia esquisito, chuvoso, uma música inadequada, um
cheiro que lembra alguém. E lá está ela, sentada ao nosso lado, como quem diz:
“Lembra daquele tempo? Se recorda daquela dor?” E a gente obviamente lembra. E
faz isso porque no fundo, a mágoa não perde o viço. Pode ter décadas, mas
continua fresca, inteira, irritante, como se tivesse acontecido no dia de
ontem.
Dentro dela, há
bilhetes os mais diversos que nunca foram respondidos, silêncios pesados que
doeram mais que berros e promessas que se desfizeram como papel em chuva
torrencial. Mágoas pequenas, como a vez em que uma das minhas filhas, a Luana,
não me convidou para a festa de meu neto Heitor. Mágoas grandes, como a
ausência que virou rotina. O curioso é que, mesmo pesando tanto, essa
quiquiriqui nunca transborda. Parece que o nosso âmago tem um talento meio
desordenado para acomodar dores, como se cada mácula encontrasse seu cantinho,
sua etiqueta, seu lugar. Mas nem sempre é assim: há dias em que decido abrir a
gaveta com coragem. Escancaro e releio os bilhetes, discuto com os fantasmas, e
às vezes até consigo rir de uma dor que já não sacaneia tanto. Porque a mágoa,
quando encarada de frente, nos bate forte, nos arrebenta, nos estapeia, ou nos
esbofeteia sem ferir, sem deixar marcas à mostra. A mágoa nos espicaça, nos
alfineta nos acutila, mas o faz com luvas de pelicas, ou seja, nos bota para
baixo, nos dá uma lição de moral nos faz perder um pouco da nossa vitalidade
sem deixar contornos de agressão. Por ser dessa forma, quem sabe, um dia, eu
transforme essa porra dessa geringonça em uma caixa de aprendizados. Ou melhor:
em uma fogueira. E decida, de uma vez por todas, incinerar tudo. Tacar fogo sem
culpa. E o melhor de tudo, sem volta.
Então, entre mortos e
feridos, entre cadáveres e defuntos, volta à baila a indagação inevitável: como
esquecer das mágoas sem deixar um vazio no meio do coração ou um buraco
incomensurável na alma? Talvez não seja sobre esquecer. Talvez seja sobre
transformar. Mágoa pode virar raiz. Em vez de enterrá-la, podemos deixá-la
crescer em forma de sabedoria. Quando a dor vira lição, ela deixa de ser ferida
e passa a ser cicatriz. Uma cesura palpável, visível, mas decididamente não
dolorosa. Falar sobre ela ajuda? Sim, sem dúvida. Mágoa que não é dita vira nó.
Aperta no pescoço. Conversar, escrever, transformar em arte, tudo isso é forma
de dar voz ao que nos melindra e danifica. E quando a dor é muito bajulada,
condensada, encorpada ou divinizada, ela começa a perder força. Volto a golpear
fortemente na tecla de que às vezes, precisamos de um gesto simbólico:
simbólico? Sim! Escrever uma carta e queimá-la em seguida, visitar um lugar que
marcou e se despedir, colher uma rosa e entregá-la a uma jovem no corredor, ou dentro
do elevador, sempre em nome da grata e imorredoura homenagem.
O nosso corpo-matéria
precisa entender que a alma está pronta para seguir. Perdoar também liberta.
Não é esquecer, nem absolver o outro. É dizer: “Eu não carrego mais esse peso.”
E isso não precisa remover definitivamente do recôndito da lembrança, apenas
tirar dela o infame e pegajoso veneno. Pois bem! O buraco que a mágoa deixa
pode ser preenchido com afeto, com novos vínculos, com momentos perenais e
sempiternos. Enfim, com pequenos mimos que fazem ou que dão sentido ao próprio
sentido. Não é sobre substituir, mas sobre ampliar. O coração não é um espaço
finito. Ele sempre dá um jeito e se desfralda, se alarga, se prolifera. Se
regozija. Por epítome, aceitar que algumas dores não dizem tchau, ou “estou
indo, talvez nunca mais volte a dar o ar da graça”. Na realidade, de repente,
elas só mudam de lugar. Algumas mágoas vão morar num discreto dentro de nós.
Tudo bem. Elas não carecem de desaparecer para que a gente seja inteiramente
feliz. Basta apenas e tão somente que não comandem, jamais, os nossos passos se
resolvermos ampliar nossos desejos em direção a novos horizontes de um porvir
que se avizinha.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Venda Nova do Imigrante, no Espírito Santo, 19-9-2025
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