sexta-feira, 26 de setembro de 2025

[Aparecido rasga o verbo] O turista extraviado

Aparecido Raimundo de Souza

O JÚLIO, novo morador que se mudou para o apartamento 601, do meu prédio, é um cara aí pela casa dos 35. Talvez mais, talvez menos. Até bem pouco tempo, tudo aqui seguia a sua vida normal. Do nada, da noite para o dia, sem mais nem menos, coisas estranhas começaram a acontecer. Primeiro foram as bicicletas que ficam enfileiras no bicicletário que passaram a ser travadas com cadeados alheios, não os comprados por seus respectivos donos.

Em seguida papeis tipos cartazes surgiram colados com frases nos vidros dos carros, nas portas, dentro dos elevadores e até nos corredores. Insinuações maldosas do tipo “nossa, gata você não quer vir miar na minha cama?”; “Amigo, você tem cara de mané mas acho que a sua pessoa é um tremendo de um fio terra.”; “Oi mocinha do 504, deixa eu  ser seu pai?”; “Você, cinquentona, do 202, tem ares de safadinha. Vamos marcar um programa?;”.

Por conta dessas incomodações, todos os radicados começaram a desconfiar do Júlio. Pelo fato dele ser novato na vizinhança e pior, por não haverem olhos eletrônicos instalados por toda a extensão do prédio de dez andares, com quatro unidades por pavimento, se tornava difícil flagrar o engraçadinho com as mãos na massa. A turma, em comunhão, apostava que o autor dessas sacanagens, sem dúvida alguma, o Júlio, mas, em face de não ter como flagrá-lo em ação, ficava o bafafá somente na fase das especulações.

E as chacotas não paravam. “Nosso síndico do 301 é uma bichona enrustida”; “dona Margarida do 403 trai o maridão com o seu Valdir do 602”; “O Zé Bétio, porteiro da noite, está pegando a dona Maria do Socorro, a empregada manca e perneta do 304”; “Juliana, a doce e fogosa adolescente do 202 está levando altos papos com o Homero do 901;”. Esses motejos, a bem da verdade, tiravam a paz e a tranquilidade de todos.

Os condôminos marcaram várias reuniões. Nelas, todos os domiciliados se viam convocados. Nenhum faltava. O comparecimento em massa, se fazia perfeito, mas apesar dessas ações frágeis e sem fins enérgicos, o desgraçado autor dos remoques infames seguia incansável. Cada dia novos cartazes alçavam voos pelas paredes, corredores e portas. Nem as caixinhas das correspondências, nas barbas do porteiro, tanto da noite, quanto do dia, se salvaram. 

No mesmo grau de sadismo, cadeados a dar com o pau apareciam do nada, travando portas internas, as rodas das bicicletas e motos, o que acarretava um inferno entre os albergados que precisavam mandar buscar chaveiros às pressas, para que viessem urgente, o que atrasava, sobremaneira, quem carecia de seguir para o trabalho.   

A brincadeira durava quase seis meses, e nesse tempo, os residentes com um só objetivo e pensar se juntaram com a finalidade de caçar o “desaforado”, inclusive o próprio Júlio, apontado como pivô principal. Em sua porta alguém urinara, o tempo corria, as paciências seguiam cansadas e morriam desanimadas nas entrelinhas das coxias, com o maldito gatuno agindo em terreno fértil.

Seguia o desditoso confiante e cada vez mais se mostrava audacioso. Obviamente, até o próprio Júlio, ancorado na esteira de inquilino maldoso, passou a figurar como vítima dessas barbáries. O “infeliz desconhecido” chegou ao cúmulo de enlamear a sua porta com fezes. Não só a entrada dele, também foi usado o mesmo procedimento com os proprietários das unidades de 1001 a 1004.

Nas portas dos apartamentos, sobre os capachos e tapetes, absolventes usados e com sangue, papeis sanitários e melecados, jaziam entremeados a chumaços de cabelos. Essa balbúrdia virara rotina. Nos vasos de plantas foram recolhidas fezes espalhadas, seguidas de mijadas e bilhetes com dizeres de baixo calão. A opinião, nessa altura se dividiu.

Uns achavam que era e Júlio do 601 o grande vilão das estripulias e das traquinagens sem graça. Outros, todavia, ponderavam e pôr conta de também o infeliz sofrer junto com os demais as mesmas consequências das sacanagens, não havia quem em sã consciência batesse o martelo, apontando o dedo e o julgando culpado. Várias fotos de seu celular foram juntadas a de outros aparelhos e entregues ao sindico, que produziu um belo dossiê que se fez afixado na sala de reuniões, o que não permitia, pelo menos de pronto, e sem provas robustas e cabais ingressar com uma ação propícia e certeira, direcionada para “a” ou “b”, sem deixar dúvidas ou pontas soltas.

No caso específico do Júlio, do 601, não saltava aos olhos um caminho legal para afirmar categoricamente e com segurança afiançável ser ele, o novato morador, grosso modo, o pilantra endiabrado, sem vergonha e descarado que gozava, incógnito das fisionomias enfurecidas e encolerizadas de todo mundo. Em razão disso, o despudorado sem juízo e noção, seguia impune, belo e formoso, sem o merecido castigo.

Uma bela noite, por volta das vinte e três horas, o morador do 1003, um policial com nervos de aço, e pinta de poucos amigos, chegou da rua inesperadamente. Ao sair do elevador, deu com um sujeito alto e magro, todo encapuzado da cabeça aos pés trajando roupas pretas. Sacando seu revolver, gritou para o intruso que parasse, se deitasse no chão e colocasse as mãos na cabeça.

Outros habitadores, ao ouvirem os gritos, resolveram ver quem provocava todo aquele fuzuê em hora tão imprópria. Alguém interfonou para a portaria, outros acordaram o síndico, enfim, em questão de segundos, o pavimento do décimo andar ficara lotado com um bom número de criaturas praticamente vindas dos andares inferiores. No chão, imóvel, o infeliz completamente rendido.  Descartaram o Júlio, quando o viram chegar ofegante, vindo pelas escadas. Um dos presentes gritou, eufórico:

— Vamos acabar logo com isso e ver quem é o filho de uma rapariga que está botando todo nosso prédio em estado desesperador. Alguém aqui arranque a máscara desse desgraçado e vamos levar o amaldiçoado para entregá-lo à delegacia local.

O policial do 1003 teve uma ideia.

— Escolham entre vocês que aqui se dignaram a deixar suas quitinetes e partam para cima. Eu o algemei. Arranquem a máscara desse infeliz. Depois que descobrirmos a sua identidade, vamos fazer uns carinhos legais nele até que o metido a espertalhão implore por clemência...   

O mascarado seguia no chão, estirado, indefeso, as mãos estendidas... implorava aos berros, que o deixassem ir embora.

— De forma alguma, seu malandro – rosnou o síndico. Antes você vai pagar por todas as proezas e safadezas que fez em nosso prédio. E de roldão vai esclarecer cantando e apontando o seu parceiro, ou alguém daqui que o ajudou todo esse tempo a ter acesso ao nosso local de sossego e descanso.

O sindico se aproximou, junto com mais uns cinco do grupo. O policial reformulou a ordem.

— Amigos, deixem o medo de lado. Esse aí não tem como escafeder. A máscara, a máscara... vamos ver quem é essa figura que por detrás dela, se esconde...

O sindico, meio desajeitado, estendeu as mãos trêmulas e mais rápido que o acender de uma lâmpada, despregou a venda que protegia a identidade do fanfarrão. Nesse momento, sem exceção, a galera, às suas costas, e os demais curiosos que ocupavam maciçamente o décimo andar, debandaram aos safanões, empurrões e berros estridentes escadas abaixo.

A remoção da máscara, curiosamente, não trouxe à claridade de rosto algum. Por debaixo desse invólucro, como também do restante do macacão que deveria resguardar o corpo do famigerado, se desvendou totalmente vazio e oco, misteriosamente sem ninguém dentro.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha no Espírito Santo, 26-9-2025

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