Da Revolução Francesa às redes sociais, um percurso sobre o valor da permanência, o espetáculo da iconoclastia e o perigo de transformar debate em silêncio
Rafael Azevedo
Há algo de paradoxal — e que
causa perplexidade — na maneira como lidamos hoje com o patrimônio cultural. A
defesa dos legados históricos, que outrora simbolizou um avanço civilizatório,
de cidadania e de direito coletivo à cultura, passou a ser lida, não raras
vezes, como um gesto reacionário. Em contrapartida, atos de iconoclastia — como
a apologia ao apagamento de bens considerados “coloniais” — converteram-se, em
determinados círculos, em sinal de virtude altruísta, como se o desaparecimento
físico de um objeto fosse suficiente para reparar as violências históricas que
o originaram. E para construir esse argumento preciso deixar clara uma
questão: sou um quadro da esquerda, com quase vinte anos de filiação
partidária; mas isso não me impede de discordar frontalmente dessas práticas,
que no fundo se alinham muito mais a um projeto de esvaziamento da herança
cultural — este sim, conduzido de forma sistemática pelas autoridades desde
quinhentos anos atrás. O que está em jogo, portanto, não é apenas o destino de
alvenarias, pedras e bronzes, mas a maneira como a sociedade contemporânea
escolhe dialogar com seu passado: entre a preservação crítica e o apagamento —
este, que outrora parecia exclusividade do grande capital.
Se hoje a valorização do patrimônio corre o risco de ser tachada como exclusividade do conservadorismo, é preciso lembrar que sua origem esteve profundamente vinculada a ideais de progresso e emancipação. Desde a Revolução Francesa, quando se consolidou a noção de “bens nacionais” e a necessidade de proteger monumentos e acervos do vandalismo, a preservação foi entendida como um gesto avançado, de afirmação cidadã e de construção de identidade coletiva. No Brasil, não foi diferente: a criação do SPHAN, em 1937, marcou um dos momentos mais ousados da política cultural republicana, ao reconhecer que igrejas, esculturas e edificações coloniais, longe de serem apenas “relíquias do atraso”, constituíam fundamentos de uma narrativa plural e de uma soberania cultural frente ao estrangeiro. Preservar significava, portanto, não congelar um passado imutável, mas inscrever no presente a consciência de que a cultura é patrimônio da população, e não privilégio de elites.
No entanto, ao longo do século
XXI, assistimos a uma mudança significativa no modo como os monumentos e
símbolos do passado são percebidos. A crítica à herança colonial e escravocrata
— absolutamente legítima como horizonte ético e político — passou a se
expressar, em muitos casos, por meio de uma lógica de supressão material.
Elementos antes compreendidos como testemunhos históricos foram reduzidos a
meros estigmas do opressor, convertendo-se em alvo de protestos que, ao buscar
justiça simbólica, acabam por restringir as possibilidades de interpretação. Em
vez de fomentar debate, a ausência física impõe o silêncio. Um busto retirado
da praça, uma estátua derrubada ou um vitral apedrejado não eliminam a
violência original, apenas retiram da esfera pública a chance de
contextualizá-la, problematizá-la e ressignificá-la. Ao se perder a
mediação do objeto, a crítica corre o risco de se dissolver numa violência
travestida de moralidade, incapaz de propor alternativas duradouras para a
memória coletiva.
A supressão material, nesse
sentido, ganha contornos de espetáculo: confere a seus protagonistas um selo de
virtude moral imediata, ao mesmo tempo em que relega ao esquecimento o debate
complexo sobre a permanência dos símbolos. O paradoxo é que, enquanto se
combate a monumentalidade do colonizador, o ato de destruição eleva seus
agentes a protagonistas de uma cena efêmera, marcada pelo desejo jactante de
aplauso instantâneo. A virtude exibida, contudo, dificilmente se traduz em
política de memória consistente; permanece no registro do gesto, não da
transformação.
Diante desse impasse entre conservar e demolir (que é, na verdade, parte do processo natural de construção da memória, feita de escolhas quase sempre conscientes entre o que lembrar e esquecer), é urgente buscar alternativas que não sejam rasas e, sobretudo, que não venham de outsiders que jamais se engajaram no trabalho de salvar um bem cultural em risco. A crítica ao passado não exige o desaparecimento dos seus vestígios, mas a capacidade de reinscrevê-los no presente com novos sentidos. Um monumento pode ser reinterpretado por meio de placas explicativas, intervenções artísticas, mediações pedagógicas ou mesmo pela justaposição de outras narrativas no espaço público. Trata-se de reconhecer que a permanência física não é sinônimo de celebração cega, mas de oportunidade para problematizar. Em vez de remover o objeto da esfera comum, é possível multiplicar as camadas de leitura que ele oferece, transformando-o em lugar de confronto crítico e não de adesão imediata. Esse exercício de conciliação não significa indulgência histórica, mas compromisso com a complexidade do tempo, que raramente se reduz ao gesto simplificador da destruição.
Preservar o patrimônio não é ato de nostalgia, mas exercício de responsabilidade ética diante da história. Ao resguardar pedras, bronzes e alvenarias, não celebramos ingenuamente o colonizador, mas asseguramos à sociedade a possibilidade de interpretar criticamente os rastros do seu próprio percurso. A iconoclastia, ao contrário, encerra a chance de debate: ao suprimir a materialidade, elimina-se também o espaço da controvérsia, restando apenas a ilusão de um ajuste de contas tardio. A verdadeira virtude, talvez, não esteja em apagar os signos incômodos, mas em mantê-los à vista para que continuem a provocar perguntas e interpretações renovadas. Afinal, o que emancipa mais: silenciar a memória ou encará-la como testemunho de uma história que ainda precisa ser discutida?
Título e Texto: Rafael
Azevedo, Diário do Rio, 28-9-2025; Imagens: Igreja do Santíssimo Sacramento, Avenida Passos, Rio de Janeiro
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