domingo, 28 de setembro de 2025

[As danações de Carina] De repente, em pleno voo, quem entra em cena?

Carina Bratt

ERA PARA SER uma viagem tranquila. O voo noturno, o silêncio reconfortante, aquele clima de ‘todo mundo fingindo que estava confortável com os joelhos encostados no rabicó do passageiro logo à frente.’ Mas Toninho Cara de Botijão, meu patrão — que tem o dom de transformar qualquer momento em episódio de comédia pastelão, decidiu que o avião precisava de um pouco mais de... emoção. 

Meia-noite. Luzes apagadas. Crianças dormindo. Senhores e senhoras roncando. Aeromoça cochilando em pé. A outra vagando para lá e para cá como uma robô controlada por um dispositivo remoto. Então, do nada, Toninho Cara de Botijão, que tomara uma garrafa inteira de uísque (ainda na sala de embarques, às escondidas, logicamente) misturando, a depois uma segunda em pleno voo, soltou um grito apavorante.
Um grito horripilante, meio macabro, que na hora, até a mim me fez tremer da cabeça aos fundilhos do mais profundo do meu íntimo:
SALSICHAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!!... 

E não foi só isso. Veio de lambuja, o berro que o Scooby–Doo coloca em ação. Com isso, todo mundo acordou sobressaltado. Toninho Cara de Botijão não fazia nada pela metade. O efeito do seu berro extravagante foi imediato, se fez pavoroso. Uma senhora na fileira do lado esquerdo acordou achando que o avião estava caindo.
— Jesus, Maria, José... chegou a minha hora...
Um rapaz visivelmente nervoso desmunhecou feio, derrubou o copo de suco nas pernas da jovem que se acomodara na janela justo naquele momento deleitoso em que babava estrelas. Um senhor mais impávido gritou:
— Pelo amor de Deus, seu imbecil. Respeita o sono dos outros!

Um jovem de cabelos encaracolados, não deixou por menos:
— Vá latir nos ouvidos da sua mãe, ô sem noção...
O garotinho que ocupava o assento quase às barbas da entrada dianteira pulou do seu conforto na janela para o colo da mãe:
— Mainhê, mainhêêêêê... não ‘tô venu’ a televisão...
Meu patrão Toninho Cara de Botijão, em vista dos palavreados de baixo calão recebidos, queria achar um jeito de abrir um buraco no teto da aeronave e desaparecer.
O chão aos nossos pés igualmente não dava essa opção. Nas fisionomias que capturei logo depois da salsicha ter se manifestado, frontalmente cruzei os meus medos com passageiros trepados nas tamancas querendo jogar meu patrão e eu, a reboque, sem paraquedas.

As aeromoças vieram correndo, solícitas, todavia com os semblantes enrugados de quem já tinham lidado com bêbados, crianças chorando, sequestradores e passageiros que tentavam abrir as portas de emergência no meio de um infinito literalmente imenso. Mas nunca com um Scooby-Doo humano.
Toninho Cara de Botijão, impassível, para completar o estrago produzido, ainda teve a audácia de perguntar:
— Vocês não gostaram da minha animação? Bando de parasitas...

Animação? Quase fomos ‘animados’ em sentido contrário, ou seja, por pouco não nos mandaram falar com Deus mais cedo. No fim, uns riram, outros xingaram, meia dúzia de línguas enroladas proferiram palavras que não consegui capturar o sentido. Toninho Cara de Botijão sequer ligou para os enfezados.

Fingiu estar dormindo, embalado nos braços de Morfeu. De lambuja, passou a imprimir uns roncos que mais pareciam uma betoneira descontrolada tentando encontrar os freios para não bater no veículo estacionado no acostamento. Quanto a mim, passei o resto do voo fingindo que não conhecia aquele ser humano, como se isso fosse realmente possível.
— Joga seu amiguinho na lata do lixo – uivou um.
— Bota uma mamadeira no bumbum desse traste com café sem açúcar misturado com urina.
Confesso, depois do caso passado, quando lembro da cena, não tem como não cair na gargalhada.

A criatura para a qual trabalho, é assim — uma eterna mancha de caos enegrecida que se ergue no mundo torto da sua aparente normalidade caótica. E cá entre nós, às vezes é disso que a nossa vida precisa. De uma emoção não programada, de um momento único e prazeroso para nos sentirmos vivas, ainda que num voo doméstico vapt-vupt entre São Paulo e Rio de Janeiro.

Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha no Espírito Santo, 28-9-2025

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