Aparecido Raimundo de Souza
ELE ACHAVA que estava namorando. Ela achava que estava... ocupada. Todo dia era um novo capítulo da saga: “Desculpas criativas para não aparecer para ele”. Na segunda, foi a alegação do cachorro que engoliu o carregador do celular e se ligou na tomada. Na terça, o vizinho perneta colocou a prótese que usava dentro do refrigerador e em vista do jogo de futebol e seu time ter perdido feio, esqueceu onde a colocara. Por conta desse fortuito, bateu no apê da vizinha (porta com porta) e ela, por pura cortesia, voou para a casa dele, com a finalidade de ajudar, claro, a procurar a geringonça desaparecida.
Em decorrência desse “incidente” acabou perdendo uma reunião importantíssima de família em casa de uma de suas filhas. Ficou sabendo depois, que a tal reunião se prolongou mais que casamento de novela. Na quarta, foi acometida de uma crise existencial. Queria se enforcar num pé de abacate. Não levou à termo, por não ter uma corda para colocar em volta do pescoço. Na quinta foi para a yoga mas, meio do caminho, precisou voltar porque não lembrava onde ficava a academia. Na sexta, se reservou para descansar. No sábado, Netflix. Finalmente, no domingo, mandou um “estou com a dentadura superior doendo...vamos ver”. No fim, ninguém viu nada.
Ele, coitado, mandava mensagens com pontuações impecáveis e emojis estrategicamente posicionados. Ela respondia com um “oi” seco, que carecia de jogar um copo de água fervendo para meia hora depois, a coisa fluir como quem atira umas migalhas para manter os pombos que ficavam na janela com as carinhas tristes de moradores de varandas. Os e-mails? Uma epopeia. Ele escrevia como quem redige cartas de amor em tempos de guerra. Ela lia como quem folheia panfletos de supermercados: rápido, sem se envolver, e com a sensação de que já vira tudo antes pela televisão. Mas ele, teimoso como uma mula sem cabeça, insistia como se estivesse tentando entender a leitura de uma monografia de análise junquiana.
Chamava para sair, para conversar, para existir ao lado dela. E ela, sempre com um pé no mundo e outro no modo avião. Dizia que “não era bem assim”, que “a vida estava corrida”, que “precisava de tempo e espaço”. Ele começou a desconfiar que o namoro, na verdade, não deslanchara além de um monólogo infundado com perversões animalescas. Um relacionamento unilateral, truncado, onde ele, o principal protagonista e ela, uma participação especial que dava os ares da graça somente nos créditos finais. Em resumo, ele percebeu: não era falta de tempo. A coisa se consubstanciava na falta de vontade disfarçada de agenda cheia. E como todo bom cronista da própria vida, decidiu escrever sobre isso — porque às vezes, o amor não é correspondido, mas rende um bom texto.
A dita não convidava nem para um café, tampouco para um almoço, ou jantar. A única vez em que ficaram juntos, a correria se deu na quitinete dele. Fizeram um amor nos moldes “meia boca”, ou seja, o rala e rola se assemelhou como o encontro de um Cágado com uma Tartaruga com nariz escorrendo. No meio do “vem cá meu bem” ao trocarem um beijo mais ardente e prolongado a dentadura dela veio junto. Por pouco, não a engoliu. Ele já tinha aceitado que ela não era fã de encontros. Ele convidou para um café. Ela argumentou que só se fosse com a mãe dela. E o almoço? Talvez com os filhos e os netos a tiracolo.
Uma pizza? Com a consciência, quando sobrava tempo. Com ele? Nunca. Comer um cachorro quente e tomar um refrigerante na pracinha? Não, os filhos e suas respectivas noras poderiam passar por acaso e dar de cara... seria um pé no traseiro... ou em outro lugar mais desapropriado como por exemplo, nos colhões. A única vez em que ficaram juntos, voltando à quitinete, foi um negócio tão surreal que ele ainda se pergunta até hoje se não sonhou com aquilo depois de comer picanha com pedaços de lula bem cosido banhado ao molho de canja de galinha e uma pitadinha de culpa.
Foi um amor alienígena. Sim, com certeza. Profano como um jumento querendo se livrar de uma girafa maliciosa que apareceu do nada e ficou piscando um olho só com seu pescoço comprido mais nervosa que cascavel faminta com focinho de Cármen Lúcia.
Sem dúvida alguma, um amor sui generis com nariz pingando medo, colchão velho dando sinais de cansaço e pulgas ariscas pululando por todos os lados. Um amor que parecia pedir licença para acontecer, tropeçar na própria timidez e cair de quatro no tapete da frustração. Teve toque, teve beijo, teve corpo — mas faltou alma. Faltou vontade. Faltou aquele “algo” que faz o mundo parar por três segundos e dizer: “Ah, então é isso.” Depois na sequência, ela voltou para o modo fantasma. Como assim? Ele mandava “bom dia” e recebia “boa noite” dois dias depois. Chamava para conversar e ganhava um “depois te ligo” que nunca vinha. Para ele, como namorar uma notificação: o troço aparece, vibra e some. Ele começou a colecionar desculpas como quem agrupa figurinhas repetidas.
Numa dessas escapadelas da beldade, ela escreveu: “Estou atolada.” “Minha semana está uma loucura.” “Preciso resolver umas coisas.” E a clássica: “Não é você, é o universo.” No fundo, ele sabia. Percebia que estava sozinho num namoro de um corpo só. Mas demorou a admitir. Porque às vezes, a esperança é teimosa. E o coração, um sujeito meio bitolado, como um cavalo esfomeado que só pensa em comer capim suculento. Depois de semanas de mensagens ignoradas, convites recusados e respostas que pareciam saídas de um gerador automático de desculpas, ele decidiu que pintava no pedaço a hora de agir. Não com raiva, não com drama barato — mas com criatividade.
Ele mandou uma mensagem.
— Oi. Preciso te contar uma coisa. Acho que sou um holograma.
Ela demorou três horas para responder.
— Como assim?
Ele, de volta.
— Descobri que não sou real. Sou uma projeção emocional criada pela sua falta de afeto. Um bug no seu sistema de relacionamentos. Um erro de código no seu coração.
Ela visualizou. Não respondeu. Ele continuou.
— Você nunca me vê, nunca me toca, nunca me escuta. Só pode ser isso. Eu sou um holograma. E você? Você é um antivírus emocional. Toda vez que tento me aproximar, você me bloqueia.
Dessa vez a resposta dela veio mais rápida que o acender de uma lâmpada. A simpática respondeu com um emoji de interrogação. Dia seguinte, ele insistente, mandou um áudio cantando “Evidências” com voz de taquara rachada. Ela, não entendeu a mensagem. Bloqueou. Foi aí que ele teve uma epifania: talvez o amor não seja para ser entendido. Talvez seja para ser vivido, mesmo só por um capítulo, uma cena, uma frase. E se não for vivido, que ao menos renda uma boa crônica para ser publicada na próxima edição da revista. Naquela noite, ele saiu sozinho. Sentou numa mesa de lanchonete, pediu uma porção de bolinhos de queijo e um refri às 22h só para contrariar o relógio.
E ali, entre um gole da bebida e a consumação dos bolinhos seguidos de uma risada solitária, escreveu num guardanapo.
“Namorar alguém que não tem tempo pra você é como tentar abraçar uma nuvem: parece bonito, mas você só acaba solitário e confuso.” E ainda ficou por um tempo com a fisionomia de bocó assoviando uma antiga do Gilliard... “aquela nuvem que passa...lá em cima sou eu, aquele barco que vai, mar afora sou eu, aquela folha que vaga, pelas ruas sou eu, buscando você...”
Pagou a conta, deixou o guardanapo como gorjeta filosófica, e foi embora cantando “Evidências” em voz alta, como quem finalmente entendeu que às vezes, o amor é só uma piada de gosto duvidoso que a gente conta para distrair a nós mesmos e abrandar o coração literalmente frangalhado.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, ES, 30-9-2025
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