Mahmood procurou legitimar o radicalismo islâmico apresentando-o como algo de potencialmente benéfico até para as teorias feministas. Haverá loucura maior?
João Maurício Brás
O debate sobre a proibição de
tapar o rosto, especialmente por motivos religiosos, tem suscitado inúmeras
questões e os respetivos equívocos. A questão não é apenas legal, nem religiosa
ou política: é muito mais profunda no plano humano. O significado do rosto,
mostrar ou ocultar, pertence ao domínio da própria construção e destruição da
humanidade.
Emmanuel Levinas foi um dos
grandes filósofos do século XX, e o tema do rosto ocupa um lugar central na sua
obra. É sobre este conceito que deveria assentar o debate. O rosto é a
possibilidade de ser na relação com o outro e do outro comigo, constituindo
também o fundamento da ética. Sem rosto, a humanidade é danificada, daí a
destruição do deste em certos crimes psicopáticos e a sua deformação nas
torturas dos sistemas totalitários. O rosto não é uma simples aparência física,
mas a epifania do outro. É principalmente através do rosto que se dá a presença
que me interpela e me diz: “não matarás”.
No rosto, o outro revela-se
como infinito, isto é, como alguém que não posso dominar, reduzir nem
compreender totalmente. A sua exposição, na sua fragilidade e vulnerabilidade,
desperta em mim a responsabilidade e rompe a lógica da indiferença ou do poder.
Assim, este é o lugar onde nasce a relação ética: é nele que o eu descobre o
dever de responder ao outro antes mesmo de afirmar a sua liberdade. Ocultá-lo
é, portanto, negar o próprio espaço da humanidade e da transcendência que ele
encarna. Tapá-lo é, em última análise, negar a humanidade.
Também Hannah Arendt nos recorda que este é o símbolo da presença pública do indivíduo, o modo como cada pessoa se dá a ver e se torna reconhecível entre os outros. No espaço público, o verdadeiro lugar da liberdade segundo Arendt, o ser humano “aparece” diante dos demais e revela quem é através da palavra e da ação. Esse aparecer é inseparável de um rosto: só quem o mostra, quem se expõe, pode participar na vida comum. Por isso, Arendt opõe-se a todas as formas de anonimato, mascaramento ou uniformização que apagam a singularidade, sejam elas totalitárias, religiosas, burocráticas ou tecnocráticas. O rosto representa a individualidade irrepetível, a diferença que torna possível a pluralidade humana. Escondê-lo, é negar a possibilidade da comunidade livre e do reconhecimento mútuo.
Martin Buber, por seu lado,
via no rosto o lugar do encontro do eu com o tu, o espaço da alteridade e da
relação viva. Nele reconheço o outro como presença e não como coisa. É através
da relação com o rosto, esse espelho da alma, que se funda a verdadeira
reciprocidade humana. Escondê-lo é negar ao outro a totalidade do seu ser, a
liberdade e a vida no presente. O Eu–Outro é então substituído pelo Eu–Isso.
Sem relação de presença e reciprocidade não há realização. A burca, ao ocultar
o rosto, amputa a humanidade e essa dimensão relacional, deformando-a.
Michel Henry, por fim, desloca
o sentido do rosto da exterioridade da relação para a interioridade da vida.
Para ele, este é a expressão da vida interior e da autoafetividade: revela a
interioridade invisível da vida na carne, mais do que uma simples aparência
exterior. Se socialmente, e no espaço público, me é negado, seja por que motivo
for, mostrar o meu rosto, dá-lo a conhecer, expô-lo à luz, então sou amputado
de uma parte essencial da minha vida interior e do meu afeto.
Nessa condição, já não me
pertenço plenamente: torno-me apenas uma parte de mim, enquanto essa outra
parte permanece inacessível e dependente de uma autoridade externa. O outro
transforma-se em “senhor”, diante do qual apenas na intimidade posso mostrar o
meu rosto. Fora desse espaço, sou reduzido a uma coisa. Sem a sua visibilidade
não há verdadeira reciprocidade, nem dimensão social e pública, dimensões que
não são apenas políticas, mas também afetivas e identitárias.
O rosto, para todos estes
pensadores, é mais do que um traço visível: é o sinal da presença, o lugar da
ética, o espelho da alma e a ponte que torna possível a comunhão humana. Privar
o ser humano dessa dimensão, por medo, por dogma ou por imposição, é privá-lo
da própria humanidade.
Tenho procurado compreender
melhor a defesa do uso da burca, isto é, do véu integral que cobre totalmente o
rosto. Uma das teses mais delirantes, e que revela até que ponto o progressismo
pode roçar a insanidade, encontrei-a num prestigiado meio académico
norte-americano. Refiro-me a Saba Mahmood, antropóloga já falecida, que estudou
e lecionou em algumas das mais reputadas universidades, sobretudo em Berkeley.
Mahmood procurou legitimar o radicalismo islâmico apresentando-o como algo de potencialmente benéfico até para as teorias feministas. Haverá loucura maior? Na sua crítica pós-colonial à secularidade ocidental, Saba Mahmood argumenta que o véu pode constituir uma forma de agência feminina: uma recusa da hipervisibilidade patriarcal que objetifica o corpo da mulher. Cobrir o rosto não seria, portanto, um gesto de negação, mas uma estratégia de transcendência própria, uma ética da modéstia que protege a interioridade contra o olhar devorador do outro. Assim, em contextos de trauma coletivo, como os vividos por mulheres vítimas de violência em sociedades islâmicas, o véu poderia surgir não como prisão, mas como escudo.
Contudo, o que esta leitura ignora, ou dissimula, é o facto de, em vastos
contextos islâmicos, o uso do véu não ser uma escolha livre, mas uma imposição
legal, social ou familiar. Transforma-se, assim, o sinal visível da submissão
num símbolo de libertação, pela simples operação retórica de o reinterpretar.
Este tipo de inversão semântica, típica do pensamento progressista
contemporâneo, é uma tentativa desesperada de converter a coerção em
emancipação, o dogma em resistência, a obediência em autonomia. É a apoteose da
confusão moral e intelectual de uma época que já não distingue a liberdade da
servidão, desde que ambas se expressem em linguagem académica sofisticada.
São frequentes os relatos,
especialmente de jovens no Ocidente, que indicam que o véu integral,
apresentado como obrigação religiosa, resulta antes de uma exigência familiar
ou social e não de uma escolha autónoma. Transformar coerção em agência, via
retórica pós-colonial, significa romantizar a submissão, como o faz também Asma
Barlas, professora emérita de Política no Ithaca College, em Nova Iorque, onde
dirigiu o Centro para o Estudo da Cultura, Raça e Etnicidade. Na sua obra
Believing Women in Islam, argumenta que o véu pode ser uma recusa ao “olhar
patriarcal ocidental”. Estas visões são uma inversão que, como alerta Martha
Nussbaum em Women and Human Development, perpetuam desigualdades ao confundir
“cultura” com direitos universais.
Mahmood e Barlas são exemplos
de como o progressismo ao negar a racionalidade e a factualidade pode ser
demolidor. Colocar mentes brilhantes a defender o indefensável é terrível, e é
precisamente o que tem acontecido nas universidades americanas. Os nomes que
cito eram referências nas questões do género e da etnicidade.
Título e Texto: João Maurício
Brás, SOL,
21-10-2025, 11h58
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