terça-feira, 7 de outubro de 2025

A ONU e o Teatro do Cinismo Global

Esta é a falência ética da organização: proclamar valores universais enquanto os entrega à tutela de quem os viola sistematicamente

João Maurício Brás

A Organização das Nações Unidas nasceu, em 1945, como guardiã de uma promessa: assegurar a paz, proteger a dignidade humana e defender valores universais. Hoje, porém, tornou-se um espelho grotesco da realpolitik internacional. Entre proclamações solenes e resoluções morais, a organização converteu-se num teatro de cinismo global, onde os piores infratores dos direitos humanos podem assumir o papel de juízes da virtude.

Os exemplos são tão numerosos quanto caricaturais. O Irão, onde mulheres podem ser condenadas por mostrarem o cabelo, sob sanções pelo seu programa nuclear e acusado de financiar grupos armados, integra gabinetes dedicados à paz e ao desarmamento, numa espantosa inversão orwelliana da linguagem. A Arábia Saudita, cuja política externa se tem centrado na modernização do país, sobretudo através do futebol, só recentemente concedeu às mulheres o direito de conduzir e ainda lhes nega liberdades fundamentais, foi eleita para comissões responsáveis pelos direitos das mulheres. A China, frequentemente acusada de graves violações dos direitos humanos, desde a repressão sistemática dos uigures até à censura e perseguição de dissidentes, ocupa um lugar destacado no Conselho dos Direitos Humanos. É como se os lobos não apenas guardassem o rebanho, mas até presidissem à assembleia das ovelhas.

Esta sucessão de absurdos não é acidente; é função do próprio sistema. A ONU opera segundo uma lógica de rotatividade regional e de negociação diplomática que coloca interesses estratégicos acima de qualquer coerência moral. As alianças pesam mais do que os princípios, e o resultado é inevitável: países com históricos negros transformam-se em árbitros de causas que violam todos os dias. É o triunfo do cinismo institucional: um mundo onde os proclamados guardiões da moralidade internacional são, frequentemente, os seus mais persistentes demolidores. Os critérios não são uniformes. Os massacres de cristãos na Nigéria e em Moçambique, a perseguição a homossexuais, a subalternização da mulher e as populações regidas por tiranias brutais não merecem mais do que uma referência episódica, em contraste com a sanha anti-Trump e anti-Israel. A estranha ideia de justiça desta ONU faz dos países ocidentais o seu campo de batalha, leia-se os responsáveis preferenciais, enquanto nações totalitárias ficam, de modo muito suspeito, à margem.

O efeito é devastador. Para regimes autoritários, a presença nestes órgãos funciona como um branqueamento da sua imagem internacional, oferecendo um verniz de legitimidade que mascara práticas repressivas. Para as populações oprimidas, a mensagem é clara e cruel: a retórica dos direitos humanos é moeda de troca num mercado diplomático, e a dignidade humana vale menos do que uma aliança estratégica ou um voto na assembleia. A ONU, que deveria ser árbitro, transformou-se em jogador e, pior ainda, jogador do lado errado.

Esta é a falência ética da organização: proclamar valores universais enquanto os entrega à tutela de quem os viola sistematicamente. A ONU não falha por incapacidade; falha por cumplicidade estrutural. E essa cumplicidade corrói não apenas a sua credibilidade, mas a própria ideia de que possa existir uma governança internacional baseada em princípios comuns.

Num tempo de crises globais, guerras regionais, colapso ambiental, migrações massivas e ascensão de novas tiranias, o mundo precisa de uma ONU forte, coerente e ética. Mas enquanto continuar refém da sua própria arquitetura política, a organização permanecerá incapaz de cumprir o seu mandato. Os slogans persistirão, as resoluções multiplicar-se-ão, mas a distância entre os princípios proclamados e a realidade praticada só aumentará.

A pergunta final é inevitável: pode a ONU ainda ser aquilo que prometeu ser, ou já se tornou irreversivelmente parte do problema que dizia querer resolver? Talvez seja tempo de aceitar uma conclusão incómoda: o árbitro abandonou o jogo há muito tempo e deixou o campo entregue às potências que sempre jogaram sem regras.

Qual é a credibilidade moral de um organismo com estas bases? Convém não cair também na armadilha fácil do silenciamento da crítica necessária. Não é a ONU que está em causa, mas esta ONU.

Nota paralela sobre estes tempos estranhos

Hoje, 7 de outubro, assinala-se uma data que deveria convocar memória e decência: passam dois anos sobre o massacre perpetrado pelo grupo terrorista que domina Gaza, no qual foram assassinadas cerca de 1 200 pessoas em Israel e raptadas mais de 200. Nesse mesmo dia, em várias cidades portuguesas, diferentes grupos que se autodesignam “coletivos” decidiram celebrar o que chamam “a libertação do povo palestiniano”.

Há algo de profundamente perturbador neste contraste. Enquanto o mundo recorda uma das mais brutais agressões terroristas do nosso tempo, certos setores preferem transformar a tragédia em festa ideológica. Não se trata de solidariedade com civis palestinianos, vítimas, eles próprios, de um regime totalitário, mas de cumplicidade simbólica com a violência e o ódio.

A questão que se impõe é simples e grave: vivemos ainda num Estado de Direito onde a apologia de grupos terroristas é tolerada sob o pretexto da liberdade de expressão? Quando a liberdade se converte em licença para justificar o terror, ela deixa de ser um valor civilizacional e torna-se um instrumento contra a própria civilização que a criou.

Num tempo em que a confusão moral se disfarça de consciência política, recordar o 7 de outubro é recordar o limite que separa a liberdade da barbárie.

Título e Texto: João Maurício Brás, SOL, 7-10-2025, 15h43 

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