Esta é a falência ética da organização: proclamar valores universais enquanto os entrega à tutela de quem os viola sistematicamente
João Maurício Brás
A Organização das Nações Unidas nasceu, em 1945, como guardiã de uma promessa: assegurar a paz, proteger a dignidade humana e defender valores universais. Hoje, porém, tornou-se um espelho grotesco da realpolitik internacional. Entre proclamações solenes e resoluções morais, a organização converteu-se num teatro de cinismo global, onde os piores infratores dos direitos humanos podem assumir o papel de juízes da virtude.
Os exemplos são tão numerosos
quanto caricaturais. O Irão, onde mulheres podem ser condenadas por mostrarem o
cabelo, sob sanções pelo seu programa nuclear e acusado de financiar grupos
armados, integra gabinetes dedicados à paz e ao desarmamento, numa espantosa
inversão orwelliana da linguagem. A Arábia Saudita, cuja política externa se
tem centrado na modernização do país, sobretudo através do futebol, só
recentemente concedeu às mulheres o direito de conduzir e ainda lhes nega
liberdades fundamentais, foi eleita para comissões responsáveis pelos direitos
das mulheres. A China, frequentemente acusada de graves violações dos direitos
humanos, desde a repressão sistemática dos uigures até à censura e perseguição
de dissidentes, ocupa um lugar destacado no Conselho dos Direitos Humanos. É
como se os lobos não apenas guardassem o rebanho, mas até presidissem à
assembleia das ovelhas.
Esta sucessão de absurdos não é acidente; é função do próprio sistema. A ONU opera segundo uma lógica de rotatividade regional e de negociação diplomática que coloca interesses estratégicos acima de qualquer coerência moral. As alianças pesam mais do que os princípios, e o resultado é inevitável: países com históricos negros transformam-se em árbitros de causas que violam todos os dias. É o triunfo do cinismo institucional: um mundo onde os proclamados guardiões da moralidade internacional são, frequentemente, os seus mais persistentes demolidores. Os critérios não são uniformes. Os massacres de cristãos na Nigéria e em Moçambique, a perseguição a homossexuais, a subalternização da mulher e as populações regidas por tiranias brutais não merecem mais do que uma referência episódica, em contraste com a sanha anti-Trump e anti-Israel. A estranha ideia de justiça desta ONU faz dos países ocidentais o seu campo de batalha, leia-se os responsáveis preferenciais, enquanto nações totalitárias ficam, de modo muito suspeito, à margem.
O efeito é devastador. Para
regimes autoritários, a presença nestes órgãos funciona como um branqueamento
da sua imagem internacional, oferecendo um verniz de legitimidade que mascara
práticas repressivas. Para as populações oprimidas, a mensagem é clara e cruel:
a retórica dos direitos humanos é moeda de troca num mercado diplomático, e a
dignidade humana vale menos do que uma aliança estratégica ou um voto na
assembleia. A ONU, que deveria ser árbitro, transformou-se em jogador e, pior
ainda, jogador do lado errado.
Esta é a falência ética da
organização: proclamar valores universais enquanto os entrega à tutela de quem
os viola sistematicamente. A ONU não falha por incapacidade; falha por
cumplicidade estrutural. E essa cumplicidade corrói não apenas a sua credibilidade,
mas a própria ideia de que possa existir uma governança internacional baseada
em princípios comuns.
Num tempo de crises globais,
guerras regionais, colapso ambiental, migrações massivas e ascensão de novas
tiranias, o mundo precisa de uma ONU forte, coerente e ética. Mas enquanto
continuar refém da sua própria arquitetura política, a organização permanecerá
incapaz de cumprir o seu mandato. Os slogans persistirão, as resoluções
multiplicar-se-ão, mas a distância entre os princípios proclamados e a
realidade praticada só aumentará.
A pergunta final é inevitável:
pode a ONU ainda ser aquilo que prometeu ser, ou já se tornou irreversivelmente
parte do problema que dizia querer resolver? Talvez seja tempo de aceitar uma
conclusão incómoda: o árbitro abandonou o jogo há muito tempo e deixou o campo
entregue às potências que sempre jogaram sem regras.
Qual é a credibilidade moral
de um organismo com estas bases? Convém não cair também na armadilha fácil do
silenciamento da crítica necessária. Não é a ONU que está em causa, mas esta
ONU.
Nota paralela sobre estes
tempos estranhos
Hoje, 7 de outubro,
assinala-se uma data que deveria convocar memória e decência: passam dois anos
sobre o massacre perpetrado pelo grupo terrorista que domina Gaza, no qual
foram assassinadas cerca de 1 200 pessoas em Israel e raptadas mais de 200.
Nesse mesmo dia, em várias cidades portuguesas, diferentes grupos que se
autodesignam “coletivos” decidiram celebrar o que chamam “a libertação do povo
palestiniano”.
Há algo de profundamente
perturbador neste contraste. Enquanto o mundo recorda uma das mais brutais
agressões terroristas do nosso tempo, certos setores preferem transformar a
tragédia em festa ideológica. Não se trata de solidariedade com civis palestinianos,
vítimas, eles próprios, de um regime totalitário, mas de cumplicidade simbólica
com a violência e o ódio.
A questão que se impõe é
simples e grave: vivemos ainda num Estado de Direito onde a apologia de grupos
terroristas é tolerada sob o pretexto da liberdade de expressão? Quando a
liberdade se converte em licença para justificar o terror, ela deixa de ser um
valor civilizacional e torna-se um instrumento contra a própria civilização que
a criou.
Num tempo em que a confusão
moral se disfarça de consciência política, recordar o 7 de outubro é recordar o
limite que separa a liberdade da barbárie.
Título e Texto: João Maurício Brás, SOL, 7-10-2025, 15h43
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