terça-feira, 14 de outubro de 2025

[Aparecido rasga o verbo] De repente, a encruzilhada da curva Invisível

Aparecido Raimundo de Souza

HOJE acordo com a sensação de que algo está por ser decidido. Não é nada urgente. Não há prazos, nem cobranças, nem dilemas gritantes. Mas pressinto. Paira no ar, uma coisa chata sobre a minha cabeça como uma inquietação teimosa. Tipo uma pedrinha no sapato. Apesar de pequena, ela incomoda. Não tenho como ignorar. Enquanto tomo o café, olho para a xícara sem asa e penso com meus botões: “Eu pedi, ou apenas aceitei o que dona Madalena, (a minha vizinha contígua), me trouxe por pura amizade?” Entorno, goela abaixo, uma bebida com açúcar mascavo. Um pacote, segundo ela, comprado por impulso numa promoção feita pela padaria do bairro. O mascavo vinha de lambuja.

Dei o exemplo do café para explicar que em verdade fazemos escolhas o tempo todo. E o fazemos, às vezes, sem perceber. Escolhemos o caminho mais curto. O mesmo bar, a atendente com cara de Dercy Gonçalves. Optamos pelo barbeiro logo ali da esquina, compramos na mesma farmácia, mesmo supermercado. Renovamos o silêncio em vez de uma conversa amistosa, cara a cara com a vizinha gostosa, moradora portão com portão. Decidimos não responder as mensagens dos amigos no WhatsApp. Tampouco mudar os hábitos costumeiros, como não confrontar o que de fato nos aperreia. E ao não escolhermos, raios que me partam, também permanecermos inertes sem tiramos a pedrinha que nos coloca os nervos em frangalhos. 

Lembrei da Narjara, minha filha de número três que me bloqueou. Antes de cortar de vez as relações, não deixou que eu visse meus netos, o Miguel e a Maria. Ela me disse antes de sumir de vez e me mandar à merda: “Entenda, toda escolha é uma renúncia.” Mas será que é só isso? Uma escolha? Uma renúncia? Talvez o decidir seja também uma afirmação. Um gesto de autoria sobre a nossa própria vida. Mesmo que seja o café solidário, o programa de televisão ruim, ou reassistindo aos filmes repetidos na seção das tardes da Globo (a maior parte deles ainda que trocados por umas fotos da Gretchen pelada, seria mais viável bater uma punheta solitária no banheiro se comovendo ao topar na tela do celular com o vídeo de um pombo cego tentando chegar em um amontoado de migalhas de comida), ou encarar a conversa difícil com  dona Penha, a proprietária da quitinete onde me escondo que veio cobrar o aluguel com dois meses de atraso.

Nesse começo de semana, por conta e risco, decido caminhar até a praia a pé. Sem pé não teria como. Se faz mais longe. Porém, o céu está limpo e o vento ameno parece convidar: —, “vai seu corno, aproveita”. No caminho, passo pelo sebo de livros usados e entro. Saio com um romance sem capa, faltando páginas e título curioso: “O Perfume de Jitterbug”,* de Tom Robbins, um autor que nunca ouvi falar. Isso não significava uma grande virada. Mas a coisa flui como uma escolha. Às vezes é isso que basta para se começar a mudar o rumo. Um passo, uma página, uma xícara de café com leite numa padaria diferente da costumeira...

Não é tristeza, nem desespero. Isso que fiz agora pela manhã foi só um bate papo informal com o tempo. O meu tempo. Aos 72, começo a enxergar o fim não como tragédia, porém, como parte de um roteiro. Não sei se terei tempo para arranjar mais filhos, ou ver outros netos chegando no pedaço. Não sei se terei casa com varanda ou um novo amor para chamar de “meu bem” e numa urgência mais delicada, me dependurar numa beldade tipo uma curadora para me acompanhar no hospital, obviamente se eu precisar ficar internado. Talvez não, talvez sim. Mas o que me aguarda não é só a ausência — é também a possibilidade do fim. O término da minha vida não me assusta como antes.

Para falar a verdade, o que me tira do sério é o não vivido. O não dito, o não sentido, o não agarrado com força de vontade. De contrapeso, me assusta a ideia de passar por tudo correndo, sem parar para olhar para o céu, sem jogar uma piadinha para uma moça bonita que cruze comigo na rua, ou rir de uma bobagem idiotizada, sem dizer “essa piada foi legal” com a voz clara e firme. Talvez o meu fim da vida me encontre num leito com exames espalhados e o silêncio sepulcral como companhia. Ou me flagre numa tarde qualquer, com um livro de Luiz Fernando Veríssimo aberto e um copo de café com leite e um pão com manteiga. Ou tomando, com refrigerante, cápsulas de Combodart para diminuir de tamanho a próstata inchada.

Não sei. E não saber, entendo, faz parte do mistério. Entre tapas e beijos, o que me aguarda? Um reencontro comigo mesmo numa esquina cheia de fantasmas. Por certo, se der sorte, a paz de quem finalmente entende que não precisa ter tudo para ter vivido bem. Oxalá me veja de olhos esbugalhados com a coragem de olhar para trás, ou para dentro de mim e dizer: “Foi imperfeito, mas porra, foi meu.”  E meu Deus, meu Pai Eterno, se for preciso ir só, que eu vá de forma leve, solto como uma pluma. Com menos culpa, medo e pressa. Que eu vá sabendo que, ausente de plateia, a minha história de alguma forma teve algum valor.

No fim, o “fim” não é o contrário do começo. Entendo que seja só mais uma curva ao acaso que topei com ela no desenrolar da jornada. Mas vamos que alguém, por acaso, me pergunte: “Aparecido, essa curva, para onde você acha que ela poderá te levar”?  De bom grado, alegre e saltitante, responderei: “Essa curva, meu caro amigo curioso, essa curva é um pouco fora de foco. É uma curva meio que abestalhada. Tanto pode me levar para onde eu menos espero, ou às vezes, quem sabe, me direcione exatamente para onde eu precise de estar. É isso! A curva pode me direcionar para um cubículo de silêncio, sem rangeres de dentes podres, onde finalmente eu escute, saindo de dentro de meus poros, a minha própria voz “banguelada”.

Pode me levar (que Deus me livre dessa) para um hospital, sim, mas talvez lá, entre médicos e enfermeiras de tirarem o fôlego, eu encontre o cuidado, o descanso, ou quem sabe, até um novo começo. Essa curva pode me guiar para uma morada que não seja minha, mas onde alguém (sei lá quem), me ofereça um prato de miojo sabor carne, uma cama quentinha e limpa para dormir. Pode me levar para um trabalho temporário (tipo apartar brigas de urubus com mal de Parkinson) um ofício que não pague muito, mas que me devolva o propósito de estar vivo e respirando. Pode me levar para uma amizade improvável. Uma conversa que mude tudo. Uma risada que me lembre que ainda sei viver, ou ainda, que respiro com dificuldades, ou seja —, busco o ar a trancos e barrancos como uma alma penada em busca de oração.

A curva pode me levar, lado outro, para dentro. Para dentro? Para dentro de onde?  Ou de quê? Ora bolas, para aquele lugar onde deixei guardado o que sou, o que sonho, o que ainda quero. Pode me levar para o distanciado que me feriu, do que me cansou, do que me fez duvidar de mim mesmo. E se for, por azar meu, para a curva final, indicando o derradeiro sem volta, que seja também a curva invisível da entrega total. Que eu vá em paz, com os olhos abertos. Com o coração arregalado e limpo; com a alma leve. Porque o fim, o sem volta, ou o outro lado do desconhecido, acredito piamente, às vezes, esse ponto final, possa ser somente o começo de um “novo tudo” disfarçado com outro nome.

*O Perfume de Jitterbug”, de Tom Robbins — escritor americano autor de “Até as vaquinhas ficam tristes”, adaptado para o cinema, pelo cineasta Gus Van Sant, estrelado por Uma Thurman, Lorraine Bracco e Keanu Reeves. Tom Robbins faleceu em 9 de fevereiro de 2025 em La Conner, Washington, EUA. O livro acima citado, foi publicado pela Imago Editora Ltda, Rio de Janeiro em 1984.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, ES, 14-10-2025

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