Aparecido Raimundo de Souza
As pessoas — se é que
por lá se chamam assim — devem andar mais leves. Livres e soltas, sem o peso
das culpas, sem o temor das contas, sem os aborrecimentos dos imensos boletos
vencidos e das chateações dos amores perdidos ou mal resolvidos. Talvez flutuem,
ou quem sabe apenas caminhem com passos delicados calçados com sapatos que não
fazem barulho. E quando se cruzam, não perguntem “o que você faz aqui?”, mas
“do que você está precisando?”. Lá do outro lado da vida, após baixado nos
confins da sepultura, quem sabe haja xícaras de cafés com leite e pães
quentinhos com manteiga; pasteis de queijo ou de carne que nunca esfriam;
livros que se escrevem sozinhos e janelas escancaradas que dão para lembranças
boas e acolhedoras. As ruins, penso, devam ficar guardadas num enorme baú com
cadeado, só para serem revisitadas quando a saudade quiser ensinar alguma coisa
que ainda nesta vida não tive o privilégio de aprender.
E os reencontros? Ah, esses devem ser a melhor parte. Vizinhos, gente amiga, parentes, seres os mais diversificados que partiram antes da hora... animais de estimação que deixaram saudade, abraços que se desfizeram pela metade. Tudo isso esperando pacientemente, como quem guarda um lugar na fila do cinema, acompanhado de um saco de pipocas e um copo de refrigerante geladinho só para assistir junto com a nossa presença, o filme da sempiternidade ainda não conhecido. Mas talvez, vai se saber, o outro lado da vida não seja um lugar. Por certo, imagino um estado. Um jeito alvissareiro de existir sem pressa, de se viver sem dor, de transitar sem medo. Uma espécie de sopro. Um suspiro mavioso. Um descanso sem hora de se preocupar com o minuto seguinte. E se for assim, então viver bem por aqui (enquanto estamos nesse andar à espera) é o melhor jeito de preparar a bagagem para o lado de lá. Algumas perguntas insistem: e os filhos que deixei abandonados? As minhas ex mulheres que agora na longevidade dos setenta e dois foram tratadas como cachorras?
Acaso verei meu pai:
Toparei com a minha mãe? Essas são uma daquelas trocentas perguntas que não
cabem numa resposta só. Oxalá nem se encaixem numa vida inteira. Mas me deixa
tentar costurar uma saída digna, ainda que com um monte de fios soltos embaralhados
em minhas mãos. É sabido que algumas dessas perguntas não se calam. Elas
atravessam o tempo, enganam a lógica, sobrepõe a fé. São como crianças
inquietas que puxam a barra da nossa consciência e perguntam: “E os filhos que
você deixou? E as suas ex-mulheres que tratou mal? Irei rever de frente minha
mãe Ana e o meu pai Roberto?” Do outro lado da vida, talvez não haja tribunais
— mas, em contrapartida, quem sabe, hajam espelhos. Espelhos enormes que não
mostram o rosto, mas que reflitam a nossa alma nua e crua, como ela é e
continuará sendo. E ali, diante dos reflexos desses espelhos do que fui, talvez
eu enxergue o que poderia ter sido. Acaso os meus filhos fiquem com perguntas
no peito e apareçam de repente com respostas nos olhos.
E de roldão, se as
minhas ex companheiras pintarem no pedaço envoltas com os silêncios tênues que
perdoam, ou em oposto, furiosas e munidas com gritos estridentes e colocarem
para fora todas as raivas que sentiram? Ou que ainda sentem? E os meus pais? Ah,
os meus queridos pais! Se houver reencontro, quem sabe seja sem palavras. Só um
olhar que deverá dizer: “Agora eu te entendo.” Porque lá do outro lado,
possivelmente o amor não precise de explicações. Ele apenas se faça presente e
acima de tudo, seja literalmente real. Mas e se não houver esse reencontro
almejado? E se o lado que desconheço for apenas um lugar de paz? Um espaço sem
passado? Um canto sem pendências? Então, por certo, creio, o verdadeiro acerto
de contas seja feito por aqui. Sim, isso mesmo. Por aqui. Neste mundo
conturbado, enlouquecido, enquanto ainda há tempo, enquanto ainda há a voz,
enquanto ainda exista o aperto de um abraço. Entendo que o outro lado da vida
pode ser um mistério. Aliás, é. Mas este lado — este aqui — alguém por favor me
responda: seria uma deixa para uma segunda chance?
Caminho por aqui,
confesso, transito devagar, me deixo ser levado quase parando, como quem
transita à esmo, por um campo minado de perguntas sem pressa de serem
respondidas. Talvez o outro lado da vida não seja um lugar de respostas, mas de
compreensões. Porque as respostas são definitivas, e a vida — mesmo depois dela
— tenho para mim, parece gostar mais de reticências do que de pontos finais. E
se houver reencontros, será que eles virão com memórias? Ou será que a gente se
reconhece pelo que sentiu, não pelo que se lembra? Talvez a minha mãe, que
partiu antes de mim me espere com o mesmo cheiro de alfazema nos cabelos
brancos e ralinhos. Talvez meu papito, que nunca disse “filho, eu te amo”,
finalmente se aproxime e o diga — sem palavras, mas o faça só com um olhar que
não se esconda mais atrás de um orgulho sem razão de ser. E os meus erros e
deslizes? Os abandonos e desencontros, os silêncios, os gritos de socorro? Será
que do outro lado eles se transformarão em lições? Ou continuarão me
acompanhando, como sombras difusas que só se dissolverão quando a luz do
arrependimento dentro de mim se fizer sincera?
Talvez o outro lado da
vida seja um espelho não de aparência normal, mas de face invertida: lá, o que
mais brilha, penso, não seja o que conquistamos, mas o que curamos. Não os
títulos que penduramos em quadrinhos na parede, mas os perdões, os acertos, sobretudo
a coragem de encarar nossos erros mais cabeludos. Entretanto, se não houver
nada? Se o outro lado for apenas um suspiro cansado que se esvai? Ainda assim,
vale a pena viver como se houvesse. Porque amar, pedir desculpas, cuidar, estar
presente — acreditem, tudo isso faz sentido aqui, faz sentido obviamente no meu
agora. E talvez seja isso que me prepara para qualquer lado, seja ele qual for
e como for. Nesta altura, eu me ponho no lugar de meus filhos: a Érica, o
Eduardo, a Narjara, a Amanda, a Luana e a Antonella. Não criados com o carinho
merecido, em contrário, sem a convivência diária do conforto do cotidiano.
Hoje, nesse momento, pressinto estar prestes a cruzar o portal do além, onde o
tempo não corre mais, e eu me sente num canto qualquer do espaço para pensar em
vocês: Érica, Eduardo, Narjara, Amanda, Luana e Antonella. Seis nomes que
carrego no peito como medalhas de uma guerra que eu mesmo abandonei as
trincheiras.
Eu me ponho no lugar
de vocês. Tento imaginar o que é crescer esperando por um pai que não deu os
ares da graça. O que é dormir sem o beijo de boa noite, acordar sem o cheiro de
café feito por alguém que se importa. O que é ouvir os outros falarem “seu pai
isso, seu pai aquilo” e engolir em seco, fingindo que não dói. Imagino,
igualmente os tantos e quantos aniversários em que meu nome não foi dito, ou se
foi, surgiu em meio a pitadas de muitas raivas. As perguntas que vocês fizeram
para suas mães — e que talvez, nem elas, souberam responder. “Por que ele não
veio? Por que meu pai não liga? Por que ele não fica com a gente?” Do lado de lá, me disseram, não há desculpas.
Só silêncio. E nesse silêncio, cada lembrança pesa mais do que qualquer
julgamento. Eu não sei se terei por lá, o direito de pedir perdão. Mas se
houver reencontro, meu Deus, se houver reencontro, um só que seja, espero que
ele venha com um tempo novo. Um tempo em que eu possa ouvir todos vocês, sem interromper.
Em que eu possa da
mesma forma, acolher de coração aberto, a dor imensa e insana que causei, sem
fugir. E se no pior dos mundos, não houver reencontro, se tudo terminar aqui,
então que essas palavras fiquem como um sussurro nas mãos do vento: eu vejo vocês
agora. E sinto. Sinto tudo o que não senti quando devia. Sinto falta do que não
vivi. Sinto amor — um amor tardio, retrógrado. Mas acreditem, um amor de gostar
verdadeiro. E as minhas ex mulheres, que fizeram de tudo para viver em
harmonia, que me deram filhos, que tentaram uma vida. Como ficarão com a minha
partida? (Para todas elas que foram meu abrigo em meio às tempestades que eu
dei causa) e aqui faço referência especial as ex, Regina Célia, mãe de (Érica),
Dalva, mãe de (Eduardo), Carla, mãe de (Narjara), Marlucia, mãe de (Amanda e
Luana), e Patrícia, mãe de (Antonella) que dividiram comigo (em longo e curto
tempo) o mesmo teto e nele os dias, os filhos, e depois os netos, os silêncios.
As que tentaram fazer da vida um lugar habitável, mesmo quando eu era o
vendaval dentro de um pequeno quadrado de felicidade, mas, “burramente”, a
minha imbecilidade insistia em ser a figura de um bicho arredio. As que
seguraram o mundo com uma mão e o choro com a outra. Como ficarão todas essas
almas sofridas com a minha partida?
Talvez com um alívio
nato que venha misturado com uma infinidade de mágoas. (Graças a Deus, essa
praga se foi!). Porque nem toda ausência dói — algumas libertam. Mesmo assim,
acredito piamente nisso, há sempre um canto da alma que seguirá se questionando:
“Será que ele entendeu? Será que ele viu o que eu fiz por nós?” Eu vejo agora.
Percebo as noites mal dormidas, os pratos feitos com carinho e raiva ao mesmo
tempo. Vejo no mesmo tom de entendimento, os bilhetes deixados na porta da
geladeira, os aniversários lembrados sozinhos, os pedidos de ajuda que eu não
ouvi. Vejo igualmente, mesmo norte, o esforço de manter a harmonia quando eu
era dissonância. E se houver justiça do outro lado da vida, que ela venha com
escuta. Que eu possa ouvir o que não quis dar a atenção devida. Que eu possa
agradecer o que nunca levei a sério. Que eu possa pedir perdão — sobretudo
perdão não para ser perdoado, mas para que vocês, pedacinhos da minha vida
possam seguir mais leves. Porque no fundo, todas vocês, criaturinhas cheias de
amor que passaram pela minha vida, mereçam isso.
Todas vocês, ex
esposas, filhos e netos, têm direito a paz. Da mesma forma, o amor maior,
aquele amor verossímil, espantoso, versátil, ilimitado, assombroso, desejável e
insólito, que não machuca, não lesa, não aniquila e não se abate. Todos, de uma
forma acolhedora, necessitam ser lembradas não como “as minhas ex”, repito —
mas como mulheres inteiras, perfeitas, que deram filhos, que dispensaram tempo,
e almejaram tudo. E se eu puder deixar algo, ainda que no despedir do meu
velório, para o último adeus ao meu corpo, que seja isso: que paire no coração
de cada uma, melhor dito, de cada um, que estará por lá, e dentro de mim
presente, bem ainda todos os demais que formaram a minha vida e me deram a
alegria de uma família, que sintam o meu RECONHECIMENTO. Ainda que tardio.
Ainda que sei lá — vindo desse lado desconhecido da vida, ou desse outro para o
qual devo estar em algum momento à frente me preparando em fase dessa
transição, deixo humildemente o meu adeus e, claro, a minha eterna e
imorredoura S A U D A D E.
Título e Texto:
Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro,
4-11-2025
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Aparecido Raimundo de Souza sempre teve um jeito curioso de olhar para o mundo, tipo assim, como quem desconfia que há mais entre o céu e a terra do que a filosofia ousa explicar. Se um dia ele cruzasse a fronteira invisível entre o aqui e o além, não seria com medo, mas com a mesma curiosidade com que observa um passarinho bicando o chão, uma longeva varrendo a calçada ou uma jovem senhorita trocando a calcinha que rasgou no bumbum.
ResponderExcluirDo outro lado da vida, Aparecido não encontraria anjos com harpas nem portões de ouro. Encontraria silêncio. Um silêncio denso, pesado, cheio de histórias, como aquele que paira sobre uma cidadezinha às cinco da manhã. Lá, talvez ele se sentasse num banco de praça feito de nuvem, esperando o jornal celestial com as manchetes do dia: ‘Mais uma alma chegou com saudade da terra’, ‘Café servido com lembranças’.
Ele não seria um fantasma apavorado, nem um espírito iluminado tentando encontrar seu lugar. Seria apenas o Aparecido, com seu caderno de capa dura, anotando os absurdos do além. ‘Aqui ninguém reclama do preço da picanha‘, escreveria. ‘Mas também não tem melancia e laranja lima, tampouco alguém que ligue para as merdas que o Lula com cara de cadáver ambulante vomita. Do outro lado, talvez ele reencontrasse personagens que só existiam em suas crônicas: o homem que vendia sonhos na feira, a moça que chorava sem saber por quê, o cachorro que latia para o vento, o jacaré debaixo da cama, Todos ali, esperando para serem lembrados mais uma vez.
E se alguém perguntasse como é estar do outro lado da vida, ele o Aparecido, pelo tempo que convivemos juntos, tenho certeza responderia com um sorriso tortamente deformado: ‘É como estar do lado de cá, só que sem o barulho desse mundo de merda, de ladrões e safados, de vigaristas e flibusteiros, como também sem as falcatruas do STF e seus ministros com caras de donos fajutos das leis mais fajutas ainda. A saudade continuaria, mas agora ela teria cheiro de eternidade E se alguma alma penada com cara de Carnem Crucia ou UoieaGracie Sem Graucia, fizesse alguma pergunta besta, sem pé nem cabeça, certamente essa indagação abriria espaço para uma nova crônica cheia de ironia, afeto e aquele toque de melancolia que só o Aparecido Raimundo de Souza saberia dosar tão bem.’’
Carina Bratt, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.
Apa. não brigue comigo, por ter deixado a minha opinião e na hora de gravar, apareceu a sua carinha. Logicamente isso não tira a magia do que escrevi. Afinal com a minha carinha ou a sua, o que ecrevi na mensagem não tira, de nenhuma forma a beleza do seu texto. Meu computador você sabe, agora deu para aprontar essas gracinhas. Mas você sabe também, o que vale, são as intenções. E a minhas, (com a minha ou com a sua carinha), tenho absoluta certea, as pessoas da nossa imensa 'Família Cão que Fuma' vão entender que no final das contas, eu e você somos dois seres distintos vivendo as mesma emoções do dia a dia enquanto a vida flui ao nosso redor e nos empurra para a Felicidade. Sempre. Te gosto muito. E agora faça o favor de descer. Mandei vir uma pizza de mussarela como nós dois gostamos.
ResponderExcluirCarina Bratt, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.