Aparecido Raimundo de Souza
Em comum, sem tirar
nem pôr cada uma dessas almas carregam a sua ligeireza sofreguida, como se
fosse um segredo perigoso que precisa ser guardado a sete chaves. E aqui, entre
o vai e vem que apenas se entrelaça por força das correrias dessas criaturas, vejo
surgir um sentimento estranho: o ódio adulterado, ou melhor explicado, a face
conturbada das malévolas trazidas em cada coração que bate descompassado.
Esse ódio, é um ódio
cru, destemperado e insosso. Não aquele que explode em gritos ou socos. Na
verdade, esse agastamento é um mal disfarçado, um enfado repulsivo, camuflado
com perfume barato, vestido de boas maneiras, a maioria dessas maneiras
entrelaçadas de palavras polidas. Um ódio meio assim neurastênico que sorri,
que aperta mãos, que diz “bom dia” por dizer, enquanto na surdina do seu “eu”
mais profundo, trama quedas e baques silenciosos.
Esse ódio fustigoso
não queima de imediato. Eu corroí devagar, sem pressa, “come pelas beiradas”,
se distende como ferrugem em ferro esquecido. Se adultera, misturado com
conveniências e vaidades. Se dilata e se torna quase invisível. E por isso, se
faz mais letal e perigoso. Mais fulminante e agressivo, pelo fato de não se
reconhecer no primeiro olhar.
Ele parece cordial, se
mostra justo, se molda perfeito até ao conhecido como racional. Eis alguns
exemplos: na fila da padaria, na mesa do jantar, no cotidiano das redes
sociais, ele se infiltra. Um comentário irônico, por exemplo, uma piada que não
se faz ou não se coaduna só numa piada, uma crítica que veste a máscara da
preocupação. Tudo contribuí para o ódio adulterado não gritar: o ódio
adulterado, aliás, não faz barulho, apenas sussurra.
E esse sussurro, repetido mil vezes, acaba virando verdade para quem não presta muita atenção. No final da tarde, quando o sol se despede atrás dos telhados da igreja do padre Faustulóbio, mesma forma das casas e prédios no longevo da avenida, percebo que o danado do ódio tipo “as sete vidas de um gato” se transformam literalmente como uma sombra: e, como tal, ele só existe porque há luz.
Talvez seja esse o
desafio. A gente aprender a reconhecer a sombra ofuscante sem deixar que ela,
num momento de puro descuido, nos engula da cabeça aos pés. E enquanto o
relógio da praça segue marcando os minutos, matuto com meus botões que o
antídoto não está em negar esse mal corrosivo, mas em trazê-lo às corridas do
dia a dia, e desmascará-lo.
Descobri que só quando
a gente revela o disfarce que ele traz camuflado, é que se pode verdadeiramente
escolher não carregar esse peso infame, vida à fora, ou repetindo, para deixar
bem aclarado, esse ódio encolerizado. O disfarce desse ódio pecaminoso se
revela justamente nos detalhes, nos pequenos gestos disfarçados de mimos que
parecem inocentes, mas bem sabemos, ou deveríamos ter consciência, carregam um
veneno quase mortal. Ele não se mostra em explosões, se molda em fissuras.
No fundo, essa
artimanha embuçada se revela quando alguém ousa prestar atenção. O ódio
contaminado depende da distração coletiva; basta um olhar atento para que a
máscara se rache e caia por Terra. Tenho visto esse ódio mascarado em todos os
lugares. Na mesa do café, na padaria, quando a garçonete traz o pedido com um
sorriso ensaiado. O cliente agradece, porém, o olhar dela demora um segundo a
mais, carregado de julgamento.
Pequeno gesto. Quase
invisível. Mas nele está entranhado o ódio adulterado, escondido nas
entrelinhas da sutileza. Outro dia, dentro do ônibus, uma senhora pediu licença
para passar. O rapaz se levantou, todavia, em seguida suspirou alto, como quem
carrega o peso mórbido de uma concessão forçada. Não houve insulto, não houve
grito. Só o suspiro.
Um pequeno gesto. O
ódio ignominioso se infiltra assim, se abanca no meio de nós como a poeira que
vem da rua e não percebemos que a sujeira trazida ultrapassou os limites da
janela. Na reunião de trabalho, a colega elogia a ideia bailada, mas acrescenta
(talvez sem querer, ou sem refletir) uma “pena que você demorou tanto para
pensar nisso”. O comentário se avizinha embrulhado em papel de presente, mas
dentro dele há um outro embrulho menor, esse cheio de espinhos.
Repetindo o já dito
acima, um pequeno gesto. Com ele, o ódio fulminante vestindo a melhor roupa da
frágil cordialidade. Na rua aqui de casa, a minha vizinha de lado cumprimentou
um outro morador que mora casas abaixo. O fez com a mão. O corpo dela se virou
rápido demais, como quem não queria estar ali. De novo, batendo na mesma tecla
repetitiva, o pequeno gesto. O ódio deselegante se revelando na pressa de cair
fora, de escapar.
Entendo perfeitamente
e até levo em conta, esses gestos não fazem estardalhaços, não produzem
alardes. São como gotas de um vidrinho pequeno de remédio que temos em casa, na
nossa farmacinha doméstica. Gotas que caem em silêncio, sem alardes,
entretanto, juntas, tem o poder de inundar. O ódio carcomido pela falsidade não
precisa de palco.
Ele se alimenta da
rotina, das microexpressões. Igualmente das palavras que parecem sem estilos ou
friamente neutras. Talvez seja aí que resida o verdadeiro perigo: porque o ódio
infectado a gente, não o reconhece de imediato. Por conta, ele se acumula nos
detalhes, até que um dia, quando alguém finalmente presta atenção, percebe que
o mundo ao redor, se fez infectado de grandes e monstruosas rachaduras.
Devemos ter em mente,
sempre, haja o que houver, que há gestos que parecem com nada, ou se assemelham
a coisa alguma, porém, no âmago carregam universos. Um suspiro atravessado, um
olhar enviesado, que se desvia, uma palavra que chega com doçura e sai do outro
lado deixando por onde passa, um rastro de ferrugem bombasticamente destrutiva.
O ódio adulterado tem uma cólera doce, passeia por cadências afinadas, não se
anuncia em trombetas.
Ele é sádico,
desumano, empedernido. Carrega os rancores da mais vil das opressões, se veste
delas. Prefere haja o que houver, o silêncio das mínimas linhas, das brechas e
frestas. Devemos ficar atentos, olhos abertos. E fugir quanto mais depressa
melhor, passar, longe, dar a volta por cima desse mal inquisitorial que tenta
de todas as formas nos levar para o buraco da desgraça e dentro dele nos DEFINHAR.
Título e Texto:
Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro,
21-11-2025
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