domingo, 23 de novembro de 2025

“Trouxeram os fascistas! Trouxeram os fascistas!”

Aleksandr Soljenítsin

Trouxeram os fascistas! Trouxeram os fascistas!” – não era só em Nova Jerusalém que gritavam assim


No final do verão e no Outono de 1945 era assim em todas as ilhas do Arquipélago. A nossa chegada – dos “fascistas” – abria caminho à libertação dos presos comuns. Tiveram conhecimento da sua anistia em 7 de julho; desde então foram fotografados, prepararam-lhes os certificados de libertação, a conta na contabilidade – mas, primeiro um mês, em alguns lugares segundo mês, noutros um terceiro, os presos anistiados penaram ainda atrás do arame farpado – não havia quem os substituísse.

Não havia quem os substituísse! – e nós, os pobres cegos de nascença, ainda ousamos, toda a Primavera e todo o Verão, nas nossas celas calafetadas, esperar uma anistia!

Que Estaline se apiedaria de nós!... Que ele “teria em conta a Vitória!”… Que nos tendo omitido na primeira anistia de julho, daria depois uma segunda anistia especial para os políticos…

Mas se nos agraciasse a nós, quem desceria às minas? Quem iria para a floresta de serras nas mãos? Quem cozeria os tijolos e os assentaria nas paredes?

“Trouxeram os fascistas!” Os de direito comum, que sempre nos odiaram ou desprezaram, olhavam agora para nós quase com amor, porque os vínhamos substituir.
Aqui está o que foi a grande anistia estalinista, como “nunca se viu no mundo”. Na verdade, onde é que se viu uma anistia que não abrangesse os presos políticos?!

Foram pura e simplesmente libertados todos aqueles que assaltaram apartamentos, despiram os transeuntes, violaram raparigas, corromperam menores, enganaram clientes, vigarizaram, estropiaram pessoas indefesas, praticaram caça e pesca furtivas, praticaram a poligamia, a extorsão, a chantagem, a corrupção, a fraude, a calúnia, a denúncia falsa (esses nem sequer foram presos), traficaram narcóticos, os alcoviteiros, os proxenetas, os que causaram vítimas humanas por ignorância ou negligência (isto é nenhuma figura de retórica, estou simplesmente a enumerar os artigos do Código que figuravam na anistia).

Foi retirada metade da pena: aos delapidadores, falsificadores de documentos e de senhas de racionamento, especuladores e ladrões do Estado (em todo o caso, Estaline não gostava que fossem ao bolso do Estado).

Mas nada exacerbou tanto os antigos militares da frente e prisioneiros de guerra, como o perdão geral aos desertores do tempo da guerra!

Todos os que foram cobardes, fugiram das unidades, abandonaram a frente, não compareceram aos centros de recrutamento, se esconderam durante muitos anos numa cova na horta da mãe, nas caves, atrás dos fornos, transformando-se em animais curvados e hirsutos, todos eles, desde que fossem capturados ou se apresentassem no dia da anistia – eram agora declarados cidadãos soviéticos de pleno direito, sem cadastro, imaculados. (Aqui está uma ocasião de confirmar a prudência do velho provérbio: a fuga não é bonita, mas é salutar.)

Enquanto aqueles que não tremeram, que não se acobardaram, que apararam o golpe pela pátria e pagaram com o cativeiro, para esses não podia haver perdão, no entender do Comandante Supremo.

Texto: Aleksandr Soljenítsin, in “O Arquipélago Gulag”, páginas 257 e 258; Digitação: JP, 23-11-2025

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