sábado, 22 de novembro de 2025

“Prometo a este fogo e prometo-te a ti, menina: todo o mundo irá saber disto.”

Aleksandr Soljenítsin

… O fogo, o fogo! Os ramos crepitam, e o vento noturno do final de outubro enovela as chamas da fogueira. A zona está escura, eu estou sozinho perto da fogueira, posso ainda acrescentar aparas de carpintaria. É uma zona privilegiada, tão privilegiada que até parece que estou em liberdade – é o Paraíso das ilhas, é a “charachka” de Marfino, a mais liberal da época

Ninguém me vigia, nem me manda para a cela, nem me expulsa para longe do fogo. Vesti o casaco acolchoado, mas mesmo assim está bastante frio, por causa do vento cortante.

Mas ela, que está há horas em pé ao vento, em sentido, de cabeça baixa, ora chora, ora fica imóvel, gelada. Por vezes volta a pedir em voz queixosa:
- Cidadão chefe!... Desculpe!... Desculpe, eu não volto a fazer…

O vento traz até mim os seus soluços, como se ela chorasse mesmo por cima do meu ouvido. O cidadão chefe, no posto da guarda, alimenta o fogão e não reage.

É a casa da guarda do campo ao lado do nosso, de onde vêm os operários à nossa zona instalar as canalizações de água, fazer as reparações no velho edifício do seminário.
Separada de mim por um entrelaçado de muitos arames farpados, e a dois passos da casa da guarda, debaixo da luz forte de um candeeiro, abatida, está rapariga castigada; o vento agita-lhe a sainha de trabalho cinzenta, arrefece-lhe as pernas e a cabeça, coberta por um lencinho ligeiro.

Durante o dia, enquanto escavavam uma trincheira no nosso campo, estava calor. E outra rapariga, descendo para uma ravina, afastou-se a rastejar para a estrada de Vladikino, e fugiu – a guarda estava distraída. E pela estrada passa um autocarro urbano de Moscovo; aperceberam-se, mas já não a apanharam. Deram o alarme, chegou um major moreno, furioso, gritou que por essa fuga, se não apanharem a fugitiva, todo o campo será privado de visitas e de encomendas durante um mês.

E todas as da brigada se enfureceram, todas gritaram, uma delas em especial, revirando os olhos raivosamente: “Que apanhem, essa maldita1 Que lhe cortem o cabelo com uma tesoura – tchic! tchic! – diante de toda a gente em formatura!” (Isto não era invenção dela, assim castigam as mulheres no Gulag.) Mas esta rapariga suspirou e disse: “Ao menos uma vai passear por nós em liberdade!”

O guarda ouviu, e ela foi castigada: levaram todas para o campo, e a ela colocaram-na “em sentido” diante da casa da guarda. Ela tentou marcar passo, assim se aquecendo, o guarda assomou-se e gritou-lhe: “Fica em sentido, p…, ou será pior!” Agora não se mexe e apenas chora:
- Desculpe-me, cidadão chefe!... deixe-me ir para o campo, eu não volto a fazer!...
Mas mesmo no campo ninguém lhe dirá: santinha! entra!...

Não a deixam entrar durante tanto tempo, porque amanhã é domingo, não será necessária para o trabalho.

De cabelo louro muito claro, uma rapariga simples, sem instrução. Está presa por causa de uma qualquer bobine de linhas. Que pensamento perigoso foste tu exprimir, irmãzinha! Querem que isso te sirva de lição para toda a vida.

O fogo, o fogo!... Quando andávamos em combate olhávamos para as fohueiras, a tentar adivinhar como seria a Vitória… O vento trazia da fogueira cascas apenas lambidas pelas chamas.
Prometo a este fogo e prometo-te a ti, menina: todo o mundo irá saber disto.

Isto passa-se em 1947, perto do trigésimo aniversário de Outubro, na nossa cidade capital de Moscovo que há pouco festejou o oitavo centenário das suas crueldades. A dois quilômetros da exposição da agricultura soviética. E a menos de um quilômetro de Ostankino e da Casa da atividade criadora dos servos.

Texto: Aleksandr Soljenítsin, in “O Arquipélago Gulag”, páginas 246 e 247; Digitação: JP, 22-11-2025

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