Este texto é sobre um genocídio, mas não
sobre o Holocausto. Fala da grande fome da Ucrânia – conhecida por Holodomor –
um outro genocídio provocado por Stalin em 1932/33, mas praticamente
desconhecido
O século XX foi,
provavelmente, o período de tempo em que o ser humano foi mais maltratado e em
que se viu privado dos aspectos mais básicos da sua dignidade. Duas guerras
mundiais, centenas de confrontos locais, ditaduras de todas as espécies e
feitios, terrorismo, revoluções e genocídios fizeram com que a natureza humana
fosse confrontada com aquilo que de pior existe e contabilizaram um total de
mortes que, em conflitos, atingiu o triplo do resto da História. Nunca houve,
assim, um século que fizesse tantas vítimas.
Ora, diz-se (e bem) que se o
diabo tivesse rosto, seria o de Hitler. E para justificar uma afirmação tão
categórica e forte, costumamos dar como exemplo o Holocausto, que, das formas
mais cruéis e desumanas, provocou, em 12 anos (embora a “solução final” das
câmaras de gás só tenha sido posta em prática em 1942) cerca de seis milhões de
mortos, executados devido à fé judaica que livremente professavam ou que apenas
herdavam. Mas não, este texto não é sobre o Holocausto. É sobre a grande fome
da Ucrânia – mais conhecida por Holodomor – um genocídio em massa provocado por
Stalin entre 1932 e 1933, mas praticamente desconhecido.
Para explicar este massacre,
importa perceber primeiro o contexto espaciotemporal em que se insere. Mal
chegou à liderança da União Soviética, em 1924, Josef Stalin tomou um conjunto
de medidas para garantir a total abolição da propriedade privada, através da coletivização
de todas as terras. Este modelo arrancou, em pleno, no ano de 1929, quando
Stalin decretou a entrega imediata de toda e qualquer propriedade ao Estado
Soviético. Este plano definia que cada terra (kolkhozes se formadas
por uma cooperativa ou sovkhozes se administradas diretamente
pelo governo) deveria obedecer a certas quotas mínimas de produção, entregando
depois tudo o que produzisse ao governo central da URSS, que distribuiria
igualmente por todos os cidadãos, independentemente da região proveniente.
Esta decisão não foi,
naturalmente, consensual, de modo que se veio a verificar, um pouco por todas
as 15 repúblicas soviéticas, alguma resistência por parte dos proprietários
rurais. O caso mais notório de oposição declarada a esta medida do I Plano
Quinquenal de Stalin foi a Ucrânia, extremamente rica em matérias-primas e
fértil em produtos agrícolas (trigo, beterraba, batata, por exemplo) e que
seria, assim, enormemente prejudicada por esta lei agrícola, visto que,
produzindo muito, não beneficiaria nada desta nova condição. Todavia, entre
revoltas e contestação, o plano começou, à força, a ser aplicado e as quotas
agrícolas exigidas à Ucrânia eram cada vez mais elevadas e desproporcionais, o
que, conjugado com alguma desorganização, resistência e más condições
meteorológicas, começou a causar alguma fome, que já se notava em 1931. Era
preciso passar fome para que se cumprissem as quotas, mas, mesmo assim, Moscovo
só recebeu 39% do valor utópico exigido à Ucrânia.
Perante a realidade ucraniana,
Stalin decidiu tomar medidas implacáveis. Considerou que a responsabilidade
pela produção baixa e insuficiente não era das metas completamente irrealistas
fixadas pelo sistema de quotas ou da desorganização do sistema de coleta, mas
antes daquilo que apelidou de “sabotagem dos nacionalistas e contrarrevolucionários”
ucranianos, que queriam, acima de tudo (na versão quase paranoica do ditador
russo), ver o plano de Stalin fracassar. Na carta que endereçou a Kaganovich,
um dos seus mais íntimos colaboradores, a 11 de agosto de 1932, afirmava mesmo
que “a Ucrânia é hoje em dia o principal problema (…) É preciso transformá-la
numa fortaleza bolchevique, sem olhar a custos”. E Stalin seguiu literalmente
estas suas palavras.
As colheitas mantinham-se e
o trabalho permanecia obrigatório, mas não havia mais redistribuição e os
camponeses passaram a estar proibidos de comprar alimento. A comida pura e
simplesmente desapareceu. Para garantir que ninguém fugia a este plano
demoníaco, Stalin proibiu o êxodo dos camponeses para a cidade.
Como represália pelo fracasso
no plano megalômano que ele mesmo ordenara, Stalin usou a fome para castigar o
povo ucraniano. Entre setembro e novembro de 1932, bloqueou completamente o
fornecimento de alimentos à população rural da Ucrânia (mais de 75% do seu
total). As colheitas mantinham-se e o trabalho permanecia obrigatório, mas não
havia mais redistribuição e os camponeses passaram a estar proibidos de comprar
alimento. A comida pura e simplesmente desapareceu. Para garantir que ninguém
fugia a este plano demoníaco, Stalin proibiu o êxodo dos camponeses para a
cidade, interditando também a sua circulação através da rede de comboios. Tal
servos da gleba, os camponeses ucranianos estavam obrigados a permanecer nas
suas terras, inevitavelmente condenados a morrer à fome nas aldeias geladas da Ucrânia
soviética. Qualquer roubo da menor semente de trigo era condenado, ao abrigo da
famosa “lei das cinco espigas”, a dez anos num campo de trabalho forçado
(gulag) ou mesmo à pena capital, normalmente executada no local. As conexões
com o mundo urbano foram cortadas e os jornalistas proibidos de visitar o campo
ucraniano. Aquele povo estava a morrer à fome, mesmo produzindo mais do que
nunca.
Em apenas de um ano, morreram
milhões de ucranianos (as estimativas variam entre os 4 milhões de mortos e os
12 milhões, que significavam, respectivamente, 12,5% e 37,5% da população total
da Ucrânia) da forma mais lenta e desumana, de fome. Famílias inteiras
arrasadas, crianças que nasceram sem vida, milhares de seres humanos deixados
no chão ao abandono, corpos que nada mais eram do que a pele colada ao osso.
Tudo por capricho, vaidade e vingança de Stalin, que, para mostrar que era o
líder supremo e omnipotente da URSS, ordenou um dos maiores massacres humanos
de que há memória. Nunca num tempo tão curto tanta gente foi morta por tão
pouco. Este autêntico genocídio do povo ucraniano foi batizado de “Holodomor”,
que advém da expressão ucraniana “Морити голодом”, que significa “matar pela
fome” e foi executado enquanto em grande parte do Ocidente se louvava o suposto
“milagre econômico soviético”, como foi designado por Walter Duranty,
conceituadíssimo jornalista do New York Times e prêmio Pulitzer, que era, no
entanto, negacionista do Holodomor e colaborador próximo de Stalin.
Enquanto 40 milhões de pessoas
passavam fome e muitos deles acabavam mesmo por padecer, a URSS exportava trigo
como nunca antes se vira, chegando aos 5.170.000 de toneladas (grande parte
vinda da Ucrânia) vendidas ao estrangeiro. Fazia assim transparecer para o
exterior uma imagem de vitalidade e progresso econômico, enquanto a realidade
interna era bem diferente. Em 1933, a produção ucraniana representou cerca de
32% do total soviético, sendo, de longe, a província mais fértil, próspera e
rica de todo o território da URSS. Contudo, embora continuassem a exportar,
os kolkhozes ucranianos não recebiam sequer uma ínfima parte
do alimento que produziam. Mantinham-se, por ordem do governo, esfomeados e
cada vez mais frágeis.
O pior do Homem veio ao de
cima, não por maldade, mas por sobrevivência. Tudo era motivo para conseguir um
pão. Denunciava-se a própria família, inventavam-se mentiras sobre os vizinhos,
compactuava-se com os piores crimes do Exército. Por uma fatia de pão.
Pelos motivos aparentemente
mais insignificantes, centenas, se não milhares de camponeses, foram expostos
às maiores torturas e condenados às penas mais horríveis. Numa carta ao próprio
Stalin, o oficial soviético Mikhail Cholokhov descreve a violência policial e
do Exército Vermelho contra o povo ucraniano (“E eis alguns dos métodos
empregados para obter essas 593 toneladas, das quais uma parte estava
enterrada… desde 1918! O método do frio… Os kolkhozianos são
despidos e postos ‘ao frio’, completamente nus, num celeiro. Muitas vezes, são
bandos inteiros de kolkhozianos que são postos ‘ao frio’. O
método do calor, em que os pés e as barras das saias das kolkhozianas são
regados com gasolina e, em seguida, ateia-se fogo, que depois é apagado para
começar de novo…
No kolkhoz de Napolovski, um tal de Plotkin, ‘plenipotenciário’ do Comitê do Distrito, forçava os kolkhozianos interrogados a deitarem-se sobre um forno em brasa, depois ele os ‘esfriava’ trancando-os nus num celeiro… No kolkhoz de Lebiajenski, os kolkhozianos eram alinhados ao longo de um muro, e uma execução era simulada… Eu poderia multiplicar ao infinito esse tipo de exemplos. Não são ‘abusos’, mas o método usual de coleta do trigo…”). Stalin respondeu, cínico, que “os lavradores não são nenhumas ovelhinhas inocentes”.
No kolkhoz de Napolovski, um tal de Plotkin, ‘plenipotenciário’ do Comitê do Distrito, forçava os kolkhozianos interrogados a deitarem-se sobre um forno em brasa, depois ele os ‘esfriava’ trancando-os nus num celeiro… No kolkhoz de Lebiajenski, os kolkhozianos eram alinhados ao longo de um muro, e uma execução era simulada… Eu poderia multiplicar ao infinito esse tipo de exemplos. Não são ‘abusos’, mas o método usual de coleta do trigo…”). Stalin respondeu, cínico, que “os lavradores não são nenhumas ovelhinhas inocentes”.
A desgraça humana era total e
a maldade chegou a níveis indescritíveis. Sem qualquer necessidade disso, um
líder político ordenou a morte e a fome do seu próprio povo. O pior do Homem
veio ao de cima, não por maldade, mas por sobrevivência. Tudo era motivo para
conseguir um pão. Denunciava-se a própria família, inventavam-se mentiras sobre
os vizinhos, compactuava-se com os piores crimes do Exército. Por uma fatia de
pão. O Holodomor trouxe também consigo a horrenda realidade do canibalismo.
Cantavam tristes as crianças ucranianas no Inverno de 1932-33: “Fome e frio
estão nas nossas casas/ Nada que comer, nenhum lugar para dormir/ E o nosso
vizinho perdeu a sua razão e comeu os seus filhos”.
Na verdade, milhares de
famílias, com um dos membros mortos pela fome, eram obrigadas, para não seguirem
o mesmo destino, a comê-lo. Numa entrevista que deu na década de 1990, uma
vítima da grande fome ucraniana contou a sua duríssima experiência, quando
criança: “Um dia, a filha de uma vizinha da nossa aldeia desapareceu. Todos
fomos procurá-la, mas não estava em lado nenhum. Na mesma tarde, entramos na
casa de uma camponesa e deparamo-nos com a criança procurada. A cabeça estava
em cima de uma mesa e o corpo a assar, para servir de alimento”.
Como esta, houve centenas de
histórias e quantidades incontáveis de crianças foram raptadas para servirem de
alimento. Uma das alternativas encontradas ao trigo foi o pirojki,
um patê feito com fígado humano. Mas a maldade não fica por aqui. Também em
condições muito difíceis, os agentes da NKVD (polícia secreta do regime
soviético) recebiam 200 gramas de pão por cada corpo que encontrassem. Os
corpos eram enterrados em valas comuns, muitas vezes ainda vivos. A propósito
desta realidade, um ucraniano que viveu este terror descreve que “a maioria
morria lentamente, em casa (…) Os militares entravam nas casas e perguntavam:
“Onde estão os seus mortos?”. Uma vez, havia apenas uma mulher moribunda
deitada na cama. Eles disseram: “Vamos levá-la, ela vai morrer de qualquer
forma”. Ela implorava: “Não me enterrem, que eu ainda estou viva! Eu quero
viver!”. Os guardas insistiram: Para quê vir amanhã por ela? Vai morrer de
qualquer forma!”. Levaram-na e enterraram-na viva”.
Honestamente, a única
diferença entre a planície ucraniana nos anos de 1932 e 1933 e o Inferno é que,
em vez de chamas, ali havia quilômetros intermináveis de neve e temperaturas na
ordem dos 30°C negativos. Enquanto as valas comuns se enchiam de corpos quase
sem carne e completamente desprovidos da sua dignidade, o trigo de que o povo
ucraniano era privado enchia os cofres da URSS, batendo os recordes de
exportação para a Europa e para o mundo ocidental. Muitos se esforçaram para
descredibilizar aqueles que, como Gareth Jones e Malcom Muggeridge, denunciaram
os horrores da fome ucraniana e só na década de 1980 é que investigações sérias
começaram a ser conduzidas e relatórios produzidos.
Estas vítimas não tiveram
direito a funerais nem a lápides bonitas. Não tiveram direito a ser
reconhecidas pelos seus nomes, não tiveram direito a memoriais e praticamente
não são referidas nos livros de História. Mas estas vítimas são como, vós,
caríssimo leitor. São como eu, são como nós. Estas vítimas eram milhões de
seres humanos (mulheres, crianças e homens adultos), inocentes, condenados a
morrer da forma mais cruel e morosa, condenados a serem apagados do mapa e da
História. Em apenas um ano, milhões de ucranianos foram exterminados, por puro
sadismo e vingança de um líder e de um governo que devia ter como única missão
defendê-los e às suas vidas. Esquecer o Holodomor ou ficar-lhe indiferente, tal
como esquecer o Holocausto, é demitirmo-nos da nossa humanidade, é aceitar que,
em última instância, nada mais somos como raça e como espécie do que
instrumentos à mercê de alguns facínoras que se outorgam o direito divino de
definir o bem e o mal, quem vive e quem morre. E isto, nunca! Ser-se humano,
livre e capaz de amar verdadeiramente, é a maior graça que podemos ter e
receber. Não a entreguemos de mão beijada àqueles que apenas a querem
aniquilar.
Este texto é, assim, dedicado
aos milhões incontáveis de mortos provocados por este genocídio absolutamente
impiedoso. A eles, todo o meu respeito e homenagem. E se umas breves palavras
de um jovem desconhecido nada podem fazer para evitar a tragédia que aconteceu,
têm, no entanto, o poder de lembrar o pior a que o Homem pode chegar, nunca
esquecendo que cabe a cada um de nós, cidadãos do mundo e seres humanos,
impedir que tal se repita.
Título e Texto: Francisco
Lopes Matias, Observador,
14-5-2020, 0h04
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