Bolsonaro está onde sempre esteve. Doria
terá problemas se a essência de sua força política estiver no confinamento e na
política do “fecha tudo”
J. R. Guzzo
Apeste do coronavírus no
Brasil, como sabe qualquer adulto capaz de conviver com ideias diferentes das
suas, não levou mais do que cinco minutos para sair do campo na ciência e se
transformar numa briga política que está fervendo até agora — e, possivelmente,
vai continuar por aí depois que a epidemia for controlada. Na verdade, pode ter
uma influência decisiva no futuro da política, da economia e das escolhas da
sociedade brasileira. O inimigo comum, ao contrário do que ocorreu em outros países,
não foi o vírus — foi o outro lado. O presidente Jair Bolsonaro e as forças que
o apoiam, para não complicar uma história que no fundo é simples, ficaram desde
o começo contra a paralisação do país para combater a doença; sua ideia-mãe é
que se tratava de uma “gripezinha” que jamais poderia justificar todo o imenso
sistema de proibições que os governos locais, com a autorização ou anuência do
Poder Judiciário, puseram a funcionar nos últimos dois meses para combater a
covid-19. Os políticos que querem a Presidência em 2022 (ou tão logo possível),
e todos os que se opõem de alguma forma a Bolsonaro, tomaram posição a favor do
“fique em casa” — que já arruinou o ano de 2020 e pode impedir, simplesmente,
que o governo se recupere no horizonte mais próximo.
Muito pouco de tudo o que o
poder público vem decidindo no Brasil desde o último mês de março, em suas
diferentes esferas, tem realmente a ver com uma preocupação sincera com a saúde
da população. Os que mandam neste país jamais deram a mínima para a saúde
pública — tanto que a rede de esgotos não chega a 50% dos cidadãos e os
hospitais públicos vivem em situação de colapso permanente, com ou sem vírus.
Mas isso é problema de pobre: nenhum governante brasileiro com um mínimo de
projeção, nem os que podem pagar um plano médico privado, jamais se tratou num
ambulatório do SUS. Só que a covid, para desorientação geral, não se limitou ao
povão, o que deixaria as coisas na indiferença de sempre: pegou da classe média
para cima. Aí deu-se o pânico e ficou aberto o campo para a transformação de
uma doença mortal em briga política. Quem passou a se sentir ameaçado, e tem
meios para sobreviver sem a obrigação de ir ao trabalho todos os dias, começou
a apoiar tudo o que foi apresentado como solução — dos engarrafamentos de
trânsito ao fechamento das barbearias Quem sempre viveu ameaçado só tem pensado
numa coisa: como ficar vivo sem ter um tostão no bolso.
As medidas tomadas
até agora, no fundo, só tentam adivinhar com qual dos lados será mais lucrativo
ficar.
É inútil esperar
por “pesquisas de opinião” para saber quem está fazendo a aposta mais certa — o
resultado, como de costume, será apenas o que os pesquisadores querem que seja.
O que se pode fazer é olhar com atenção, todos os dias, para os fatos. É certo
que o apoio ao confinamento e a todas as soluções radicais que vêm junto reúne
dezenas de milhões de pessoas; não é o grupinho que o presidente e sua base de
apoio acham que é — se fosse, a paralisação do Brasil não aguentaria quinze
dias de pé. Está nesse lado a maioria dos 12 milhões de funcionários públicos e
suas famílias. (Exemplo clássico: segundo um levantamento que foi publicado há
pouco na mídia, 80% dos professores do Estado em São Paulo se declararam “não
preparados” para voltar a dar aulas.) A maioria dos que podem fazer
“teletrabalho”, possivelmente, também apoia o confinamento, ou não tem nada
contra. Somem-se aí aposentados, rentistas, ricos e gente que, no fundo, não
precisa trabalhar, e dá para calcular o tamanho do partido a favor do “fique em
casa”.
É certo, da mesma maneira, que
a maioria da população brasileira não está aí, e que há um número no mínimo
equivalente de pessoas com menos medo da epidemia do que de ficar sem dinheiro algum para
sobreviver. Esse grupo, naturalmente, só tende a crescer a cada dia que passa.
Não adianta
governadores e prefeitos que lideram o partido do confinamento “até a
descoberta de uma vacina” apontarem diariamente para a soma de mortos.
Quem está no desespero não faz
a mesma conta nem quer continuar esperando. Não há apoio ao confinamento,
igualmente, junto a milhões de empreendedores privados de todos os tipos, para
quem está com medo de perder o emprego ou entre a maioria dos responsáveis por
alguma empresa com contas a pagar.
A resposta sobre quem vai
acabar ganhando a disputa política só será conhecida, realmente, nas eleições
de 2022. Os adversários do presidente da República precisariam, até lá, não só
manter o apoio que conquistaram com sua aposta no “isolamento social”; é indispensável,
também, que atraiam mais gente para seu lado. Os militantes pró-governo acham,
ao contrário, que essa perspectiva não faz parte do mundo das realidades — e
não acreditam que Bolsonaro esteja realmente perdendo o apoio que tem. Os
sinais mais recentes indicam que o confinamento vem sendo suspenso em cada vez
mais lugares, em vez de ampliado — os governos locais parecem estar sentindo,
com o passar dos dias e o aumento da angústia, que não há um futuro viável para
a ideia de deixar o país parado “pelo tempo que for necessário”.
Muito bem: se vai
ser preciso encerrar ou aliviar de forma visível o confinamento, mais cedo ou
mais tarde, então por que não começar mais cedo?
A grande briga política do
vírus, tal como pode ser vista hoje, se resume a dois nomes, o presidente
Bolsonaro e o governador João Doria. Bolsonaro parece estar mais ou menos onde
estava no começo do ano. Provocou picos de indignação nos últimos dois meses,
mas basicamente se trata de indignação entre os já indignados; não há sinais de
revolta entre suas bases. A questão real é Doria. O governador de São Paulo,
com certeza, obteve apoio maciço da mídia, que até seu rompimento com Bolsonaro
o tratava com o mais absoluto desprezo. Passou a ser levado a sério, também,
pelas classes intelectual-civilizadas que formam a vanguarda do
antibolsonarismo a qualquer custo. Doria, na verdade, parece ter encontrado um
lugar que hoje não teria se tivesse permanecido fiel a Bolsonaro; nunca fez
parte da verdadeira base de apoio do presidente, que não gosta dele nem acha
preciso contar com seu apoio. O fato é que acabou se tornando, de longe, o
único candidato “de oposição” que sobrou para disputar a eleição de 2022.
Na coluna dos débitos, porém,
Doria tem de lidar com uma carga bem pesada. Não conseguirá, nunca, juntar mais
de meia dúzia de pessoas numa manifestação de rua em seu apoio, nem com toda a
mortadela do mundo — a ideia de uma concentração pró-Doria na Avenida Paulista,
com bandeira do Brasil e coro de “mito, mito!”, é simplesmente absurda. Lula, o
PT e a esquerda, que Doria imagina ter hoje mais ou menos a seu lado, jamais
vão tratá-lo como um aliado real — alguém, sinceramente, imagina Lula fazendo
campanha para Doria num palanque em 2022? Também não está claro se o governador
ganhou algum espaço importante fora de São Paulo com seu mergulho de cabeça no
“fique em casa”. É óbvio, enfim, que Doria terá um problema e tanto se a
essência de sua força política estiver no confinamento e na política do “fecha
tudo”. É simples: ele não tem a mínima possibilidade de manter as coisas assim
por mais dois anos, e continuar faturando com a emergência. Ao contrário, o
confinamento vai acabar. E daí: quanto do apoio que tem agora o governador
conseguirá segurar?
Doria só se elegeu em 2018
porque soube, melhor do que ninguém, passar uma mensagem única: “Em São Paulo,
só eu estou de verdade com Bolsonaro e contra o PT”. Agora terá de ganhar uma
eleição fazendo exatamente o contrário. Vai ser preciso que os aliados que
ganhou com a covid-19 continuem de seu lado, sem vírus, até o dia da eleição.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista Oeste,
22-5-2020, 10h41
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