O STF está agindo ao mesmo tempo como
vítima, polícia, promotor e juiz, algo inadmissível segundo a lei
J. R. Guzzo
O ministro Luís Roberto
Barroso, do Supremo Tribunal Federal, fez na última segunda feira um discurso
no qual deu uma opinião surpreendente sobre o Brasil e o momento presente. “Nós
já percorremos e derrotamos o ciclo do atraso”, disse Barroso. “Hoje vivemos
sob o reinado da Constituição, cujo intérprete é o STF.” Em seguida, achou
oportuno observar que o Supremo, “como qualquer instituição em uma democracia,
está sujeito à crítica pública”. De qual Brasil estaria falando Barroso? Dois
dias depois, o ministro Alexandre de Moraes, do mesmo tribunal, ordenou que
agentes da Polícia Federal fizessem 29 operações de busca de documentos,
apreensão de celulares, quebra de sigilo bancário e outros atos de repressão
contra editores de blogs pró-governo e anti-STF, indivíduos diversos, incluindo
um humorista e oito deputados no exercício dos seus mandatos, seis deles
federais. Não foram acusados, legalmente, de nada: só se informou que fazem
ataques destrutivos contra o tribunal e a democracia nas redes sociais. No Brasil
de Moraes, o STF não está sujeito a críticas que ele, Moraes, não aprova.
O rapa do dia 27 de maio é um
dos piores momentos jamais vividos pela Justiça brasileira. Ele é resultado de
um inquérito apontado por muitos dos mais respeitados juristas do Brasil como
flagrantemente ilegal — e que já dura quinze meses seguidos, sob a direção
única de Moraes, sem nenhum controle por parte de ninguém. A história começou
em março do ano passado, quando o presidente do STF, Antônio Dias Toffoli, sem
a aprovação dos outros dez ministros, ordenou que o tribunal abrisse uma
investigação para apurar possíveis delitos — e os culpados por eles — na
divulgação de fake news, ou notícias falsas, que têm ou teriam
ocorrido contra o próprio STF, seus ministros e membros de suas famílias. Como
assim? Não se preocupe, caso você não tenha entendido; não dá mesmo para
entender nada.
O inquérito das
“notícias falsas” mostra que o Supremo faz justamente o contrário do que a lei
brasileira manda
A mais alta corte de justiça
do país, pela lógica comum, deveria ser também a instituição mais escrupulosa
na obediência à legalidade. Não é ali que está o paraíso dos “garantistas”,
gente que exige o cumprimento da lei nos seus mais extremados detalhes formais?
Mas esse inquérito das “notícias falsas”, no qual o STF está agindo ao mesmo
tempo como vítima, polícia, promotor e juiz, mostra que o Supremo faz aí
justamente o contrário do que a lei brasileira manda que faça. As realidades
objetivas, até agora, são as seguintes:
· Cabe ao Ministério Público, que pela
Constituição não é subordinado a nenhum dos Três Poderes, a exclusividade pela
abertura de inquéritos criminais, sua condução e o eventual oferecimento de
denúncias à Justiça.
· Quando considera que um delito deve ser
apurado, o Supremo, ou qualquer juiz, ou quem quer que seja, pede que o
Ministério Público abra um inquérito a respeito; a autoridade policial, então,
é encarregada pelo MP de fazer todas as investigações sobre o caso. Disso pode
resultar uma denúncia que será submetida ao Judiciário — que decidirá, enfim,
se vai ou não aceitá-la. O STF não está autorizado a fazer o trabalho da
polícia, nem do MP.
· O presidente Toffoli escolheu diretamente o
ministro Alexandre de Moraes para chefiar o inquérito. Não houve sorteio, nem
consulta ao plenário do tribunal. Não há precedentes, nem explicação, para
isso.
· Moraes não entregou a investigação à
“autoridade policial”, como está previsto na lei. Nomeou uma pessoa física, um
delegado específico da PF, de sua escolha pessoal, para dirigir o trabalho — só
ele, e agentes selecionados por ele, podem operar no caso. Isso também é
inédito.
· Um inquérito criminal só pode ser aberto se
tiver um fato determinado a apurar; não pode, como decidiu Moraes, investigar a
coleta, divulgação e financiamento de “notícias falsas”. O fato investigado tem
de ser, obrigatoriamente, um crime previsto num dos 361 artigos do Código
Penal. Em nenhum deles aparece o crime de fake news.
· O artigo 1 do Código Penal diz que “não há
crime sem lei anterior que o defina”. O ministro Moraes não apontou até agora
qual é a lei que define os crimes que está apurando.
·
Moraes divulgou diversos tuítes, de autoria
de pessoas investigadas, nos quais são feitos insultos ao STF e se prega o seu
fechamento, além de uma porção de outras grosserias extremas. Segundo ele, “as
postagens contêm graves ofensas a esta Corte, com conteúdo de ódio e de
subversão da ordem”. Fala, também, em “denunciações caluniosas” e outras infrações.
O ministro não invoca os crimes específicos de injúria ou de calúnia, definidos
nos artigos 140 e 138 do Código Penal, nem dá os nomes de suas eventuais
vítimas; tanto um como o outro, segundo está no CP, precisam ser cometidos
contra “alguém”, pessoalmente. Quanto à subversão, o inquérito não aponta atos
concretos como manifestações de rua, invasões de prédios públicos, agressões ou
alguma forma objetiva de conspiração. Só aparece o que os acusados dizem que
gostariam de fazer. É uma lista de desejos, não de ações.
· Não está definido, também, qual o artigo do
CP que teria sido violado pelo financiamento das operações que divulgam
notícias falsas.
· O STF só pode se envolver com a investigação
de quem dispõe de “foro especial”, como é o caso dos deputados federais. Não se
explicou o que estão fazendo neste inquérito blogueiros, empresários e gente
que não tem imunidade nenhuma.
· Os inquéritos criminais têm de ter indiciados
— ou seja, pessoas a serem investigadas, que por sua vez precisam ser
legalmente notificadas da investigação contra elas e têm o direito à
assistência de advogados desde o primeiro minuto da investigação. Não há nenhum
indiciado no inquérito Toffoli-Moraes; além de entrar em suas residências e
apreender celulares, a PF, na operação do dia 25, apenas deixou uma ordem para
prestarem “depoimento”.
· A investigação, desde o seu início, está
sendo feita em segredo, sem que os investigados saibam que estão investigando
as suas vidas. Não há advogados, nem qualquer direito de defesa. Não se trata
de processo que corre “em sigilo de Justiça”, em que o público não tem acesso
aos autos, mas as partes recebem todas as informações. Isso é outra coisa.
· O inquérito, em abril do ano passado,
praticou censura, ação proibida pela Constituição, contra o site O
Antagonista e a revista digital Crusoé.
Nada do que está escrito acima
é opinião; só há fatos concretos e que podem ser constatados materialmente.
Como é que fica, então? O Ministério Público já foi para um lado, depois voltou
e agora foi de novo. Quando o inquérito foi aberto em março de 2019, disse que
era contra; foi ignorado, simplesmente. Quando o presidente Jair Bolsonaro
nomeou o atual Procurador-Geral da República, Augusto Aras, para substituir
Rachel Dodge, o MP mudou de ideia e passou a ser a favor — ou seja, o PGR
escolhido pelo presidente fez o contrário do que se poderia imaginar que
fizesse. Agora, depois de dizer que não sabia de nada sobre o rapa do dia 25,
Aras pediu o arquivamento do inquérito ao ministro Edson Fachin — que, por sua
vez, não quis resolver o caso sozinho e jogou a decisão para o plenário.
Os blogs anti-STF
estão dizendo coisas horríveis, mas não se apontou objetivamente qual crime
praticaram
É onde estamos. Que confiança
o cidadão brasileiro pode ter na Justiça do seu país quando ela é administrada
desse jeito? As pessoas e organizações que insultam o STF nas redes sociais,
querem o fechamento do Congresso e pedem que os “militares” assumam o governo
propõem um desastre de A a Z — mas falar não é crime, por piores e mais
primitivas sejam essas declarações. “É livre a manifestação do pensamento”, diz
a Constituição no artigo 5; não diz que a manifestação é livre desde que o
pensamento seja acertado ou virtuoso. Os blogs anti-STF estão dizendo coisas
horríveis, mas não se apontou até agora, objetivamente e na forma da lei, qual
o crime que praticaram. Não são eles, na verdade, que ameaçam as instituições
democráticas; ofensas e gritaria não fecham tribunal nenhum, nem cassam mandato
de ninguém. Quem realmente trabalha contra as instituições são os magistrados e
parlamentares que, por sua conduta destrutiva, fazem a população perder cada
vez mais a confiança nas instituições. Respeitar o quê, se as ações praticadas
por quem está no comando da Justiça e da política são um escândalo em tempo
integral?
“O que está acontecendo é que
uma grande parte da sociedade e da imprensa brasileiras percebem a Suprema
Corte como um obstáculo para o combate à corrupção. Uma corte que repetidamente
toma decisões que a sociedade não entende, e com as quais não concorda, está
com um problema”. Que inimigo do STF poderia ter dito uma coisa dessas? Não foi
nenhum blogueiro investigado em segredo pelo ministro Moraes. Foi o seu colega
Luís Roberto Barroso, o mesmo que é citado no início deste artigo, numa
conferência que fez no ano passado na Universidade de Columbia, em Nova Iorque.
(A propósito do inquérito das fake news, na verdade, o ministro
acha que a solução para combater as mentiras, insultos e falsificações
praticadas contra o STF está na liberdade de expressão, tanto nas redes sociais
como na imprensa tradicional — é ali, não na polícia, que a pregação contra a
democracia tem de ser exposta e os fatos têm de ser apresentados.)
Barroso, por sinal, já disse
em público, numa reunião do plenário do STF há pouco mais de dois anos, que seu
colega Gilmar Mendes “é o mal, é o atraso, com pitadas de psicopatia.”
Acrescentou o seguinte: “A sua vida é ofender. É bílis, é ódio, é mau
sentimento. Vossa Excelência nos envergonha. Vossa Excelência é uma desonra
para todos nós. Vossa Excelência, sozinho, desmoraliza este tribunal”. Nem
quando Barroso falou em Nova York, nem quando fez este julgamento do ministro
Gilmar, passou pela cabeça de ninguém abrir um inquérito secreto contra ele,
para apurar ataques “contra o Supremo” ou “contra os seus ministros”. É óbvio
que não, pois na primeira ocasião ele não fez absolutamente nada além de expressar
o seu pensamento. Na descompostura que passou em Gilmar poderia, quem sabe, ter
cometido tecnicamente o delito de injúria “contra alguém” — no caso, o colega.
Mas o alvo das suas palavras ficou quieto e não fez nenhuma queixa-crime contra
ele. Fim da história.
Os mais revoltados com a
atuação do STF dizem que os onze ministros estão criando uma ditadura no
Brasil, com a cumplicidade da Câmara dos Deputados e do Senado. Não é isso.
Ditadura, na prática, é bem pior; para começar, prende e mata gente, em vez de
ficar fazendo inquérito. Mas democracia também não é. O que existe aí, na
verdade, é uma aberração de circo, como o bezerro de três cabeças ou a
mulher-gorila — e não apenas por causa dos desvarios do Supremo. Não há, tanto
quanto se possa perceber hoje, uma saída a curto prazo. O que dá para fazer é
torcer para que não piore.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista Oeste, nº 10, 29-5-2020, 10h07
Aberração similar à do TSE que planeja o processo eleitoral, conduz, fiscaliza e quando acusado de falhas, julga-se.
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