sexta-feira, 29 de maio de 2020

O gabinete da censura

Nós, o povo, precisamos lutar contra a espiral de silêncio e contra o medo imposto por poderosos em Brasília


Ana Paula Henkel

A história nos mostra que os Pais Fundadores da América discordavam em vários pontos na estruturação do novo país pós-revolução. Thomas Jefferson, por exemplo, almejava maior independência e autonomia dos Estados, o federalismo que vemos hoje. Já Alexander Hamilton acreditava que o governo federal deveria ser o centro do poder. As discordâncias entre eles eram comuns e talvez por isso, na respeitosa e rica troca de ideias por um bem maior, a nação mais livre do mundo tenha se formado sobre pilares sólidos.

Mas havia um ponto na formatação do que seria vital na nova nação que era defendido por todos eles. A absoluta e irrestrita liberdade de se expressar. A Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos protege a liberdade de expressão, religião e imprensa. Também protege o direito a protestos pacíficos e a peticionar ao governo. A emenda foi adotada em 1791, juntamente com outras nove emendas que compõem a Declaração de Direitos (Bill of Rights), um documento escrito que protege exatamente as liberdades civis. A emenda, com quase 230 anos e uma das mais protegidas até hoje, enuncia: “O Congresso não fará nenhuma lei a respeito de um estabelecimento de religião ou proibindo o livre exercício de religiões; ou abreviar a liberdade de expressão ou de imprensa; ou o direito do povo de se reunir pacificamente e de pedir ao governo uma reparação de queixas”.

Benjamin Franklin, um dos Pais Fundadores, escrevia constantemente em seus artigos que a liberdade de expressão é o principal pilar de um governo livre. E, quando esse pilar é removido, a constituição de uma sociedade livre é dissolvida e a tirania é erguida em suas ruínas. Ele ainda acrescentava: “Se todas as impressoras estivessem determinadas a não imprimir nada até terem certeza de que não ofenderiam ninguém, haveria muito pouco para impressão”.

As lições da Câmara de Estrela, uma corte que eliminou a equidade da Justiça

Nesta semana, no Brasil, 29 pessoas tiveram seus celulares e computadores apreendidos em uma operação ligada ao bizarro inquérito de Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal. Toffoli autorizou a investigação de uma suposta rede de notícias falsas, baseando-se em críticas ao tribunal superior nas mídias sociais no ano passado. O inquérito, conduzido em sigilo pela própria Corte e sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, excluiu totalmente a participação do Ministério Público nas investigações e se tornou alvo de críticas não só de procuradores, mas também de membros do Executivo e do Legislativo, que temem uma concentração excessiva de poder nas mãos do Supremo.

Uma coisa é reconhecermos que exista militância nas redes sociais, orgânica ou comandada, e em todas as esferas ideológicas no cenário político, atualmente tomado pela animosidade de inflamados grupos partidários. Outra coisa é censurar, perseguir e difamar pessoas que vêm expondo suas opiniões, em grupos ou individualmente, contra o governo, instituições e membros do Legislativo, Executivo ou Judiciário como figuras públicas.

Em 1487, o rei Henrique VII criou a Câmara de Estrela (Star Chamber) com o objetivo de ser um instrumento do monarca para ajudar na prerrogativa real de administrar a Justiça em casos não remediáveis nos tribunais regulares. Originalmente, ela colaborou em alguns assuntos administrativos. Na década de 1530, transformou-se em um tribunal em sua essência, aliviando o rei do ônus de ouvir casos e reclamações pessoalmente e tornando-se uma corte de ações.

Durante os séculos 16 e 17, a Câmara de Estrela tornou-se uma ferramenta útil para lidar com casos que envolviam membros da aristocracia que frequentemente desafiavam a autoridade dos tribunais regulares. Além disso, foi durante esse período que o tribunal adquiriu jurisdição criminal, ouvindo casos sobre questões relacionadas à segurança do reino, ações criminais, conspiração e falsificação. Na década de 1630, sob a condução do arcebispo William Laud, a corte converteu-se num instrumento de opressão real, punindo dissidentes religiosos e políticos. E, embora não pudesse impor a pena de morte, influenciava a condução dos processos antes da execução daqueles considerados culpados. A Câmara havia transformado o critério tradicional da equidade em um julgamento numa completa desconsideração das leis.

Uma corte cheia de soberba e que anda de mãos dadas com o autoritarismo

No uso moderno, os órgãos judiciais ou administrativos com decisões rigorosas, arbitrárias e processos secretos às vezes são chamados de “câmaras de estrela”. O termo passou a designar qualquer tribunal opressivo que dita as próprias leis, muitas vezes sendo a vítima, o acusador, o investigador e o julgador ao mesmo tempo. O atual conceito constitucional de “devido processo da lei” é em parte uma reação ao uso arbitrário do poder judicial exibido pela Câmara de Estrela no passado.

Parece familiar? Cortes desvirtuadas que são constituídas para salvaguardar constituições e proteger o império da lei deveriam ficar na era medieval. Sobre a nossa corte suprema, não de estrela, mas de estrelas que adoram lagostas e vinhos importados, ela não flerta apenas — e constantemente — com a mordaça à real liberdade de expressão. Ela anda de mãos dadas com o autoritarismo e a soberba em achar que uma corte, por ser suprema, não precisa andar nos trilhos de suas esferas constitucionais, podendo impunemente extrapolar suas prerrogativas e ferir nossa democracia.

Os homens que estudaram incansavelmente sistemas e falhas de governos no passado, antes de estabelecerem as bases de uma das nações mais livres do mundo, foram categóricos ao destacar a importância da liberdade de expressão de seus cidadãos e o respeito aos limites de cada poder. Benjamin Franklin não se cansava de reiterar a importância disso: “Repúblicas e monarquias limitadas derivam sua força e vigor de um exame popular para a ação dos magistrados”. Verdade, devido processo, evidência, direitos do acusado: todos são deixados de lado na busca dessa agenda política que tomou conta de nossa corte suprema.

O satirista romano Juvenal, em uma passagem famosa de sua obra, perguntou: “Quem vigiará os vigias?”. Busco a resposta na mesma fonte sólida que demonstra, há 230 anos, o verdadeiro apreço pela liberdade, a Constituição americana e suas três primeiras palavras: “We the People”. Nós, o Povo. É preciso lutar contra a espiral do silêncio e contra o medo imposto por poderosos em Brasília. Nós, o Povo, estamos no comando. Nós, o Povo, temos o leme nas mãos. E eles precisam saber disso todos os dias.

Não podemos aceitar ser uma sociedade meio escrava e meio livre, amarrada a meias verdades ou autorizando agentes governamentais, mesmo que veladamente, a escolher o que pode ser dito ou não, o que pode ser ouvido ou não. A liberdade não é um luxo que podemos desfrutar quando atingirmos segurança e sólida prosperidade. A liberdade antecede a tudo isso. Sem ela, não podemos ter segurança nem prosperidade.
Título e Texto: Ana Paula Henkel, revista Oeste, 29-5-2020, 10h07

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