Nós, o povo, precisamos lutar contra a
espiral de silêncio e contra o medo imposto por poderosos em Brasília
Ana Paula Henkel
A história nos mostra que os
Pais Fundadores da América discordavam em vários pontos na estruturação do novo
país pós-revolução. Thomas Jefferson, por exemplo, almejava maior independência
e autonomia dos Estados, o federalismo que vemos hoje. Já Alexander Hamilton
acreditava que o governo federal deveria ser o centro do poder. As
discordâncias entre eles eram comuns e talvez por isso, na respeitosa e rica
troca de ideias por um bem maior, a nação mais livre do mundo tenha se formado
sobre pilares sólidos.
Mas havia um ponto na
formatação do que seria vital na nova nação que era defendido por todos eles. A
absoluta e irrestrita liberdade de se expressar. A Primeira Emenda à
Constituição dos Estados Unidos protege a liberdade de expressão, religião e
imprensa. Também protege o direito a protestos pacíficos e a peticionar ao
governo. A emenda foi adotada em 1791, juntamente com outras nove emendas que
compõem a Declaração de Direitos (Bill of Rights), um documento escrito
que protege exatamente as liberdades civis. A emenda, com quase 230 anos e uma
das mais protegidas até hoje, enuncia: “O Congresso não fará nenhuma lei a
respeito de um estabelecimento de religião ou proibindo o livre exercício de
religiões; ou abreviar a liberdade de expressão ou de imprensa; ou o direito do
povo de se reunir pacificamente e de pedir ao governo uma reparação de
queixas”.
Benjamin Franklin, um dos Pais
Fundadores, escrevia constantemente em seus artigos que a liberdade de
expressão é o principal pilar de um governo livre. E, quando esse pilar é
removido, a constituição de uma sociedade livre é dissolvida e a tirania é
erguida em suas ruínas. Ele ainda acrescentava: “Se todas as impressoras
estivessem determinadas a não imprimir nada até terem certeza de que não
ofenderiam ninguém, haveria muito pouco para impressão”.
As lições da Câmara
de Estrela, uma corte que eliminou a equidade da Justiça
Nesta semana, no Brasil, 29
pessoas tiveram seus celulares e computadores apreendidos em uma operação
ligada ao bizarro inquérito de Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal
Federal. Toffoli autorizou a investigação de uma suposta rede de notícias
falsas, baseando-se em críticas ao tribunal superior nas mídias sociais no ano
passado. O inquérito, conduzido em sigilo pela própria Corte e sob a relatoria
do ministro Alexandre de Moraes, excluiu totalmente a participação do
Ministério Público nas investigações e se tornou alvo de críticas não só de
procuradores, mas também de membros do Executivo e do Legislativo, que temem
uma concentração excessiva de poder nas mãos do Supremo.
Uma coisa é reconhecermos que
exista militância nas redes sociais, orgânica ou comandada, e em todas as
esferas ideológicas no cenário político, atualmente tomado pela animosidade de
inflamados grupos partidários. Outra coisa é censurar, perseguir e difamar
pessoas que vêm expondo suas opiniões, em grupos ou individualmente, contra o
governo, instituições e membros do Legislativo, Executivo ou Judiciário como
figuras públicas.
Em 1487, o rei Henrique VII
criou a Câmara de Estrela (Star Chamber) com o objetivo de ser um
instrumento do monarca para ajudar na prerrogativa real de administrar a Justiça
em casos não remediáveis nos tribunais regulares. Originalmente, ela colaborou
em alguns assuntos administrativos. Na década de 1530, transformou-se em um
tribunal em sua essência, aliviando o rei do ônus de ouvir casos e reclamações
pessoalmente e tornando-se uma corte de ações.
Durante os séculos 16 e 17, a
Câmara de Estrela tornou-se uma ferramenta útil para lidar com casos que
envolviam membros da aristocracia que frequentemente desafiavam a autoridade
dos tribunais regulares. Além disso, foi durante esse período que o tribunal
adquiriu jurisdição criminal, ouvindo casos sobre questões relacionadas à
segurança do reino, ações criminais, conspiração e falsificação. Na década de
1630, sob a condução do arcebispo William Laud, a corte converteu-se num instrumento
de opressão real, punindo dissidentes religiosos e políticos. E, embora não
pudesse impor a pena de morte, influenciava a condução dos processos antes da
execução daqueles considerados culpados. A Câmara havia transformado o critério
tradicional da equidade em um julgamento numa completa desconsideração das
leis.
Uma corte cheia de
soberba e que anda de mãos dadas com o autoritarismo
No uso moderno, os órgãos
judiciais ou administrativos com decisões rigorosas, arbitrárias e processos
secretos às vezes são chamados de “câmaras de estrela”. O termo passou a
designar qualquer tribunal opressivo que dita as próprias leis, muitas vezes
sendo a vítima, o acusador, o investigador e o julgador ao mesmo tempo. O atual
conceito constitucional de “devido processo da lei” é em parte uma reação ao
uso arbitrário do poder judicial exibido pela Câmara de Estrela no passado.
Parece familiar? Cortes
desvirtuadas que são constituídas para salvaguardar constituições e proteger o
império da lei deveriam ficar na era medieval. Sobre a nossa corte suprema, não
de estrela, mas de estrelas que adoram lagostas e vinhos importados, ela não
flerta apenas — e constantemente — com a mordaça à real liberdade de expressão.
Ela anda de mãos dadas com o autoritarismo e a soberba em achar que uma corte,
por ser suprema, não precisa andar nos trilhos de suas esferas constitucionais,
podendo impunemente extrapolar suas prerrogativas e ferir nossa democracia.
Os homens que estudaram
incansavelmente sistemas e falhas de governos no passado, antes de
estabelecerem as bases de uma das nações mais livres do mundo, foram
categóricos ao destacar a importância da liberdade de expressão de seus
cidadãos e o respeito aos limites de cada poder. Benjamin Franklin não se
cansava de reiterar a importância disso: “Repúblicas e monarquias limitadas
derivam sua força e vigor de um exame popular para a ação dos magistrados”.
Verdade, devido processo, evidência, direitos do acusado: todos são deixados de
lado na busca dessa agenda política que tomou conta de nossa corte suprema.
O satirista romano Juvenal, em
uma passagem famosa de sua obra, perguntou: “Quem vigiará os vigias?”. Busco a
resposta na mesma fonte sólida que demonstra, há 230 anos, o verdadeiro apreço
pela liberdade, a Constituição americana e suas três primeiras palavras: “We
the People”. Nós, o Povo. É preciso lutar contra a espiral do silêncio e
contra o medo imposto por poderosos em Brasília. Nós, o Povo, estamos no
comando. Nós, o Povo, temos o leme nas mãos. E eles precisam saber disso todos
os dias.
Não podemos aceitar ser uma
sociedade meio escrava e meio livre, amarrada a meias verdades ou autorizando
agentes governamentais, mesmo que veladamente, a escolher o que pode ser dito
ou não, o que pode ser ouvido ou não. A liberdade não é um luxo que podemos
desfrutar quando atingirmos segurança e sólida prosperidade. A liberdade
antecede a tudo isso. Sem ela, não podemos ter segurança nem prosperidade.
Título e Texto: Ana Paula
Henkel, revista Oeste, 29-5-2020, 10h07
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