quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Castigo exemplar

Rafael Nogueira

Desde 2013 o Brasil vive um mal-estar persistente com a classe política. Impeachment e arranjos de bastidor foram aparecendo como paliativos que não curam. Derrubou-se Dilma, emendou-se Temer, e a sensação era a mesma: o país seguia com a ferida aberta, agora com as ruas cientes da própria voz.

É nesse cenário que surge Bolsonaro, não como causa, mas como síntese. Ex-militar paraquedista, convertido em deputado folclórico de gabinete modesto, com retórica de boteco, ele sempre falou a língua daquilo que chamavam, com certo desprezo sociológico, de “povão”. Nasceu o “Mito” não de um projeto publicitário milimetricamente desenhado, como o Lula de 2003, mas de um improviso popular. O rótulo emergiu como fenômeno espontâneo de uma maioria silenciosa pedindo alguém que a representasse, ainda que de forma imperfeita. Sem essa energia acumulada, 2018 teria sido apenas mais uma eleição tediosa entre gerentes do mesmo condomínio.

Escrevo como conservador que acompanhou a nova direita desde sua infância: sabíamos que éramos jovens demais para a Presidência, e mesmo assim não houve como recusar a ocasião. A alternativa era devolver o país à esquerda que normaliza o crime, flerta com ditaduras amigas e carimba qualquer tentativa de direita consequente como “fascismo”. A direita bem-comportada, polida, desinfetada e perfeitamente inofensiva, só existe porque alguém, antes, apanhou em seu lugar. Foi Bolsonaro que entrou no ringue. E sangrou de verdade numa tentativa de assassinato ainda não convincentemente esclarecido.

No poder, Bolsonaro encontrou o que sempre encontra quem se recusa a curvar-se aos poderes informais do país. Não constam da Constituição, mas são muito reais: hostilidade sistemática, Congresso indócil, Judiciário expansivo, imprensa em modo campanha permanente, elite social que o tratava como invasor de condomínio. Ainda assim, em meio à pancadaria institucional, merece registro que a criminalidade violenta começou a cair de forma consistente, pela primeira vez em décadas. Entre 2019 e 2022, as taxas de homicídio recuaram cerca de 30%, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, resultado de endurecimento deliberado, fortalecimento das polícias, combate mais firme ao crime organizado e de uma imagem simbólica de intolerância ao banditismo, oposta ao clima “paz e amor” tão conveniente às facções.

Na pandemia, apesar do palavrório desastrado, o estrago econômico foi menor que o de vizinhos latino-americanos, e a recuperação veio rápido. O auxílio emergencial segurou a corda para milhões que, de outra forma, teriam caído no abismo. O PIB brasileiro contraiu cerca de 3,3% em 2020, enquanto a Argentina recuou 9,9% e o Peru 11%; em 2021, o Brasil cresceu por volta de 5%, enquanto outros ainda cambaleavam, segundo o FMI. São números que não frequentam colunas e editoriais, mas que não podem ser ignorados.

Também pouco se fala que a eleição de 2022 ocorreu sob censura de conteúdos, desmonetizações, perfis derrubados, temas proibidos, voto de cabresto em regiões dominadas pelo crime, decisões judiciais que delimitavam o que podia ou não ser dito em campanha. À luz desse contexto, foi qualquer coisa, menos uma disputa equilibrada. Ainda assim, com o campo inclinado contra si, Bolsonaro recebeu mais votos do que em 2018. Perdeu o cargo por muito pouco, mas ampliou o contingente de brasileiros que se descobrem politicamente à direita.

Veio o 8 de janeiro que, segundo a leitura mais severa, consistiu em vandalismo e irresponsabilidade. A reação do sistema, porém, foi de outra ordem: prisões preventivas que se arrastam há mais de dois anos, penas desproporcionais para delitos patrimoniais, perseguição a figuras secundárias, entre idosos, trabalhadores, gente que mal entrou nos prédios. Aos poucos, o conjunto adquire contornos de um regime de exceção disfarçado de zelo democrático. E Bolsonaro, cada vez mais doente e fragilizado, converteu-se em alvo simbólico. Já não se trata apenas de punir um homem, mas de enviar um recado a seus milhões de eleitores, por que não, metade do Brasil: quem ousar desafiar os autoproclamados donos da democracia terá a vida destruída.

A história brasileira conhece esse método. A diferença está apenas na roupagem jurídica. O que antes era forca em praça pública hoje é inelegibilidade decretada, conta bancária bloqueada, passaporte apreendido, liberdade condicionada. O poder não precisa mais matar. Humilha publicamente, isola institucionalmente, destrói simbolicamente. Só que com mais papelada. A democracia, descobrimos, pode ser tão implacável quanto a tirania.

Sófocles avisou em Édipo Rei que ninguém deve ser chamado de feliz antes do fim da vida. Bolsonaro ainda está escrevendo sua biografia. Lula também. A roda da fortuna ainda vai girar mais e mais, e talvez os cientistas políticos ainda errem muito. Até aqui, porém, a maior comédia brasileira não está nas massas que votaram num ou noutro, e sim em boa parte da academia e da imprensa que, em coro, garantiu que Bolsonaro jamais seria eleito e abraçou Lula sem calcular os riscos econômicos e a companhia de ditaduras amigas.

Resta uma nota final. Chama a atenção a postura de Flávio Bolsonaro, o primogênito. Firme, articulado, menos inflamável, ocupa, pouco a pouco, o papel de guardião do legado paterno. A política brasileira sempre foi dinástica, ainda que envergonhada disso. Mudam os sobrenomes, preserva-se o instinto de família. Se couber a ele carregar o estandarte, não vou me surpreender. Se for mesmo o caso, terá meu voto. Não em nome de um mito infalível, mas da recusa em voltar ao silêncio de antes de 2013.

Título e Texto: Rafael Nogueira, O Dia, 26-11-2025

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