Rafael Nogueira
Desde 2013 o Brasil vive um
mal-estar persistente com a classe política. Impeachment e arranjos de bastidor
foram aparecendo como paliativos que não curam. Derrubou-se Dilma, emendou-se
Temer, e a sensação era a mesma: o país seguia com a ferida aberta, agora com
as ruas cientes da própria voz.
É nesse cenário que surge
Bolsonaro, não como causa, mas como síntese. Ex-militar paraquedista,
convertido em deputado folclórico de gabinete modesto, com retórica de boteco,
ele sempre falou a língua daquilo que chamavam, com certo desprezo sociológico,
de “povão”. Nasceu o “Mito” não de um projeto publicitário milimetricamente
desenhado, como o Lula de 2003, mas de um improviso popular. O rótulo emergiu
como fenômeno espontâneo de uma maioria silenciosa pedindo alguém que a
representasse, ainda que de forma imperfeita. Sem essa energia acumulada, 2018
teria sido apenas mais uma eleição tediosa entre gerentes do mesmo condomínio.
Escrevo como conservador que
acompanhou a nova direita desde sua infância: sabíamos que éramos jovens demais
para a Presidência, e mesmo assim não houve como recusar a ocasião. A
alternativa era devolver o país à esquerda que normaliza o crime, flerta com
ditaduras amigas e carimba qualquer tentativa de direita consequente como
“fascismo”. A direita bem-comportada, polida, desinfetada e perfeitamente
inofensiva, só existe porque alguém, antes, apanhou em seu lugar. Foi Bolsonaro
que entrou no ringue. E sangrou de verdade numa tentativa de assassinato ainda
não convincentemente esclarecido.
No poder, Bolsonaro encontrou o que sempre encontra quem se recusa a curvar-se aos poderes informais do país. Não constam da Constituição, mas são muito reais: hostilidade sistemática, Congresso indócil, Judiciário expansivo, imprensa em modo campanha permanente, elite social que o tratava como invasor de condomínio. Ainda assim, em meio à pancadaria institucional, merece registro que a criminalidade violenta começou a cair de forma consistente, pela primeira vez em décadas. Entre 2019 e 2022, as taxas de homicídio recuaram cerca de 30%, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, resultado de endurecimento deliberado, fortalecimento das polícias, combate mais firme ao crime organizado e de uma imagem simbólica de intolerância ao banditismo, oposta ao clima “paz e amor” tão conveniente às facções.
Na pandemia, apesar do
palavrório desastrado, o estrago econômico foi menor que o de vizinhos
latino-americanos, e a recuperação veio rápido. O auxílio emergencial segurou a
corda para milhões que, de outra forma, teriam caído no abismo. O PIB
brasileiro contraiu cerca de 3,3% em 2020, enquanto a Argentina recuou 9,9% e o
Peru 11%; em 2021, o Brasil cresceu por volta de 5%, enquanto outros ainda
cambaleavam, segundo o FMI. São números que não frequentam colunas e
editoriais, mas que não podem ser ignorados.
Também pouco se fala que a
eleição de 2022 ocorreu sob censura de conteúdos, desmonetizações, perfis
derrubados, temas proibidos, voto de cabresto em regiões dominadas pelo crime,
decisões judiciais que delimitavam o que podia ou não ser dito em campanha. À
luz desse contexto, foi qualquer coisa, menos uma disputa equilibrada. Ainda
assim, com o campo inclinado contra si, Bolsonaro recebeu mais votos do que em
2018. Perdeu o cargo por muito pouco, mas ampliou o contingente de brasileiros
que se descobrem politicamente à direita.
Veio o 8 de janeiro que,
segundo a leitura mais severa, consistiu em vandalismo e irresponsabilidade. A
reação do sistema, porém, foi de outra ordem: prisões preventivas que se
arrastam há mais de dois anos, penas desproporcionais para delitos patrimoniais,
perseguição a figuras secundárias, entre idosos, trabalhadores, gente que mal
entrou nos prédios. Aos poucos, o conjunto adquire contornos de um regime de
exceção disfarçado de zelo democrático. E Bolsonaro, cada vez mais doente e
fragilizado, converteu-se em alvo simbólico. Já não se trata apenas de punir um
homem, mas de enviar um recado a seus milhões de eleitores, por que não, metade
do Brasil: quem ousar desafiar os autoproclamados donos da democracia terá a
vida destruída.
A história brasileira conhece
esse método. A diferença está apenas na roupagem jurídica. O que antes era
forca em praça pública hoje é inelegibilidade decretada, conta bancária
bloqueada, passaporte apreendido, liberdade condicionada. O poder não precisa
mais matar. Humilha publicamente, isola institucionalmente, destrói
simbolicamente. Só que com mais papelada. A democracia, descobrimos, pode ser
tão implacável quanto a tirania.
Sófocles avisou em Édipo Rei
que ninguém deve ser chamado de feliz antes do fim da vida. Bolsonaro ainda
está escrevendo sua biografia. Lula também. A roda da fortuna ainda vai girar
mais e mais, e talvez os cientistas políticos ainda errem muito. Até aqui,
porém, a maior comédia brasileira não está nas massas que votaram num ou
noutro, e sim em boa parte da academia e da imprensa que, em coro, garantiu que
Bolsonaro jamais seria eleito e abraçou Lula sem calcular os riscos econômicos
e a companhia de ditaduras amigas.
Resta uma nota final. Chama a
atenção a postura de Flávio Bolsonaro, o primogênito. Firme, articulado, menos
inflamável, ocupa, pouco a pouco, o papel de guardião do legado paterno. A
política brasileira sempre foi dinástica, ainda que envergonhada disso. Mudam
os sobrenomes, preserva-se o instinto de família. Se couber a ele carregar o
estandarte, não vou me surpreender. Se for mesmo o caso, terá meu voto. Não em
nome de um mito infalível, mas da recusa em voltar ao silêncio de antes de
2013.
Título e Texto: Rafael
Nogueira, O Dia, 26-11-2025

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