Diogo Schelp
Não, não há amparo nos fatos a
teoria de que o governo chinês desenvolveu o novo coronavírus em laboratório
para abalar a economia mundial e dar um salto hegemônico. Dito isso, é preciso
reconhecer que o Estado chinês está engajado em uma guerra de propaganda global
para eximir-se de responsabilidade na propagação da doença. E, nessa guerra de
propaganda, tenta calar o mundo como costuma calar seus próprios cidadãos.
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Cartaz alerta sobre medidas para proteção contra infecção
por coronavírus em Pequim, 6 de fevereiro de 2020. Foto: Greg Baker/AFP
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O exemplo mais próximo dos
brasileiros foi a reação destemperada do embaixador da China no Brasil, Yang
Yanning, a uma crítica feita ao governo de seu país pelo deputado federal
Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), comparando a pandemia do coronavírus ao desastre
nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, no período soviético. Além de exigir
retratação, Yang compartilhou — e depois apagou — um tuíte que ataca a família
Bolsonaro como um todo.
Se fosse um deputado qualquer,
as críticas de Eduardo Bolsonaro à China teriam outro peso. Ele sabe, e todos
sabem, porém, que o que ele diz é entendido como o pensamento uníssono dos
Bolsonaro. E, deve-se reconhecer, poderia ter evitado todo esse imbróglio, se
quisesse. O deputado foi inconsequente, não há dúvida.
"Mas, se estivesse
interessado em manter a boa relação diplomática com as autoridades brasileiras,
o embaixador Yang se agarraria ao fato de que oficialmente Eduardo Bolsonaro
não fala em nome do Poder Executivo, como bem lembrou o vice-presidente
Hamilton Mourão. Era a desculpa perfeita para ignorar a provocação.
A escolha do embaixador Yang
de se prender ao outro fato, o de que Eduardo Bolsonaro é filho do presidente e
pensa como ele, explica-se pela campanha global que o governo chinês está
fazendo para calar as críticas à maneira como lidou com a explosão da epidemia.
As ações de um embaixador,
ainda mais de um diplomata submetido à rígida disciplina do governo chinês, não
têm nada de aleatórias e devem ser entendidas como parte de uma estratégia mais
ampla do país que ele representa. Em outras palavras, o destempero do
embaixador Yang tem a aprovação de seus superiores em Pequim.
Se tivesse compromisso com o
bem-estar de sua própria população e não com a finalidade única de garantir a
sobrevivência do Partido Comunista Chinês como detentor único do poder, Pequim
teria sido mais transparente e teria adotado medidas mais imediatas na origem
da epidemia. Mas governos de Estados totalitários são assim: escondem
acontecimentos negativos até que não seja mais possível, pela simples razão de
que não podem ser punidos nas urnas ou por outras formas de livre participação
política.
Alguns fatos rápidos sobre a
tentativa de acobertamento chinês da epidemia:
As primeiras infecções de
seres humanos aconteceram provavelmente em novembro de 2019 na província de
Hubei. Os primeiros casos foram descobertos no início de dezembro. Já no final
daquele mês, o governo de Taiwan suspendeu voos vindos da região afetada. O
governo chinês, porém, nada fez para isolar a área. Se o tivesse feito, teria
evitado que o vírus se espalhasse para o resto do país e para o mundo. Quando
finalmente adotou a medida, 5 milhões de pessoas já haviam deixado a região de
origem do vírus, levando-o para outros lugares;
A razão pela demora foi uma
só: o governo chinês não queria admitir a gravidade do surto. As autoridades só
reconheceram que havia contaminação entre seres humanos mais para o final de
janeiro, quando isso já era anunciado como fato comprovado pela comunidade
científica mundial;
Ao longo de janeiro, apesar
dos repetidos apelos internos que incluiu uma greve de cinco dias de agentes de
saúde, Hong Kong, um enclave semiautônomo cujo governo é um fantoche de Pequim,
recusou-se a fechar as fronteiras com a China continental, o que poderia ter
evitado a contaminação local;
Durante todo o período inicial
da epidemia, o aparato de censura do governo chinês tratou de limpar as
referências à doença feitas pelos usuários da rede social local WeChat (Google,
Facebook e Twitter são banidos na China);
Quem tentou alertar o mundo
foi punido pelas autoridades. É o caso do oftalmologista Li Wenliang, que foi
preso ao divulgar o surto no início de janeiro e obrigado a assinar uma carta
de retratação. (Pois é, a ditadura chinesa tem essa obsessão em forçar os
outros a "retirar o que disse".) Só na semana passada, para conter a
revolta da população, que vê Li como herói (com covid-19, ele morreu em
fevereiro), o governo chinês pediu desculpas à família e mandou
"investigar" os policiais que puniram Li. Puro jogo de cena;
As autoridades chinesas vêm
espalhando notícias falsas com o duplo objetivo de apresentar sua reação à
epidemia como um modelo de eficiência e rapidez e de se eximir de
responsabilidade. Foram espalhadas fotos de um suposto hospital que o governo
teria construído em questão de dias. Descobriu-se, depois, que eram fotos
antigas de um conjunto residencial pré-fabricado.
Outro exemplo de fake news foi
a de que quem levou o vírus para China foram militares americanos. Essa teoria
fabricada, que começou a circular primeiro em sites financiados pela Rússia,
foi replicada nas redes sociais por altas autoridades chinesas, como Zhao
Lijian, vice-diretor do Departamento de Informação do Ministério das Relações
Exteriores chinês.
Pois bem. O esforço de Pequim
para ocultar os fatos não se restringe a uma atuação doméstica.
Não é de hoje que o governo
chinês vem expandindo a tentativa de calar vozes dissonantes ou críticas para
além de suas fronteiras. Há duas razões simples para isso: a primeira é que
informações negativas que circulam no exterior em algum momento chegarão aos
ouvidos e olhos dos cidadãos chineses; a segunda é que, conforme cresce a
ambição da China de se tornar uma força hegemônica global, aumenta também a
preocupação com a imagem que o país projeta além de suas fronteiras.
Nesse contexto se inserem, por
exemplo, os esforços para dificultar ao máximo o trabalho de correspondentes
estrangeiros na China. Como não existe imprensa independente dentro do país, a
presença desses profissionais é essencial para que o mundo — e, em certa
medida, os próprios chineses — tenham informações mais confiáveis do que
acontece por lá.
Sempre que as publicações
estrangeiras divulgam reportagens que não agradam ao governo chinês, este trata
de expulsar correspondentes ou de negar a concessão de vistos de trabalho.
Em fevereiro, o governo chinês
baniu três repórteres do Wall Street Journal, porque o jornal americano havia
publicado um artigo sobre o coronavírus com o título "A China é o
verdadeiro homem doente da Ásia". Os jornalistas expulsos sequer eram
autores do texto.
Na semana passada, foi a vez
de o governo chinês expulsar jornalistas do New York Times, do Washington Post
e, mais uma vez, do Wall Street Journal. Pequim usou como desculpa a
necessidade de retaliar medidas adotadas pelo presidente americano Donald Trump
para limitar a atuação de estatais chinesas de comunicação nos Estados Unidos.
Mas a verdade é que as expulsões estão mais ligadas à necessidade do governo
chinês de conter reportagens negativas relacionadas à epidemia. O New York
Times, por exemplo, teve papel essencial em divulgar a história do médico Li
Wenliang, chegando a entrevistá-lo em janeiro, quando estava hospitalizado com
coronavírus.
No momento crítico que o mundo
vive hoje, é evidente que o ideal seria evitar confrontos diplomáticos e focar
na cooperação internacional contra a pandemia. Mas a realidade é que, como já
ficou mais do que demonstrado, essa não é a maior preocupação do governo da
China — mais interessado em resguardar sua imagem, calando o mundo como cala
seus cidadãos.
Título e Texto: Diogo
Schelp, Gazeta do Povo, 22-3-2020, 17h33
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