sábado, 14 de junho de 2025

Não foram os portugueses que inauguraram “o tráfico negreiro intercontinental em larga escala”

Não repita nem espalhe aos quatro ventos informações falsas. Já bastam as que a esquerda woke injeta

João Pedro Marques

Numa passagem do seu discurso no passado dia 10 de Junho, a escritora Lídia Jorge acentuou, adequadamente, as múltiplas origens do povo português. Disse, a esse respeito, o seguinte: “Consta que em pleno século XVII 10% da população portuguesa teria origem africana. Essa população não nos tinha invadido. Os portugueses os tinham trazido arrastados até aqui, e nos miscigenámos. O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro. A falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós é uma soma do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou”.

Passemos por cima do dado percentual errado — Lídia Jorge terá eventualmente confundido população portuguesa no século XVII com população de Lisboa no século XVI. Segundo Arlindo Manuel Caldeira a percentagem de escravos e negros livres, em Portugal, situar-se-ia entre os 3 e os 4%. Passemos, também, por cima de um curioso esquecimento relativamente aos árabes, isto é, aos asiáticos, que — esses, sim — nos invadiram, e muito antes do século XVII já constituíam parte significativa da população portuguesa. Somos a soma não apenas do europeu e do africano, mas também do asiático.

Mas tudo isso são detalhes. O que importa acentuar é que a escritora tem razão no resto que afirmou nesta breve passagem do seu discurso. Discurso que provocou reações desencontradas, com o Chega, pela voz de André Ventura, a contestar, e a esquerda a vir para as redes sociais e, quase que imediatamente, para os jornais, a celebrar e a apoiar estas afirmações de Lídia Jorge. Contudo, essa esquerda não terá reparado que está a entrar em forte contradição (a esquerda é muito dada a não se prender com essas minudências). É que, se de facto, nós, portugueses, descendemos dos africanos e dos europeus, dos escravos e dos seus senhores, por que razão é que essa mesma esquerda que rejubila com o discurso de Lídia Jorge, apoia e exige, por outro lado, reparações pela escravatura? Se não somos apenas descendentes dos senhores, mas também daqueles que eles traficavam ou mantinham em escravidão, teremos de pagar reparações a quem? A nós próprios?

Fica a pergunta e passo adiante porque o discurso de Lídia Jorge suscita-me uma segunda questão, bem mais importante. É que numa outra passagem da sua intervenção, a escritora, referindo-se ao local do Algarve em que discursava e mais especificamente à questão dos Descobrimentos versus escravatura. Disse o seguinte:

“No início da Idade Moderna, Lagos e Sagres representaram tanto para Portugal e para a Europa que à sua volta se constituíram mitos que perduram. Sagres passou assim para a História e para a mitologia como lugar simbólico de uma estratégia que mudaria o mundo. Mas existe uma outra perspectiva, como é sabido, e hoje em dia o discurso público que prevalece é sem dúvida sobre o pecado dos Descobrimentos e não sobre a dimensão da sua grandeza transformadora. É verdade que a deslocação coletiva que permitiu estabelecer a ligação por mar entre os vários continentes e o encontro entre povos obedeceu a uma estratégia de submissão e rapto, cujo inventário é um dos temas dolorosos de discussão na atualidade. É preciso sempre sublinhar, para não se deturpar a realidade, que a escravatura é um processo de dominação cruel tão antigo quanto a humanidade, o que sempre se verificou foi diversidade de procedimentos e diferentes graus de intensidade. 

E é indesmentível que os portugueses estiveram envolvidos num novo processo de escravização longo e doloroso. Lagos, precisamente, oferece às populações actuais, a par do lado mágico dos Descobrimentos, também a imagem do seu lado trágico. Falo com o sentido justo da reposição da verdade e do remorso, por aqui se ter inaugurado o tráfico negreiro intercontinental em larga escala, com polos de abastecimento nas costas de África, e assim se ter oferecido um novo modelo de exploração de seres humanos que iria ser replicado e generalizado por outros países europeus até ao final do século XIX. Lagos expõe a memória desse remorso”.

Foto: José Sena Goulão/Lusa

Passemos de novo por cima de erros incompreensíveis, mas persistentes por terem aparentemente ficado calcificados em muitas mentes. É que, de facto, Lídia Jorge, não foram os portugueses que inauguraram “o tráfico negreiro intercontinental em larga escala”. Não repita, por favor, nem espalhe aos quatro ventos, mais informações falsas. Já bastam as que a esquerda woke aqui injeta. O tráfico negreiro de grande dimensão entre continentes foi inaugurado pelos povos de religião muçulmana que já a partir do século VIII traficavam escravos negros — escravas, sobretudo — de África para a Ásia e, depois, para a Europa.

Lídia Jorge afirmou também que “sempre houve quem repudiasse por completo a prática (da escravatura) e o teorizasse”, e que Gomes Eanes de Zurara, que escreveu a Crónica da Guiné, em 1448, e nos deixou uma descrição detalhada da chegada do primeiro grande número de escravos africanos a Lagos, quatro anos antes, seria contra aquela “degradação”. Mas está completamente enganada e a reproduzir, sem ter disso consciência, suponho, uma lengalenga woke que é falsa de cabo a rabo.

Sim, Zurara comovia-se com o espetáculo da partilha e com o afastamento forçado de pais e filhos. Contudo, como qualquer homem do século XV, logo acrescentava que, com o correr do tempo, e uma vez acalmada a dor da separação inicial, os escravos eram socialmente integrados, cristianizando-se, aprendendo os ofícios e acabando até, por vezes, por adquirir a liberdade. Para Zurara, a salvação das almas e a introdução à civilidade cristã legitimavam o acto escravizador e isso ficará claríssimo para quem, em vez de acreditar no que Lídia Jorge disse no seu discurso, ler as palavras do próprio cronista, que são as seguintes: “É assim que onde antes viviam em perdição das almas e dos corpos, (os negros) vinham de todo receber o contrário: das almas enquanto eram pagãos, sem claridade e sem lume de santa Fé; e dos corpos, por viverem assim como bestas, sem alguma ordenança de criaturas razoáveis, que eles não sabiam que era pão nem vinho, nem cobertura de pano, nem alojamento de casa; (…). Ora vede que galardão deve ser o do Infante (D. Henrique) ante a presença do senhor Deus, por trazer assim à verdadeira salvação não somente aquestes, mas outros mui muitos que em esta história ao diante podeis achar!”.

Não, Lídia Jorge, no século XV (e noutros, claro) não houve gente, que eu saiba, a insurgir-se contra o tráfico negreiro. A contestação a esse tráfico e à escravidão só se tornou comum a partir do último terço do século XVIII.

Mas deixando de lado esse e outros erros, o que quero dizer é que não estou certo de que a perspectiva que prevalece entre os meus concidadãos seja a do “pecado dos Descobrimentos”. E também duvido que o seu sentimento dominante seja o do “remorso” pela existência do tráfico e escravidão dos negros. Mas admitindo, por mera hipótese académica, que assim seja, a pergunta que quero fazer a Lídia Jorge e a todos os portugueses é a seguinte: serão essas perspectivas e esse eventual remorso adequados? É que os Descobrimentos tiveram um lado luminoso, positivo, que sucessivas levas de bem pensantes se têm encarregado de denegrir e enterrar. Seria importante que, neste 10 de Junho que passou, Lídia Jorge tivesse dado tanto realce a esse lado, como o que, indo nas modas culturais da atualidade, resolveu dar à trágica história do envolvimento português na escravatura.

Mas talvez Lídia Jorge não saiba, que o remorso a que se refere, já teve o seu tempo, já foi sentido e vivido, no século XIX. Foi nessa época que os ocidentais, entre os quais os portugueses, se deram conta da crueldade e do erro que a escravatura constituía, e decidiram pôr fim.

Em setembro de 2017 escrevi um artigo no Público intitulado “Quantas vezes terá Portugal de pedir desculpa?” em que mostrei, como já mostrara nos meus textos académicos e como outros autores continuam a mostrar, que a partir de 1840, Portugal alinhou decidida e sinceramente no combate ao tráfico de escravos. Por isso, renovo a pergunta a Lídia Jorge e aos portugueses: quantas vezes terá Portugal de pedir desculpa? Não nos bastou o remorso do século XIX? Eu acho que bastou. E acho que continuar com este muro de lamentações em 2025, 150 a 200 anos depois de ele ter sido percorrido e demolido, é não só incompreensível, como flagelante e masoquista.

Título e Texto: João Pedro Marques, Historiador e romancista, Observador, 11-6-2025, 0h20

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