João Pedro Marques
Durante seis anos, o debate
público sobre o envolvimento de Portugal na história da escravatura foi-se
fazendo, e eu suponho que não terão ficado grandes questões por abordar. Tudo
foi esclarecido, julgo, exceto uma acusação que me foi feita há uns anos e a
que não dei importância, na altura. Todavia, ela foi-se mantendo viva e foi
ressurgindo nas criptas do Facebook, e talvez seja altura de lhe responder.
De que sou acusado? Nas
palavras de Fernanda Câncio, eu andaria agora a criticar outros, nomeadamente
pessoas de extrema-esquerda, chamando-lhes “politicamente corretos”,
“flagelantes”, “radicais”, por eles dizerem “exatamente o mesmo” que eu teria
dito no passado.
Mas não é assim. O ponto
nevrálgico e o truque de prestidigitação
está na palavra “exatamente”. É aí que radica o engano e a ilusão. As pessoas
em causa não estão a dizer o mesmo que eu disse anteriormente (ainda que
possam, em certos momentos, estar a usar palavras minhas). Estão a dizer apenas
parte do que eu disse – a parte que convém à sua ideologia – e estão a apagar o
resto, ou a acrescentar coisas da sua lavra.
Ou seja, essas pessoas
segmentam o conhecimento e aproveitam este ou aquele bocado, pondo o
remanescente de parte. No fundo, é a questão da luz e da sombra. Aqueles a quem
chamo “flagelantes” ou “politicamente corretos” omitem totalmente o que faz
sombra, se essa sombra não lhes serve.
Ou então, na circunstância
oposta, omitem tudo o que faz luz. Não conjugam uma coisa com a outra. É como
se fossem um realizador de cinema que só conseguisse fazer filmes às escuras,
ou tão iluminados que ferissem os olhos. Não têm uma fotografia calibrada do
passado e provavelmente também não têm uma fotografia calibrada do presente.
Por isso, e para ir ao assunto em apreço, essas pessoas raramente referem a
existência do tráfico de escravos muçulmano ou intra-africano. E também não
falam do abolicionismo nem o valorizam.
Ou seja, não dizem o que eu disse, nem o que diz qualquer historiador da escravatura que seja rigoroso. Omitem sempre muitíssimas parcelas do saber. É por isso, e não por serem de extrema-esquerda, que o seu discurso é ideológico: escrevem e falam só no que lhes convém, ou que convém às suas causas e agendas políticas.
O discurso assente num
verdadeiro conhecimento histórico não é nem pode ser assim. Explicita, ilustra,
esclarece, não tem o direito de deixar partes de fora porque não agradam ou não
calham bem.
Ora, e para ir ao caso
concreto que me apontam, o que tenho verificado é que vários dos meus
contraditores leram algumas páginas de Os Sons do Silêncio: o Portugal de
Oitocentos e a Abolição do Tráfico de Escravos, um dos oito livros que
escrevi sobre o assunto, e leram-nas não como umaanálise objetiva do que se
passou, mas como um ataque político e ideológico a Portugal. Leram mal, pois o
livro não é e nunca pretendeu ser isso.
Pretendeu ser, isso sim, um
retrato tão fiel quanto possível das atitudes portuguesas face à abolição do
comércio negreiro. Aliás, há, nomeadamente no seu capítulo 5, uma avaliação
positiva da forma como, a partir de 1840, o país se empenhou no combate a esse
comércio. Mas é claro que, nestes três anos de debate, as pessoas a que chamo
“flagelantes” nunca referiram nada desse capítulo 5, e provavelmente nem o
leram. É por isso que não dizem exatamente o mesmo que eu digo, muito longe
disso, e a acusação de que eu me contradiria é falsa.
Claro que a montante dessa
acusação há uma outra, mais importante, mas igualmente falsa: a de que eu teria
renegado as minhas próprias teorias e interpretações. O objetivo dos que me
acusam de ter feito um flic-flac intelectual é o de estabelecer uma distinção,
ou melhor, um corte, entre o João Pedro Marques historiador de há 20 ou 30 anos
e o que escreve nos jornais nestes anos mais recentes.
Se provassem ou, pelo menos,
sugerissem fortemente que o historiador de hoje já não é o de antigamente,
desvalorizariam e enfraqueceriam as minhas opiniões atuais que seriam vistas
como uma degenerescência. Por isso a insistência na tecla da minha
descredibilização, uma tecla que foi sendo tocada por várias personagens.
Os críticos mais primários têm
posto a correr ataques ad hominem nas redes sociais. É sobretudo aí que,
a par de um sortido de mentiras, dizem que eu estou desatualizada, que o meu
trabalho já não é considerado pelos pares, que já não sou historiador, mas sim
romancista Essas pessoas parecem não perceber que ser romancista não é nenhum
demérito, mas sim uma mais-valia.
Não perceberão, também, que um historiador não perde essa qualidade com a passagem do tempo, não perde validade nem passa de prazo, como os iogurtes, nem pode ser cancelado, ainda que estas figurinhas woke muito desejassem exercer os seus pequenos poderes e tendências estalinistas cancelando-me.
Um historiador vale pela sua
obra, pela pertinência do seu olhar e, também, pela coragem e firmeza com que
defende as suas ideias. Eu continuo a ser citado e referido em obras recentes –
como é, por exemplo, o caso do livro The Cambridge World History of Slavery,
2017, que é, neste momento, a obra máxima nesta área de estudos –, o que diz
muito sobre a minha suposta “desatualização”.
Os críticos mais elaborados
procuram, de lanterna em punho, uma frase, uma expressão, uma fragilidade, um
erro, uma ponta por onde pegar nos meus textos antigos, na esperança de
conseguir virá-los contra mim. Eu percebo estas pessoas. Quem não tem o cão dos
documentos, dos conhecimentos e dos argumentos sobre este assunto específico
tenta caçar com o gato dos pequenos truques e das artimanhas. Mas não terão
sorte nessa caçada. A minha visão sobre o assunto estabilizou por volta de 2000
e mantém-se a mesma de então para cá, como se verifica por este artigo
que escrevi no Público, logo em 2001.
Eu admirava-me por, uma vez, o Pedro Marques Lopes escrever um texto inteiramente sensato, sem as contorções retóricas em que o verme se especializou. Depois li a meio do texto que o seu autor escreveu "oito livros sobre o assunto" e desconfiei: o único assunto que faria Pedro Marques Lopes dedicar oito livros é a extraordinária opinião que tem sobre a sua pessoa. Em suma, há duas gralhas neste post: onde escreveu "Pedro Marques Lopes", deveria ter escrito "João Pedro Marques". :)
ResponderExcluirCaraca! Fui logo confundir com o PML!!
ExcluirRetificação, a bem da verdade histórica, feita.
Muito obrigado, João Sousa.