Paulo Uebel
A esquerda brasileira é antirracista? Apesar de toda a propaganda — que eles sabem fazer muito bem —, parece que só quando é conveniente. O caso do saneamento no Brasil é a maior prova disso. Agora, a esquerda radical, contrária a qualquer participação privada na melhoria de políticas públicas estruturais, orquestra o desmonte da Lei do Novo Marco do Saneamento e seus decretos regulamentadores. O marco foi sancionado em 2020 para atender os 35 milhões de brasileiros sem acesso à água potável e os 120 milhões sem tratamento de esgoto. A lei define que, até 2033, 99% da população deve ter acesso à água potável e 90% à coleta e tratamento de esgoto. Para atingir a meta urgente, o novo marco reforçou a possibilidade de prestação de serviços pela iniciativa privada. Afinal, o fracasso do saneamento no Brasil é resultado do serviço precário das estatais e da falta de investimentos no setor.
Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo |
Em apenas 2 anos, o Marco do
Saneamento possibilitou a realização de 21 leilões de concessões no setor,
atendendo a cerca de 24 milhões de pessoas em 244 municípios do Norte,
Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste do país, com investimentos estimados em R$ 82,6
bilhões. Os dados foram divulgados em janeiro pela Associação Nacional das
Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon).
Além
de acabar com o modelo de concessão à iniciativa privada, Lula também deve
alterar o papel da Agência Nacional de Águas (ANA).
O saneamento no Brasil começava a sair da era medieval, até que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi eleito presidente novamente. Ainda durante o governo de transição, no final de 2022, o deputado federal Guilherme Boulos (Psol-SP), que fazia parte da equipe, já defendia rever as medidas de privatização e os decretos regulamentadores do Marco do Saneamento, tal como o governo está fazendo agora. Além de acabar com o modelo de concessão à iniciativa privada, Lula também deve alterar o papel da Agência Nacional de Águas (ANA) na regulação do setor de saneamento, tirando os técnicos e passando para agentes políticos cuidarem desse tema tão estratégico para o futuro do país.
Guilherme Boulos é o principal
inimigo do avanço do saneamento no Brasil no governo Lula. Em seu editorial, o Estadão
o descreveu como “um dos grandes menestréis do atraso nessa seara, quase um
lobista a serviço da insalubridade”. Embora possa parecer forte demais, a
definição não poderia ser mais justa. Boulos elenca como “muito prejudicial
o processo de privatização do saneamento”. E ele está errado:
prejudicial mesmo é a falta de saneamento, fruto amargo do fracasso do serviço
estatal.
Os
novos dados divulgados pelo Ranking do Saneamento 2023 revelam também uma desigualdade
regional nos serviços de saneamento.
Outra bandeira da esquerda é o
combate à desigualdade social. Mas parece que eles esquecem disso quando o
assunto é saneamento básico. No Brasil, a renda média da população sem acesso
ao saneamento básico é de R$ 1,5 mil por mês, conforme dados do Trata Brasil. “Em
2016, uma mulher morando em uma residência sem acesso regular à água tratada
recebia em média 3,6% a menos de remuneração que uma mulher que tinha acesso a
esse serviço. Os trabalhadores que residiam em moradias sem acesso ao
saneamento básico receberam 52,4% a menos que aqueles que viviam em residências
com acesso ao saneamento”, esclarece a instituição. Os mais pobres são os
que mais sofrem com a ausência dos serviços de saneamento.
Além disso, os novos dados
divulgados pelo Ranking do Saneamento 2023 do Trata Brasil na última
segunda-feira (20), revelam também uma desigualdade regional nos serviços de
saneamento. A maioria dos 20 piores municípios no ranking fica no Norte e no
Nordeste do Brasil. Já entre as 20 melhores, 8 são do estado de São Paulo e 6
do Paraná. Além disso, ele também mostrou que as 20 melhores cidades investiram
R$ 166,52 por habitante em serviços de saneamento. Enquanto as 20 piores
investiram apenas R$ 55,46, abaixo até da média nacional, de R$ 82 por
habitante em 2021.
Os
mais atingidos com a falta de saneamento no Brasil são os negros e pardos.
E o que o saneamento tem a ver
com o racismo? Os mais atingidos com a falta de saneamento no Brasil são os
negros e pardos. A Síntese de Indicadores Sociais (SIS) do IBGE (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2018 descobriu que 72,1% dos
domicílios em que as pessoas residentes eram principalmente brancas tinham
acesso simultâneo aos serviços de abastecimento de água, esgotamento e coleta
de lixo, enquanto apenas 54,4% das famílias negras tinham o mesmo.
O motivo? A “associação
entre indicadores de moradia e pobreza e da sobrerrepresentação da população
preta ou parda na população pobre”, afirmou o documento. Em razão desse
triste cenário, os negros também são os que mais morrem por Doenças
Relacionadas ao Saneamento Ambiental Inadequado (Drsai). Entre 1996 a 2014,
97.897 negros morreram pelas Drsai, conforme dados do DataSUS.
As Drsai são doenças que
poderiam ser evitadas, ou pelo menos drasticamente reduzidas, se o saneamento
fosse universalizado no Brasil. São doenças como diarreias, febres entéricas,
hepatite a, dengue, chikungunya, febre amarela, leishmanioses (tegumentar e
visceral), filariose linfática, malária, doença de chagas, esquistossomose,
leptospirose, tracoma, conjuntivites, micoses superficiais, helmintíases e
teníases.
Os dados sobre os negros e
pardos sofrerem mais com a falta de saneamento são velhos, não tem como a
esquerda dizer que nunca ouviu falar deles. Mas o desejo de manter privilégios
imorais, atender sindicatos de funcionários públicos, preservar a influência de
partidos de esquerda na gestão das estatais, controlar polpudas verbas de
publicidade e garantir a nomeação de companheiros como cabos eleitorais se
sobrepõe às necessidades da população de cor que eles tanto dizem defender. A
narrativa é mais importante que a realidade.
A
falta de investimentos no setor era justamente o que o Marco do Saneamento
estava tentando resolver.
E, é claro, não são apenas os
negros que sofrem com a falta de saneamento no Brasil. Ao todo, 135 mil pessoas
morreram pela falta de saneamento no Brasil entre 2008 e 2019, uma média de
11,2 mil pessoas mortas anualmente. 84 mil pessoas entre esses mortos eram
idosas, grupo que também merece mais atenção no assunto. As Drsai foram
responsáveis por 0,9% de todos os óbitos do país nesse período. Os dados
são do Atlas do Saneamento do IBGE. É uma verdadeira chacina que ocorre,
anualmente, com o incentivo dos radicais de esquerda.
Nessa mesma época, foram
notificados 11,9 milhões de casos de Doenças Relacionadas ao Saneamento
Ambiental Inadequado no Brasil, com 4,9 milhões de internações registradas no
SUS (Sistema Único de Saúde). “A reduzida abrangência da coleta de esgoto
determina que o principal tipo de poluição ou contaminação identificada na
captação de água doce tenha sido exatamente por esgoto sanitário. Uma das
causas é a falta de investimento no setor de saneamento básico, o que
compromete a qualidade da água distribuída e a eficiência da rede de
distribuição, com prejuízos ao meio ambiente e à saúde pública”, disse o
informativo do IBGE.
O
que pode impulsionar esses investimentos é justamente a iniciativa privada, por
meio de privatizações, concessões e parcerias público-privadas (PPPs).
A falta de investimentos no
setor era justamente o que o Marco do Saneamento estava tentando resolver.
Hoje, os investimentos em saneamento no Brasil representam 0,2% do PIB (Produto
Interno Bruto). Para atingir a universalização dos serviços, o investimento
necessário seria de 0,45% do PIB, mais que o dobro que o montante atual,
segundo um texto de Isadora Chansky Cohen e Victor Medeiros na revista Exame.
O que pode impulsionar esses
investimentos é justamente a iniciativa privada, por meio de privatizações,
concessões e parcerias público-privadas (PPPs). “Entre algumas potenciais
vantagens, as parcerias podem aumentar os recursos disponíveis para
investimentos em um cenário em que muitos estados e municípios encontram
dificuldades fiscais para financiar seus investimentos, bem como potencializar
ganhos de eficiência advindos, por exemplo, do correto seguimento do cronograma
das obras, da continuidade do fluxo de recursos de construção e operação, e a
partir da provisão adequada dos serviços”, escrevem Cohen e Medeiros.
Já segundo um estudo elaborado
pela Associação das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e
Esgoto (Abcon), para universalizar os serviços de saneamento até 2033, são
necessários R$ 893,3 bilhões em investimentos. Os investimentos trariam outro
grande benefício aos brasileiros: 1,5 milhão de novos postos de trabalho. Além
da universalização dos serviços e da geração de empregos, um outro estudo, da
Ico Consultoria, onde Cohen é sócia, mostra que teremos outros benefícios como
acréscimo de R$ 11,3 bilhões a R$ 18,24 bilhões na arrecadação e de R$ 92,67
bilhões a R$ 267,4 bilhões no PIB. E até mesmo 11,7 milhões de pessoas poderiam
sair da pobreza.
Perpetuar
a falta de água e esgoto tratados, portanto, é uma verdadeira maldade com
pobres, negros, pardos, idosos, mulheres e crianças carentes.
Além do racismo presente no
saneamento brasileiro, o modelo de estatização do saneamento também é
responsável pelo aumento da desigualdade social. Infelizmente, a falta de
saneamento é preponderante nas regiões mais carentes. Inclusive, as ocupações
ilegais, já consolidadas há mais de 10 anos, sequer são computadas nos
indicadores de falta de saneamento. Sem saneamento básico, muitas mães carentes
não conseguem trabalhar e precisam ficar cuidando dos seus filhos quando
adoecem em razão das Drsai, criando um círculo vicioso.
Perpetuar a falta de água e
esgoto tratados, portanto, é uma verdadeira maldade com pobres, negros, pardos,
idosos, mulheres e crianças carentes, uma verdadeira máquina de exclusão
social, que ainda pode matar milhares de inocentes. Enquanto o Brasil permanece
sem a universalização desses serviços, mais de 11 mil pessoas morrem todos os
anos por falta de saneamento. É muito mais do que desastres que chocaram o
Brasil nos últimos anos, como o de Brumadinho (que teve 270 mortos), Mariana
(19 mortos) e do litoral norte de São Paulo no começo deste ano (65 mortos). Somadas,
essas tragédias mataram menos do que 3 dias de falta de saneamento no Brasil.
Mas a sociedade, e, principalmente, a esquerda radical, não se indigna com
essas mortes. Será que é porque, na sua grande maioria, são pessoas pobres,
pretas e pardas?
Como se não bastasse tanta
maldade, os radicais do PT, PCdoB e do PSOL, na luta para defender a manutenção
das estatais que não conseguiram universalizar o saneamento, tentam emplacar a
mudança da data da meta para universalização do saneamento no Brasil. Se
conseguirem atrasar em um ano, na prática, irão condenar mais alguns milhares
de pessoas à morte. A cada ano de atraso, estamos perpetuando o racismo no
saneamento e ampliando a desigualdade social no país.
Não há dúvidas sobre as
vantagens de se investir na universalização do saneamento no Brasil, e as
maiores delas seriam salvar vidas, trazer qualidade de vida e segurança
sanitária para as pessoas mais pobres afetadas pela falta desses serviços. Onde
estão os grupos de direitos humanos? Onde estão as ONGs que defendem as
minorias? Onde estão os grupos que lutam pela inclusão e contra abusos e descasos
do estado? Não adianta dizer que é contra o racismo estrutural na propaganda e
impedir a solução para a falta de saneamento no Brasil. Chega da hipocrisia que
prejudica (e mata) tantos brasileiros pela falta de saneamento todos os anos!
Precisamos de menos narrativas e mais resultados efetivos para salvar vidas!
Título e Texto: Paulo Uebel,
Gazeta do Povo, 21-3-2023, 8h
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