Pedro Almeida Vieira
Ponto prévio: “O
jornalista deve lutar contra as restrições no acesso às fontes de informação e
as tentativas de limitar a liberdade de expressão e o direito de informar. É
obrigação do jornalista divulgar as ofensas a estes direitos.” Esta é uma das
normas do Código Deontológico dos Jornalistas. Posto isto, siga, e
justifica-se, o editorial…
Imaginemos que, por exemplo, um jornalista do Expresso fazia um requerimento ao Governo a solicitar documentos ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, isto num cenário em que se via obrigado a invocar a lei para obter informação, porque não lhe bastaria um simples telefonema ou e-mail.
Eu sei que é um exercício que
exige demasiada imaginação: não tanto por mim – que colaborei vários anos no
Expresso –, mas por ser difícil imaginar o Expresso (ou outro órgão de
comunicação social mainstream) de hoje a “morder nas canelas” do Governo ao tal
ponto de invocar leis para aceder a documentos…
Mas imaginemos então esse
pedido, e que, na volta do correio, o jornalista do Expresso receberia a
seguinte resposta:
Embora o Governo reconheça que
tal informação nunca foi requerida e o número de documentos, não obstante ser
morosa, não configure propriamente um impedimento, a verdade é que a finalidade
do acesso aos documentos é, em si, manifestamente abusiva. E é
assim porque o requerente tem vindo, ao longo do último ano,
a mover sucessivos pedidos de acesso aos mais variados documentos na posse do Governo,
acabando por fazer um uso abusivo dos mesmos quando a eles tem acesso, concretamente
através da publicação no Expresso, aliada a outras tantas sobre o Governo
e o seu Primeiro-Ministro.
O que acham que aconteceria? Como reagiria a classe jornalística? Como reagiria o Sindicato dos Jornalistas? Como reagiria a Entidade Reguladora para a Comunicação Social? Como reagiria a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista?
Pagaria para ver.
Porém, resposta similar
obtive, não do Governo, mas, pasme-se, da Comissão da Carteira Profissional de
Jornalista, que integra apenas jornalistas. E isto porque pedi formalmente
diversos documentos, entre os quais actas de reuniões, diligências tomadas em
sede de processos de averiguação e disciplinares a jornalistas e também a
decisões quanto a remunerações dos nove membros do Plenário de uma entidade de
direito público.
A resposta, esta semana
transmitida, contém esta e outras “pérolas”:
“Embora o Secretariado
reconheça que tal informação nunca foi requerida e o número de documentos, não
obstante ser morosa, não configure propriamente um impedimento, a verdade é
que a finalidade do acesso aos documentos é, em si, manifestamente
abusiva. E é assim porque o requerente tem vindo, ao longo do
último ano, a mover sucessivos pedidos de acesso aos mais variados
documentos na posse da CCPJ, acabando por fazer um uso abusivo dos
mesmos quando a eles tem acesso, concretamente através da
publicação no “Página Um”, aliada a outras tantas sobre a CCPJ e a
sua Presidente.
Convém referir que as minhas
expectativas face a esta CCPJ estão já abaixo de zero, como se pode constatar
pela cobertura noticiosa e opinativa que lhe temos dedicado
no PÁGINA UM. A sua inação em diversas matérias – como o fechar os olhos às
relações promíscuas entre grupos de media e determinadas empresas é um exemplo
–, já não tem cura. Mas convinha que não enterrassem a própria essência do jornalismo,
abrindo uma caixa de Pandora perante a passividade da classe só porque se
deparam, pela primeira vez, com um jornalista que não quer ser corporativista
nem agradar à classe.
Imaginar que se pode dar uma
resposta daquele quilate a um jornalista – invocando uma norma legal, isto é, o
ser “manifestamente abusivo”, porque acham os pedidos “chatos” – é dar em simultâneos
“instruções” ao Governo, à Administração Pública, às empresas e a todas as
entidades para tratarem, do mesmo modo, outros jornalistas.
Para a jornalista (credo!)
Licínia Girão e para o jornalista (duplo credo, porque também ensina estudantes
de Comunicação Social), que assinaram a carta a mim remetida, haver um
jornalista a pedir, por exemplo, atas de reuniões e documentos de remuneração
(numa altura em que a CCPJ pretendia aumentar as receitas através de uma subida
dos emolumentos) é “manifestamente abusivo”. Presumo que já não seria se eu
lhes cantasse loas.
Mas não me surpreendendo que a
CCPJ (tal como em tempos a Entidade Reguladora para a Comunicação Social) tenha
este tipo de atitudes pouco adultas (fazendo “birras”, porque os incomodam),
também sei como as “coisas” funcionam em corporações – e sei muito bem o quão
corporativista é a classe jornalística.
Por isso, não me espanta, embora
lamente, que, por exemplo, as minhas tentativas de telefonemas e de mensagens
para o presidente do Sindicato dos Jornalistas, Luís Simões, para lhe chamar a
atenção para a gravidade da reposta da CCPJ, tenham ficado sem qualquer
resposta. Ainda mais porque a resposta da CCPJ lhe seguiu por mensagem de
correio electrónico. Compreendo o seu silêncio, dentro do contexto da classe.
Afinal, por que carga de água
o presidente do Sindicato dos Jornalistas teria de reagir ao PÁGINA UM, que é
um “minúsculo” jornal e que ainda por cima só faz pedidos “manifestamente
abusivos”? E logo pedidos manifestamente abusivos à Comissão da Carteira
Profissional de Jornalista, onde pululam figuras tão gradas de uma imprensa
onde todos se conhecem e se cruzam.
Na verdade, ignore-se um
“minúsculo” jornal que, para recordar os assuntos que levámos até às últimas
instâncias, também faz pedidos manifestamente abusivos ao Governo.
Pedidos manifestamente
abusivos ao Conselho Superior da Magistratura.
Pedidos manifestamente
abusivos ao Ministério da Saúde.
Pedidos manifestamente
abusivos ao Infarmed.
Pedidos manifestamente
abusivos à Ordem dos Médicos.
Pedidos manifestamente
abusivos à Ordem dos Farmacêuticos.
Pedidos manifestamente
abusivos à Direcção-Geral da Saúde.
Pedidos manifestamente
abusivos ao Instituto Superior Técnico.
Pedidos manifestamente
abusivos ao Banco de Portugal
Pedidos manifestamente
abusivos à Inspecção-Geral das Actividades em Saúde.
Pedidos manifestamente
abusivos à Administração Central do Sistema de Saúde.
E tantos mais fará…
Por isso, e pedindo desculpas
(enfim, sarcásticas) por não fazermos no PÁGINA UM um jornalismo fofinho, sem
abusos, e muito menos manifestos – passem muito bem com o vosso conceito de
“manifestamente abusivo”. O PÁGINA UM, lamento desiludir-vos, não vai fazer o
jornalismo que a maioria de Vossas Excelências deseja: jornalismo domesticado,
amorfo e que se banqueteia com o poder. No dia em que tal me suceder, deixarei
de ser jornalista.
Nota final: A Comissão de Acesso
aos Documentos Administrativos já se pronunciou esta semana sobre uma primeira
recusa da CCPJ aos documentos solicitados pelo PÁGINA UM, dando-nos inteira
razão. Abordaremos este assunto, com detalhe noticioso, na próxima semana.
Título e Texto: Pedro Almeida Vieira, Página Um, 17-3-2023
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